Adaptação climática: governança da água tem de ser mais justa e resiliente

Por: Carla Gomes

As medidas de racionamento de água no Algarve, anunciadas em janeiro pelo governo português para os setores da agricultura, turismo e até o doméstico, são um claro sinal de alerta sobre futuros cenários de escassez. Os eventos climáticos extremos, a maior parte dos quais estão relacionados com a água ou com a falta dela, causaram perdas de meio trilião de euros na Europa nos últimos 40 anos, bem como milhares de mortes. As secas são responsáveis, por si só, por 9 mil milhões de euros anuais de perdas.

O envolvimento dos cientistas sociais é mais crucial do que nunca para enfrentar a crise climática e para garantir uma governança da água mais resiliente e mais justa. Um tema que estará em discussão no dia 19 de Março no ICS-ULisboa, no âmbito do seminário SHIFT “Water justice for climate adaptation” (11h-13h). O documentário “Esta é uma história sobre água”, sobre os problemas e conflitos suscitados pela escassez hídrica no sul de Portugal, será o ponto de partida para o debate, que conta com a presença do realizador.

Figura 1. Documentário aborda os problemas de governança e justiça suscitados pela escassez hídrica.

Além da redução dos consumos – que obriga a definir prioridades e suscita conflitos – diversificar as fontes de água tem sido uma das principais estratégias de adaptação à escassez, que podem incluir soluções como a reutilização ou a dessalinização, dependendo das circunstâncias ambientais e socioeconómicas de cada região. Mas todo o modelo de governança do ‘ouro azul’ terá de ser repensado face aos cenários das alterações climáticas: temperaturas mais elevadas, secas mais intensas e prolongadas, mas também tempestades e cheias.

A grande interrogação que surge perante mais uma tempestade é: “afinal, ora temos falta de água, ora temos água demais?”. Um dos grandes desafios é, sem dúvida, aumentar a capacidade de armazenamento das águas pluviais, aproveitando ao máximo o ciclo natural, mas de uma forma ‘inteligente’ – justa, sustentável, eficiente – que, tanto quanto possível, flua em sintonia com os ritmos da Natureza. Nos próximos anos uma das grandes aprendizagens que teremos de fazer é como usar ‘soluções baseadas na Natureza’ como estratégia de adaptação climática nas cidades, mas também nas áreas rurais.

Esta necessidade de nos adaptarmos a um ciclo da água ‘intensificado’ traz sem dúvida exigentes desafios em matéria de governança. O setor da água está interligado às políticas da agricultura, economia, turismo, justiça social, saúde, apenas para referir algumas. Contudo, essa interligação ‘intersetorial’ nem sempre é fácil de refletir em decisões práticas. Este é um dos pontos críticos que têm sido identificados pela OCDE, que em 2015 lançou os seus 12 princípios para a governança da água (Figura 2).


Figura 2. Os 12 princípios da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) para a governança da água (OCDE, 2015).

Mudança de paradigma

A primeira grande conferência das Nações Unidas sobre água em 50 anos teve lugar em m arço de 2023 e resultou numa nova Agenda de Ação pela Água, que integra compromissos voluntários de empresas, associações locais, organizações não governamentais e instituições públicas. A prioridade máxima é garantir o cumprimento do ODS 6 (Objetivo de Desenvolvimento Sustentável para a água potável e saneamento), que neste momento já não está em linha com as metas para 2030. No rescaldo da conferência de março, a COP28 (conferência da UNFCCC sobre alterações climáticas) assumiu como missão colocar a água em destaque na agenda das negociações internacionais, tendo resultado no reforço do ‘Freshwater Challenge’, que visa o restauro de rios e zonas húmidas, bem como num novo compromisso para a transição nos sistemas agrícolas e alimentares, atualmente subscrito por 159 países.

Por seu turno, a Comissão Europeia vai lançar uma nova estratégia para a resiliência hídrica em março. Paralelamente, a primeira diretiva comunitária que teve origem numa iniciativa cidadã, a nova Diretiva relativa à Qualidade de Água para Consumo Humano, entrou em vigor em 2023, vindo aumentar as exigências em matéria de acesso à água potável e proteção da saúde humana. A revisão da diretiva relativa ao tratamento das águas residuais urbanas (DARU) visa melhorar o tratamento e monitorização destas águas, para melhor proteção da saúde pública e dos ecossistemas, em linha com o Pacto Ecológico Europeu e com o Plano de Ação Poluição Zero da União Europeia. A revisão da DARU vem aumentar a responsabilidade das empresas na origem dos micropoluentes que têm invadido os sistemas hídricos (em particular as indústrias farmacêutica e cosmética), em linha com o princípio do poluidor-pagador.


Figura 3. A adaptação às alterações climáticas vai exigir uma nova forma de conviver com todo o ciclo da água (Foto de Gabriel González, CC BY 2.0).

Um dos princípios-chave da OCDE para a governança da água refere-se aos trade-offs entre setores, que podem gerar conflitos entre, por exemplo, a agricultura e o turismo em situações de escassez. Por isto mesmo, é crítico que haja um envolvimento ativo dos atores-chave nas diferentes escalas, do global ao regional e local, tendo por base as bacias hidrográficas.

O projeto B-WaterSmart, em que o ICS-ULisboa coordena a área de Sociedade, Governança e Políticas, tem como um dos seus principais objetivos recomendar modelos de governança inovadores para a água na Europa, a partir da experiência de seis cidades e regiões constituídas em Laboratórios Vivos: Lisboa (Portugal), Alicante (Espanha), Frísia Oriental (Alemanha), Bodø (Noruega), Flandres (Bélgica) e Veneza (Itália). Um dos relatórios mais recentes do B-WaterSmart faz uma análise das soluções que estas regiões estão a desenvolver à luz dos 12 princípios da OCDE, apontando algumas recomendações que serão concretizadas no final do projeto (agosto 2024). Entre elas, aponta-se a necessidade de criar novos programas de financiamento, bem como fornecer orientações claras a nível nacional e capacitar as autoridades locais e regionais para implementar soluções inovadoras para reutilização, recuperação de nutrientes (para a indústria e agricultura) e gestão de águas pluviais. Em Portugal, o Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais (PENSAARP 2030), que acaba de entrar em vigor, prevê que seja necessário investir 5 500 milhões de euros no setor da água nos próximos seis anos.

Certo é que a crise da água é, acima de tudo, um problema de governança, e esta terá de refletir, cada vez mais, a interligação dos ecossistemas e das comunidades humanas ao nível global. A necessidade de nos adaptarmos às alterações climáticas vai necessariamente obrigar-nos a valorizar o recurso água, mas também a tomar decisões difíceis, que podem gerar conflitos entre países, regiões, setores económicos e grupos sociais. As próximas décadas vão colocar à prova a nossa capacidade de governar a água de uma forma ambiental e socialmente justa.


Carla Gomes é investigadora do ICS-ULisboa, integrada no grupo SHIFT – Ambiente, Território e Sociedade. Coordena a área de Sociedade, Governança e Políticas do projeto B-WaterSmart (H2020, financiado pela Comissão Europeia, grant nr. 869171). Green Deal Net expert (adaptação, governança climática e transição justa). carla.gomes@ics.ulisboa.pt

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