A Habitação regressa à agenda política?

Por João Ferrão

Conhecemos bem o poder que as organizações internacionais (ONU e as suas várias agências, OCDE, etc.) e supranacionais (órgãos da União Europeia, por exemplo) têm na formação de agendas políticas que rapidamente obtêm ressonância nas agendas mediática e mesmo científica de múltiplos países. Entre os diversos casos recentes, as alterações climáticas, a descarbonização da economia e o conceito de economia circular destacam-se pela forma rápida e eficaz como se afirmaram como questões prioritárias, temas de controvérsia no espaço público e domínios de intervenção política beneficiários de regimes específicos e particularmente favoráveis de financiamento e de fiscalidade.

Ao mesmo tempo que novos conceitos, temas e prioridades emergem ao nível global e se expandem rapidamente por um número crescente de países, outros permanecem na penumbra deste universo das “ideias e políticas que viajam”, uns porque são considerados ultrapassados, irrelevantes ou não generalizáveis, outros porque ainda não alcançaram o reconhecimento suficiente para ganharem um lugar de notoriedade nas agendas globais. Neste contexto de formação desigual de agendas políticas transnacionais, o caso da habitação ocupa uma posição interessante.

Nos países mais desenvolvidos, e sobretudo a partir da construção extensiva de habitação social nas cidades europeias mais afetadas pelas duas grandes guerras do século XX e, numa fase posterior, com a expansão do setor imobiliário e do acesso a habitação própria alimentados pela economia de crédito no âmbito da crescente financeirização da economia, a habitação saiu das agendas políticas. É verdade que, com a queda dos regimes comunistas nos países do leste europeu, a questão do financiamento da reabilitação de enormes bairros públicos levou a que esses países tentassem influenciar a Comissão Europeia no sentido de esta assegurar uma comparticipação nas avultadas despesas a efetuar nesse esforço de regeneração urbana através da disponibilização de fundos. Mas a habitação, como o ordenamento do território, não é uma política comunitária, pelo que lhe está vedada a possibilidade de beneficiar de apoios diretos provenientes da União Europeia. No âmbito do ciclo de programação comunitário 2007-2013 foi, então, aberta a hipótese de comparticipar despesas com intervenções de melhoria de eficiência energética e de conforto térmico em edifícios de bairros sociais, possibilidade que se mantém no atual ciclo 2014-20. Mas, genericamente, a habitação ocupou nas últimas décadas uma posição marginal no contexto das agendas políticas dos países mais desenvolvidos, incluindo os europeus. Prevalecendo a ideia de que a habitação se deve reger por mecanismos de mercado, a ação pública neste domínio tende a restringir-se a intervenções de apoio aos segmentos populacionais mais vulneráveis, em geral desenvolvidas ao nível local. A inexistência de políticas de habitação nacionais era, afinal, um sintoma de progresso e desenvolvimento. Pelo contrário, a necessidade de políticas de habitação estaduais correspondia a um traço característico dos países menos desenvolvidos.

Contudo, algo parece estar a mudar nos últimos anos. Repare-se na cronologia que a seguir se apresenta de forma muito sumária.

Em 25 de setembro de 2015 foi aprovada, na Cimeira das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável realizada em Nova Iorque (EUA), a agenda de desenvolvimento sustentável pós-2015 intitulada Transformar o nosso mundo: a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Esta Agenda inclui 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS). O primeiro ponto do ODS 11, designado Cidades e Comunidades Sustentáveis, refere a questão da habitação. Aí se consagra o objetivo de assegurar a todos, até 2030, o acesso a habitação adequada, segura e acessível. Este aspeto é particularmente relevante se levarmos em consideração que a Agenda 2030 se aplica a todos os países do mundo e não apenas, como sucedia com o documento que a precedeu, os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio 2000 – 2015, aos países ditos em vias de desenvolvimento.

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Fonte: http://apdis.pt/noticias/agenda-2030

A 30 de maio de 2016 foi acordada a Agenda Urbana para a União Europeia, designada por Pacto de Amesterdão, na reunião informal dos ministros responsáveis pelos Assuntos Urbanos realizada naquela cidade. Neste documento, que levou em conta textos já em circulação no âmbito da preparação da Nova Agenda Urbana da ONU (ver parágrafo seguinte), a habitação foi considerada um dos dez temas prioritários indicativos tendo por base uma auscultação efetuada junto dos governos nacionais e das autoridades regionais e urbanas, e está ainda presente noutros temas, como a inclusão de migrantes e refugiados ou a pobreza urbana. Para cada um dos temas prioritários foi definido um trabalho em parceria que, no caso da habitação, “Visa promover o acesso a alojamento de boa qualidade e a preços acessíveis. Será dada ênfase à habitação pública a preços acessíveis, à regulamentação em matéria de auxílios estatais e à política geral em matéria de habitação”. A parceria para a habitação, juntamente com outras três parcerias, foi considerada prioritária, beneficiando, logo em 2016, de um apoio financeiro por parte do governo dos Países Baixos como experiência piloto.

