Por: Mónica Truninger
A velocidade com que a indústria espacial se tem desenvolvido nas últimas décadas é impressionante. Enquanto as atenções têm sido direcionadas para múltiplas crises internacionais graves nos últimos anos, desde a crise das dívidas soberanas até à pandemia de COVID-19 e ao atual conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia, o setor espacial continua a avançar a passos largos. Impulsionado por saltos tecnológicos surpreendentes, esse avanço ocorre de forma quase silenciosa e imperceptível, exceto pelo som ocasional dos motores dos foguetões, que podemos testemunhar através dos ecrãs vibrando com a euforia das equipas que festejam mais um lançamento em direção à Lua ou a Marte.
Um exemplo é o rover Perseverance e o pequeno helicóptero Ingenuity da NASA, que aterraram em Marte em 18 de fevereiro de 2021. Outro marco importante foi o lançamento do foguetão Orion, da missão Artemis I, em 16 de novembro de 2022, em direção à órbita lunar. O objetivo do programa Artemis da NASA é levar novamente humanos à Lua, incluindo a primeira mulher, construir uma base lunar e a Gateway – a primeira estação espacial cislunar, que servirá como plataforma de apoio às missões à Lua e a Marte. Estes objetivos seguem uma linha do tempo que já não está assim tão distante, nem pertence à ficção científica. Estão previstas para os próximos anos várias missões, lançamentos de sondas, constelações de satélites ou foguetões pilotados por humanos em direção, primeiro à Lua e depois a Marte, tanto de agências espaciais governamentais, como do setor privado.
Com a saída de órbita da Estação Espacial Internacional (ISS) estimada para 2030, está prevista a construção de várias estações espaciais, governamentais ou comerciais, que a vão substituir, estendendo a presença humana no Espaço durante anos vindouros. De momento, para além da ISS, também está em órbita a estação chinesa Tiangong, tripulada por taikonautas, cujo primeiro módulo foi lançado em abril de 2021.

No que concerne ao sector privado, a 10 de maio deste ano, a empresa Vast, em parceria com a Space X, anunciou que, até final de 2025, lançará a primeira estação comercial privada, aberta a oportunidades de fabrico e desenvolvimento de produtos, bem como de investigação científica. Esta parceria está igualmente a investir no desenvolvimento da gravidade artificial, e a intenção é que futuras estações e outras infraestruturas que recebam turistas, providenciem ambientes híbridos, i.e., entre a microgravidade e a gravidade artificial. A empresa Orbital Assembly tenciona construir dois hotéis na órbita terrestre (Voyager Station e a Pioneer Station), prevendo que pelo menos um deles – que alojará 28 pessoas – esteja operacional já em 2025. O hotel promete oferecer uma experiência inesquecível a bordo, providenciando zonas de gravidade zero ou parcial. O restaurante irá oferecer comida espacial tradicional, tal como o popular gelado liofilizado que já se vende habitualmente nas lojas dos museus de ciência e do espaço. Estes gelados fazem as delícias de inúmeros internautas que os provam pela primeira vez mostrando de forma visceral as suas opiniões a uma audiência virtual. Este gelado liofilizado é bem ilustrativo da invenção da tradição, já que nunca fez parte das refeições dos astronautas, apesar de ter sido desenvolvido pela NASA e pela Whirlpool nos anos 1960, para as missões Apollo. Porém, nunca ganhou popularidade entre as tripulações que foram ao Espaço.

É, portanto, incontestável que, nas últimas décadas, o Espaço se tornou um objeto de enorme interesse político e económico. À medida que a rivalidade geopolítica no Espaço se intensifica com novos atores na corrida (ex. China, Índia, Emirados Árabes Unidos, Europa), além dos antigos rivais da época da Guerra Fria, Estados Unidos e Rússia, uma vasta indústria espacial comercial expande-se, indo muito além das atividades de turismo espacial dos magnatas Elon Musk, Jeff Bezos, ou Richard Branson. Diversos atores do sector espacial, sejam privados ou públicos, confrontam-se com um conjunto de questões e desafios de inovação tecnológica para resolver alguns problemas actuais e emergentes relacionados com o lixo espacial, a colocação de constelações de satélites e o seu crescente congestionamento, a extração de recursos espaciais de asteroides e outros corpos cósmicos e a construção de infraestruturas espaciais. A título de curiosidade, uma notícia de 4 de maio deste ano na SIC Notícias anunciou que várias pessoas observaram uma linha de luzes nos céus do país. Após algum alvoroço e comentários nas redes sociais, descobriram que se tratava dos satélites Starlink, que fazem parte da constelação de satélites de Musk.
