Por Mariana Liz
A relação entre o cinema e a cidade tem sido uma das grandes áreas de investigação dos estudos cinematográficos das últimas décadas. Num artigo de 2012, Charlotte Brunsdon desenhou uma cronologia de publicações sobre cinema e cidade, sobretudo em língua inglesa, nas duas décadas anteriores. Esta contém mais de trinta monografias e coleções de ensaios, e poderíamos adicionar a esta lista pelo menos duas dúzias de publicações sobre o mesmo tema lançadas nos últimos anos. Este é um número surpreendente para um campo tão restrito como, apesar de tudo, ainda é o dos estudos cinematográficos.
Face a tão rápido crescimento, para alguns este é um tema que começa a esgotar-se. No entanto, à medida que o cinema sofre transformações aos mais variados níveis – incluindo a perceção de que vivemos numa era pós-cinematográfica – e as cidades crescem em importância – como o demonstra a adoção, pelas Nações Unidas, de uma Nova Agenda Urbana – estudos sobre o cinema e cidade ganham um novo fôlego. Trabalhos mais recentes propõem-se pensar não só o que é o cinema e o que é a cidade, mas sobretudo como os dois objetos em mudança se relacionam e, ao mesmo tempo, se transformam mutuamente.
Veio de encontro a este debate o ciclo O Cinema e a Cidade, que teve lugar na Cinemateca Portuguesa entre setembro e novembro de 2017. Durante três meses, foram exibidos e discutidos dezenas de filmes que têm representado, estruturado e ajudado a pensar o espaço urbano, incluindo clássicos sobre grandes capitais mundiais, de Lisboa, Crónica Anedótica (Leitão de Barros, 1930) a Viagem a Tóquio (Yasujiro Ozu, 1953), de Roma (Federico Fellini, 1972) a Do The Right Thing (Spike Lee, 1989).
O ciclo O Cinema e a Cidade incluiu também uma exposição sobre a história das salas de cinema em Portugal entre os finais do século XIX e do século XX. Finalmente, esta iniciativa contou com um colóquio sobre o mesmo tema, que se realizou a 28 e 29 de setembro. Este texto centra-se nesse colóquio. Ao revisitar as comunicações apresentadas e debates que a estas se seguiram, o texto sublinha os temas e questões que têm estruturado o pensamento sobre cinema e cidade. Inclui ainda algumas reflexões sobre linhas de investigação futura para os trabalhos a desenvolver neste campo.
O primeiro dia começou com um painel sobre os lugares do cinema na vivência da cidade. Margarida Acciaiuoli mostrou-se preocupada com a demolição recente de um grande número de salas de cinema em Lisboa. Com elas, disse, perdeu-se grande parte da história da arquitetura do século XX, de tal maneira que os cinemas em Lisboa no século XX se tornaram efetivamente um objeto de estudo arqueológico. Esta preocupação foi ecoada pelas apresentações de José Neves e José Manuel Fernandes. Como contraponto, Alexandre Alves Costa apresentou a recuperação do histórico Cinema Batalha no Porto como um caso de sucesso.

À tarde, Teresa Borges e Eva Ângelo mostraram e analisaram mapas representando a distribuição de salas de cinema em Portugal. Se em 1916 havia 172 salas, em 1946 existiam mais de 300. Em 2017 há apenas 170 salas de cinema em Portugal, quase todas em multiplexes. No entanto, estas equivalem a mais de 500 ecrãs. De facto, o número de ecrãs de cinema tem vindo sempre a crescer em Portugal, sobretudo em cidades como Lisboa.
Estes dados mostram não só como uma abordagem quantitativa pode ajudar a repensar a importância do cinema e de outras atividades culturais para os centros urbanos, mas também como a sua georreferenciação levanta novas questões para investigadores na área da cultura. Inês Lobo e Júlia Varela, por exemplo, fizeram um levantamento dos cinemas que existiram em Lisboa na Avenida Almirante Reis, centrando a sua investigação na questão da exploração do património nesse mesmo território. O dia terminou com apresentações de Alberto Guerreiro, sobre a importância do cinema na criação de uma visão moderna da cidade de Alcobaça, e de Mariana Liz, sobre iniciativas como CinAlfama, CineSociety e Filmin ao Vivo, e a interligação entre cinema, cidade e turismo.