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Fonte: http://www.forumdascidades.pt/?q=content/pacto-de-amesterdao-agenda-urbana-para-uniao-europeia

No dia 20 de outubro de 2016, as delegações dos países presentes na Terceira Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável (HABITAT III), realizada em Quito (Equador), aprovaram a Nova Agenda Urbana. O seu plano de implementação inclui múltiplas referências à habitação e às políticas de habitação, apresenta o direito a uma habitação adequada como uma componente indissociável do direito, mais amplo, a um nível de vida adequado, e contém diversos pontos específicos sobre uma habitação adequada, acessível, segura, resiliente e sustentável para todos assim, como sobre políticas urbanas e integradas e instrumentos legais e financeiros a mobilizar para esse efeito. Este documento foi, aliás, apresentado como uma extensão da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.

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Fonte: http://habitat3.org/wp-content/uploads/NUA-Portuguese-Angola.pdf

Em 26 de abril de 2017, depois de um debate político e de uma auscultação pública de mais de um ano, a Comissão Europeia adotou a Recomendação (UE) 2017/761 sobre o Pilar Europeu dos Direitos Sociais, apresentado como “um compromisso e uma responsabilidade partilhada entre a União Europeia, os seus Estados-Membros e os parceiros sociais”. A habitação constitui uma das 20 prioridades aí enunciadas, sendo explicitados neste domínio três deveres: (i) garantir às pessoas necessitadas o acesso a habitação social ou a uma ajuda à habitação de boa qualidade; (ii) garantir às pessoas vulneráveis o direito a assistência e a proteção adequadas em caso de despejo; (iii) garantir a disponibilização de alojamento e serviços adequados aos sem-abrigo para promover a sua inclusão social.

Finalmente, a 15 de novembro de 2017 foi aprovado o projeto de Parecer do Comité das Regiões Europeu Rumo a uma Agenda Europeia para a Habitação, onde se apela à construção de uma agenda europeia da habitação à luz da Agenda Urbana da UE (Pacto de Amesterdão) e do Pilar Europeu dos Direitos Sociais num texto de 39 pontos cujos subtítulos agregadores são significativos: necessidade de uma melhor articulação entre as políticas da UE e as políticas de habitação dos Estados-Membros; uma nova política de coesão que tenha plenamente em conta a questão da habitação; uma agenda europeia para a habitação no seguimento do Pacto de Amesterdão.

Nenhum destes documentos é legalmente vinculativo (o último, aliás, não passa de um projeto de Parecer). E todos eles foram criticados – e bem – por serem genéricos, “redondos”, pouco ambiciosos e de exequibilidade duvidosa. Mas a verdade é que eles não deixam de ser interessantes na medida em que revelam, à imagem de exercícios anteriores de agenda-setting ocorridos em relação a outros temas, a emergência lenta mas aparentemente irreversível de novas perspetivas políticas e sociais sobre a habitação e as políticas de habitação.

No que diz respeito à União Europeia, e mesmo tendo em conta a sua significativa diversidade interna, parecem destacar-se 6 novas linhas orientadoras para o futuro próximo:

  • Garantir um maior equilíbrio e coordenação entre políticas macroeconómicas e políticas sociais, num contexto pós-crise em que se reconhece que as políticas de austeridade e a centralidade redentora atribuída à competitividade e ao empreendedorismo acentuaram as desigualdades sociais e desvalorizaram a necessidade de promover formas progressistas de inovação societal;
  • Consagrar a habitação como um direito social europeu, isto é, considerando-a mais como um direito do que como um bem / mercadoria (a casa) e, simultaneamente, como um compromisso e uma responsabilidade europeia partilhada mesmo quando estão em causa políticas de âmbito nacional;
  • Defender habitação acessível e de qualidade para todos e não apenas para os grupos há muito identificados como vulneráveis, dado o modo como a precariedade do emprego ou o envelhecimento da população criaram novas situações de não-acesso a habitação adequada;
  • Desenvolver uma agenda europeia para a habitação como um aprofundamento da agenda urbana da União Europeia, ultrapassando em definitivo o entendimento da questão da habitação como um problema de assistência social e de construção de bairros de habitação social e englobando-a numa visão mais ampla de base territorial (o direito à cidade, para retomar a conhecida expressão de Henri Lefebvre);
  • Integrar a habitação na nova política de coesão no próximo ciclo comunitário, o que significa olhar para a habitação e para as políticas de habitação na interseção das questões sociais, económicas e territoriais, e não apenas no âmbito de uma delas, e por esta via garantir uma maior diversidade de apoios no período pós-2020;
  • Aumentar as frentes de articulação entre políticas comunitárias (eficiência energética, alterações climáticas, redução da pobreza e inclusão social, crescimento económico inclusivo e criação de emprego, etc.) e as políticas de habitação dos estados-membros.

Talvez estejamos perante indícios frágeis, demasiado embrionários, sem a consistência ou o apoio político suficientes para vingar. No entanto, os vários documentos referidos não deixam de sinalizar que algo parece estar a mudar, mesmo que apenas à superfície e a nível retórico. Para que a narrativa proposta abra portas à ação, todas as pequenas frestas deverão ser aproveitadas para trazer de novo a habitação e as políticas de habitação para as agendas política, académica e mediática. O documento Para uma nova geração de políticas de habitação, que esteve em debate público no final de 2017, constitui, justamente, um bom pretexto para que essas brechas comecem a ser abertas e exploradas em Portugal.


João Ferrão é investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Email: joao.ferrao@ics.ul.pt