Um passo à frente, um atrás e um para o lado: a Lei de Bases da Habitação (2019)

Por Simone Tulumello

A crescente centralidade da habitação no debate académico e na esfera pública em Portugal tem sido amplamente documentada neste blogue nos últimos dois anos – com artigos sobre as trajetórias demográficas, o papel do planeamento urbano na promoção de políticas públicas, a promoção da mercadorização da habitação pelo Estado, e ainda as trajetórias de longo prazo nas políticas de habitação nacionais, com foco nos casos do Programa Especial de Realojamento e dos contextos rurais.

O regresso da habitação à agenda política internacional tem acompanhado essa nova centralidade da habitação nas políticas públicas nacionais – estas últimas objeto, por sua vez, de um dossiê temático dinamizado por investigadores do grupo de investigação Ambiente, Território e Sociedade. Entre os vários diplomas e programas lançados no curso da passada legislatura (ver, por exemplo, a Nova Geração de Políticas de Habitação), destaca-se, pela sua ambição, a primeira Lei de Bases da Habitação (Lei 83/2019 de 3 de setembro 2019). A Lei de Bases veio, com muitas décadas de atraso em relação às outras áreas do estado social, criar um quadro regulamentar para a concretização do Direito à Habitação consagrado no artigo 65 da Constituição.

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A Lei de Bases da Habitação no Diário da República. Fonte: Diário da República.

Se, como refere o ditado, “o diabo está nos detalhes”, uma lei de tal envergadura merece ser analisada em detalhe, especialmente tendo em consideração o percurso legislativo longo e tortuoso que teve – e que levou, até, à demissão da coordenação do grupo de trabalho da principal proponente da lei, a deputada Helena Roseta. A pedido do gabinete da Relatora Especial da ONU pela Habitação Adequada, elaborei, em colaboração com a associação Habita, uma leitura crítica da Lei de Bases, disponível (em inglês e francês) na newsletter Housing Rights Watch da FEANTSA. A seguir, irei apresentar os pontos principais da minha reflexão, que se podem sintetizar com a conclusão de que a lei dá um passo à frente, um passo atrás e um passo para o lado.

Além da importância simbólica da própria aprovação da Lei de Bases – que, por si, testemunha um avanço institucional no reconhecimento da habitação como um direito universal – o principal passo à frente é a construção de um quadro legal abrangente de promoção de uma política de habitação robusta. Um dos pontos críticos normalmente levantados pelos estudos sobre políticas de habitação em Portugal é precisamente a histórica ausência de estratégias, com a emergência de sucessivas políticas pontuais como resposta a várias crises. As tentativas de construir estratégias nacionais, capazes de articular os vários níveis de governação e políticas de áreas diferentes (infraestruturas, ordenamento do território, políticas urbanas, políticas sociais), foram poucas e geralmente sem grande êxito. As disposições da Lei de Bases – e especialmente a obrigação de elaborar um Programa Nacional de Habitação e Cartas Municipais de Habitação – criam condições formais que podem permitir ultrapassar essas limitações.

Menos ambiciosas, porém, e até contraproducentes em certas passagens, são as secções da lei dedicadas à proteção ativa do direito à habitação. Para escolher um exemplo entre muitos, o artigo 60, sobre a proteção dos «interesses e direitos dos cidadãos», reconhece o «direito a requerer a cessação imediata de uma situação de violação grosseira do direito à habitação ou da dignidade da pessoa humana em matéria habitacional» (ênfase minha). A escolha do termo “grosseiro” é fortemente problemática e cria ampla discricionariedade: quem distingue violações “grosseiras” de violações “ligeiras”? E conseguimos imaginar que é possível tolerar violações “não grosseiras” de outros direitos, como a saúde, a liberdade ou a integridade física? Compare-se esta escolha com a alínea, também do artigo 60, que reconhece o «direito de promover a prevenção, a cessação e a reparação de violações de bens e valores habitacionais pela forma mais célere possível» (ênfase minha). O diabo nos detalhes, dizíamos: eis um detalhe que demonstra como o legislador considerou atribuir mais peso ao direito à propriedade do que ao direito à habitação (numa lei sobre o direito à habitação). Há mais exemplos, como as proteções insuficientes face aos despejos, a substancial ausência de instrumentos de regulação, ou a falta de instrumentos para contrastar à especulação imobiliária. Um passo atrás, portanto, porque não só se perdeu uma boa ocasião para consagrar um papel robusto e inequívoco do Estado na defesa do direito à habitação, como também se inscreveu na lei a subalternidade do direito à habitação em relação ao direito à propriedade.

Lembremos, de qualquer forma, que as leis de bases, no sistema português, têm como objetivo principal definir um quadro abrangente para a atuação legislativa e governativa, precisando, portanto, da adaptação da normativa pré-existente e de legislação complementar (os artigos 67 e 68 concedem 9 meses para a elaboração dos diplomas necessários). Passados cinco meses, e com renovados equilíbrios de poder na Assembleia da República entretanto eleita (2019), o debate político parece estar congelado. A própria Helena Roseta, em encontros públicos recentes (como, por exemplo, este, organizado pela Habita), admitiu que a lei aprovada é o resultado de negociações que diluíram algumas das sua propostas originais; mas também reiterou a importância de a sociedade civil fazer pressão e estar a par da elaboração da legislação complementar. Igualmente, o quadro robusto de enquadramento das políticas de habitação construído pela Lei de Bases não terá muitas consequências sem uma atuação igualmente robusta em termos de programação e de investimento público – investimento que, no OE2020, continua a estar bastante aquém das expectativas.

Se há boas razões para concluir que foi a politização da habitação – com um significativo papel dos movimentos sociais – que permitiu repor em Portugal o tema da habitação na agenda política em 2017, é também razoável crer que só uma sociedade civil robusta poderá transformar este passo para o lado numa nova onda de reforma. 2020 será mais um ano politicamente quente em torno da habitação.


Simone Tulumello é investigador auxiliar no Instituto de Ciências Sociais – ULisboa e membro da coordenação do Doutoramento em Estudos de Desenvolvimento da Universidade de Lisboa.

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