O segundo dia arrancou com apresentações de Nuno Fonseca, Érica Faleiro Rodrigues, Jacques Lemière e Paulo Cunha, que caracterizaram as salas de cinema enquanto lugares sociais. Para uns, as mutações sofridas pelas salas de cinema têm sido prejudiciais à ontologia do cinema. Para outros, pelo contrário, estas amplificam a definição e natureza do cinema.
Por exemplo, Paulo Cunha falou sobre a história do Cineclube de Guimarães e sublinhou a emergência de novas formas de cinefilia, sobretudo em cidades portuguesas de dimensões mais reduzidas. Imersão e partilha, experiência individual e experiência social, e espaço público e espaço privado, surgiram como oposições importantes para pensar não só o cinema, mas também o espaço urbano contemporâneo, assim como as atividades culturais que nele se desenvolvem.
Percorrendo a história do cinema, o painel que encerrou o colóquio reuniu José Bértolo, João Almeida e Silva, Ana Cabral Martins e Iván Villarmea Álvarez. José Bértolo discutiu o caso de Paris no pós-guerra, e a forma como o crescimento da cidade teve, nesse período, um impacto determinante na modernidade aparente do cinema da Nouvelle Vague francesa. Houve ainda apresentações sobre a representação de Tóquio em diferentes momentos do cinema japonês; sobre os blockbusters do novo cinema de Hollywood, pensados para os multiplexes dos subúrbios norte-americanos; e sobre a cidade pós-moderna e a expansão do cinema digital.
Na apresentação final do colóquio, Iván Villarmea Álvarez sublinhou um paradoxo interessante: se, por um lado, é cada vez mais difícil ver cinema no centro da cidade, por outro, o centro da cidade torna-se mais cinematográfico, na medida em que é transformado em cenário de um crescente número de filmes contemporâneos. Pense-se, por exemplo, no filme promocional da Web Summit 2017 produzido pela Câmara Municipal de Lisboa, e na forma como este recicla e reinventa imagens de Lisboa que, não sendo artificiais, não deixam de mostrar apenas uma parte ínfima da cidade.
Do ponto de vista da representação, está o cinema contemporâneo não só a mudar-se para as zonas mais periféricas da cidade, mas também a contribuir para processos de gentrificação dos centros históricos urbanos? Como pode a imagem em movimento ajudar a repensar conceitos como autenticidade e realismo, local e estrangeiro, cultura e consumo?
Do ponto de vista da experiência, há ainda pouca investigação sobre novas formas de exibir e ver cinema. Qual é a história, e qual tem sido a evolução social, de cineclubes e outras sociedades dedicadas ao cinema e à cultura nas cidades? Que apoio, de instituições locais, nacionais ou internacionais, têm recebido iniciativas como Há Filmes na Baixa!, no Porto, ou Cineconchas, em Lisboa? Qual o objetivo destes eventuais apoios, e têm estes sido alcançados, tendo em conta o sucesso destas iniciativas?
O colóquio aqui apresentado, e as discussões apaixonadas que o caracterizaram, deixam bem claro que o tópico cinema e cidade está longe de se esgotar. Assumir que o cinema e a cidade estão em mudança é também assumir a necessidade de repensar os termos das investigações conduzidas até agora. A iniciativa da Cinemateca deixa um convite à comunidade artística e académica, às instituições culturais e à classe política para imaginar um futuro em que espaço urbano e cultura, cidades e cinema, permaneçam intimamente ligados.
Mariana Liz é investigadora de pós-doutoramento no ICS-ULisboa. Email: mariana.liz@ics.ulisboa.pt. Perfil no site do ICS.