Considerações sobre smart cities a partir do caso de Florianópolis (Brasil)

Por: Gregório Ayala

Smart Cities representam uma tendência urbana em crescimento, mas sua definição permanece elusiva e frequentemente é moldada pelos interesses dos idealizadores de seus projetos. Embora falte consenso, o termo smart geralmente se refere à integração de tecnologias avançadas, como conectividade, telas e sensores nas paisagens urbanas. O objetivo geral é otimizar recursos, gerar nova riqueza e influenciar o comportamento dos habitantes da cidade (Moroz e Bria, 2019).

Os processos de digitalização urbana são frequentemente associados ao protagonismo estatal e aos interesses corporativos, que tendem a agravar as opressões e injustiças existentes, além de favorecerem economias digitais agressivamente neoliberais (Kitchin, 2015; Couldry e Mejias, 2018). Por outro lado, esses processos também podem ser impulsionados por ativistas urbanos e pelos próprios residentes da cidade, configurando-se como formas de resistência (Anduiza, Cristancho e Sabucedo, 2013; Treré, 2018).

Embora as smart cities não tenham se originado no Sul Global, elas se tornaram uma discussão crucial no Brasil, sendo apresentadas como uma necessidade para os municípios competirem por investimentos. Em 2020, um conjunto de pesquisadores, associações locais e a Prefeitura de Florianópolis, no sul do Brasil, lançou o relatório Smart Floripa 2030. Este projeto ambiciona posicionar a cidade como uma referência nacional para iniciativas Smart.

Esse relatório aborda os desafios e oportunidades para transformar a cidade de Florianópolis em uma “cidade inteligente” ou um “centro de inovação”. No entanto, o documento não oferece uma definição clara do que é uma cidade inteligente, nem estabelece uma genealogia dos processos políticos e econômicos que levam à construção do imaginário das cidades inteligentes.

Foi neste contexto que, em 2021, iniciei minha pesquisa de doutoramento, com o objetivo de preencher as lacunas identificadas neste relatório e investigar suas implicações políticas mais amplas para Florianópolis. Até ao momento, tenho dedicado esforços para compreender os projetos smart em outras cidades, os quais precedem e influenciam, em diferentes graus, a atual agenda da Smart Floripa. Mas especificamente, com este post, pretendo compartilhar minhas impressões sobre o relatório Smart Floripa 2030.

Numa análise preliminar, percebo que a composição de sua equipe coordenadora emerge como aspecto a ser questionado. Embora alguns dos autores envolvidos tenham abordado criticamente as smart cities, especialmente em relação a questões ambientais, identifico que a equipe é composta majoritariamente por pesquisadores nas áreas tecnológicas ou de gestão empresarial. Como resultado, o relatório oferece uma leitura relativamente tecnocrática e corporativa dos fenômenos urbanos. Também destaco que há falta de diversidade entre as entidades signatárias do relatório e dos grupos sociais consultados para sua elaboração.

O relatório foi elaborado a partir de opiniões de pesquisadores de áreas tecnológicas e administrativas, membros de entidades empresariais e representantes das gestões municipal e estadual. Ou seja, não participaram de sua elaboração: associações de moradores de Florianópolis, coletivos de ativistas locais, sindicatos de trabalhadores, pesquisadores do campo das ciências humanas, comunidades e favelas, entre outros grupos interessados, capazes de contribuir para o debate  acerca do que deve ser prioritário na construção de uma smart city.

Por se tratarem de processos recentes, tanto a digitalização da governança urbana quanto o desenvolvimento das smart cities encontram-se em estágios incipientes, muitos deles ainda experimentais. Isso torna desafiador avaliar com precisão quais práticas podem ser verdadeiramente bem-sucedidas em termos de representatividade e participação popular. No entanto, diversas pesquisas têm explorado metodologias que podem ser aplicadas para promover resultados mais democráticos e inclusivos na formulação de políticas para smart cities. Essas metodologias poderiam ser, por exemplo, propostas e testadas em Florianópolis.