Num relatório de 2022 produzido por uma das maiores instituições financeiras do mundo – o Citigroup –, espera-se que a indústria espacial atinja o valor de 1 trilião de dólares em 2040. O mesmo relatório faz menção à icónica frase do astrofísico e apresentador de televisão dos Estados Unidos, Neil deGrasse Tyson: “O primeiro trilionário do mundo será a pessoa que minar asteróides”. A mineração de asteróides e da Lua é um dos objetivos destes empresários espaciais, à procura de extrair recursos como água, Helium-3 e metais de terras raras.
Esta expansão capitalista no Espaço, em que a noção de fronteiras planetárias se esbate e se estende para além dos limites do planeta, traz profundas incertezas no futuro a quatro níveis: 1) a potencial e crescente militarização do Espaço, onde tecnologias espaciais, como os satélites (veja-se a Starlink de Elon Musk) estão ao serviço de conflitos armados no planeta Terra (seja como estratégia de defesa, seja como de ataque); 2) as questões da justiça e equidade entre países, povos e comunidades no planeta Terra quanto à utilização dos recursos e infraestruturas espaciais; 3) a distribuição desigual dos riscos, onde as comunidades, humanas e não humanas, a viver na proximidade de grandes infraestruturas de lançamento de foguetões estão mais vulneráveis à queda de detritos espaciais e à poluição das plumas desses veículos. A título de exemplo, recorde-se o recente episódio da explosão do maior e mais potente foguetão Starship Super Heavy da SpaceX, que fez um voo de teste no dia 20 de abril. Este incidente alertou cientistas e investigadores para a necessidade de avaliar o impacto na saúde e no ambiente, já que houve detritos que se espalharam por uma área de conservação da vida selvagem e provocaram elevados níveis de poluição sonora e do ar junto das populações que vivem perto dessas infraestruturas.
Apesar dos riscos globais da indústria espacial, bem documentados no relatório do Fórum Económico Mundial de 2022, há um esforço de várias agências espaciais (ex. ESA) e da Organização das Nações Unidas (através do Gabinete das Nações Unidas para os Assuntos Espaciais) para trazer uma visão mais progressista e otimista dos usos da indústria e economia espaciais. Tem havido várias ações para mostrar como o Espaço pode contribuir para atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, nomeadamente através das edições do Fórum Mundial do Espaço, que nos últimos anos tem dedicado as temáticas dos seus encontros às alterações climáticas, sustentabilidade, agricultura e alimentação. Veja-se o último encontro que teve lugar em 2022, cujo tema foi “Sustainability in Space for sustainability on Earth”. Outro exemplo, foi o recente encontro da International Astronautical Federation, em parceria com a Agência Espacial da Noruega, que organizou em Oslo, entre 23 e 25 de maio de 2023, a primeira conferência sobre alterações climáticas e o sector espacial (2023 Global Space Conference on Climate Change). Esta tem sido a estratégia utilizada por vários atores do sector espacial, mantendo a circular um discurso que tenta mostrar os benefícios deste sector para a mitigação e adaptação às alterações climáticas, para o combate à insegurança alimentar, para a monitorização e segurança dos oceanos e das florestas (no combate aos incêndios), através de instrumentos de observação da Terra.
Para encerrar, o ponto anterior conduz ao quarto nível de incerteza no futuro, que se prende com a necessidade de integrar o desenvolvimento sustentável no espaço com o desenvolvimento sustentável na Terra. Isto leva-nos a questionar as intenções mais extractivistas de um capitalismo espacial e a mobilizar a sociedade e a opinião pública para futuros espaciais inclusivos, equitativos e sustentáveis. Um dos livros recentes que começou a desbravar este caminho é o de Mary-Jane Rubenstein, Astrotopia, que terei a possibilidade de abordar em futuros posts.
Mónica Truninger é socióloga e coordenadora do Grupo de Investigação Ambiente, Território e Sociedade do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Coordenadora da equipa do projeto SafeConsume no ICS-ULisboa.
Email: monica.truninger@ics.ulisboa.pt
Webpage: https://www.ics.ulisboa.pt/pessoa/monica-truninger