Mas para o caso da Smart Floripa 2030, o centro das preocupações parece ser as empresas de tecnologia e inovação. Enfatiza-se a necessidade de diversificar as atividades econômicas em Florianópolis, que atualmente estão concentradas nos setores de turismo, comércio e serviços. A ideia de construir uma “ilha de inovação”, “distritos de inovação” e uma “capital da inovação” é recorrente ao longo do texto, destacando seu principal objetivo. O documento não visa simplesmente adotar tecnologias na construção e gestão das paisagens urbanas; pelo contrário, a aspiração é que Florianópolis se estabeleça como líder nacional na produção dessas tecnologias. Para alcançar isso, várias estratégias são apresentadas para atrair empresas de tecnologia e força de trabalho especializada.

Entre essas estratégias estão incluídos incentivos fiscais, mapeamento das principais instituições educacionais da cidade e destaque das vantagens de residir em Florianópolis. Isso inclui comparações dos altos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade com outras cidades brasileiras e promoção da ideia de que a população local é saudável e instruída. No entanto, é crucial observar que o documento negligencia completamente a vida urbana fora da ilha de Florianópolis, que compreende áreas menos turísticas e mais densamente povoadas e empobrecidas da Região Metropolitana. O relatório se concentra exclusivamente na porção insular, que historicamente recebe um volume maior de investimentos e tem uma oferta mais robusta de serviços essenciais.

Figura 1. Imagem aérea da Região Metropolitana de Florianópolis. Fonte: Google Earth.

A primeira parte do relatório Smart Floripa 2030 lista uma série de desafios enfrentados na cidade, que vão desde a conservação ambiental até questões de mobilidade urbana e habitação. No entanto, não são apresentadas recomendações concretas sobre como abordar esses problemas, e nenhum agente específico é designado como responsável por agravar essas questões. Para citar um exemplo, na seção de Área Construída e Infraestrutura do relatório, o déficit habitacional no município é reconhecido, assim como o alto número de residências desocupadas na cidade. Entretanto, não são apresentados caminhos para lidar com essa questão; apenas justifica-se que o Plano de Habitação Social de Florianópolis foi descontinuado por falta de financiamento.

O relatório frequentemente faz alusão a “ideias inovadoras”, mas a priori, não apresenta conteúdo verdadeiramente inovador. Não apenas carece de propostas para enfrentar os desafios urbanos de Florianópolis ou para melhorar a qualidade de vida de seus habitantes, mas também aparenta ser mais uma repetição de políticas neoliberais, onde: (1) há a influência predominante do setor empresarial na tomada de decisões, sendo esses agentes tratados como os mais capazes de definir estratégias diante das ameaças e oportunidades para o desenvolvimento (Lima Junior, 2003); (2) as políticas são formuladas de cima para baixo e; (3) os papéis desempenhados pelo setor empresarial e pelo Estado se confundem e se harmonizam.

Pelo menos duas questões preocupantes surgem ao aprofundarmos a análise da agenda urbana da Smart Floripa. Em primeiro lugar, como priorizar as necessidades básicas das pessoas no processo de construção de smart cities? Em segundo, o que os habitantes de Florianópolis desejam para o futuro da cidade? A conclusão inevitável que deve ser enfatizada é que, de acordo com a agenda atual de Smart Floripa 2030, o “bem comum” deve estar subordinado aos interesses de mercado.

Os próximos passos de minha investigação incluem um aprofundamento do processo de elaboração do relatório, por meio de entrevistas, para expandir minha análise para além de somente o conteúdo resultante da elaboração em si. Além disso, planejo fazer estudos em campo em localidades de Florianópolis que são indicadas no relatório como pontos de referência material, que podem orientar e inspirar projetos alinhados com o ethos smart.

Figura 2: Paisagem da área central de Florianópolis. Fonte: Câmara de Comércio Brasil-España, “Florianópolis, un modelo de ciudad inteligente”.

Gregório Ayala é doutorando em Geografia pela Universidade de Federal de Santa Catarina e visitante no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Seus principais interesses de pesquisa incluem: estudos urbanos, tecnologia, segregação espacial, governança, políticas públicas e lutas por habitação.

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