O que conta enquanto “extensão” em ciências sociais? Reflexões a partir da Caravana pelo Direito à Habitação

Por: Simone Tulumello

Em 2020, o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa) lança a primeira edição do prémio Extensão em Ciências Sociais (ECS). O prémio, de acordo com o regulamento, tem «como objetivo valorizar atividades de extensão inovadoras desenvolvidas, individualmente ou em equipa, por investigadores e/ou estudantes do ICS, constituindo uma forma de retribuir e compensar esses investigadores pelo empenho que dedicam a este tipo de atividades». A “extensão universitária” (em inglês, outreach) inclui todas as atividades da academia “fora da academia”: por um lado, a comunicação científica, isto é, as ações que visam divulgar as atividades académicas para o público em geral (este blogue é um excelente exemplo); e, por outro, nas palavras do regulamento do prémio ECS, as «atividades de extensão para a comunidade (iniciativas orientadas para, ou desenvolvidas com, a comunidade e stakeholders)», isto é, atividades em que a academia colabora com atores não académicos na promoção de vários objetivos. Nesta segunda categoria, o regulamento inclui várias atividades, principalmente ligadas à promoção de políticas públicas (p.ex. audições parlamentares, pareceres), à promoção da cultura científica (p.ex. estágios de ocupação científica, ações de formação) e à responsabilidade social. O tema deste post é uma das atividades incluídas na lista: “ações de intervenção social”.

Damos um salto atrás, para o mês de setembro de 2017, quando a Caravana pelo Direito à Habitação atravessa Portugal para dar «visibilidade às questões da habitação em Portugal, às grandes carências e precariedade persistentes, afirmando e juntando a voz das populações que têm sido esquecidas, ignoradas, excluídas». A Caravana, que em quatro fins de semana visitou bairros na região de Lisboa, em Coimbra, Beja, Porto e São Miguel, aconteceu no ano em que o país acordava para a dura realidade de uma crise de habitação que, no entanto, se tornou no problema mais premente para quem vive e trabalha em Portugal. Enquanto, nesse ano, o então primeiro-ministro António Costa declarava que a nova prioridade era a habitação para as classes médias, a Caravana tinha entre os objetivos dar liderança às vozes dos grupos sociais que sempre foram excluídos do sistema de habitação, principalmente os grupos migrantes e racializados. Foi em quatro bairros precários e de habitação social, habitados primariamente por populações oriundas das ex-colónias portuguesas, que se deu a Assembleia que deu o pontapé de saída para uma mobilização chave na construção do movimento pelo direito à habitação em Portugal.

Entre a pluralidade de subjetividades que animaram a Caravana estavam também muitos investigadores e investigadoras universitários, que participavam em organizações como Habita – Associação pelo Direito à Habitação ou Chão – Oficina de Etnografia Urbana. Entre estes, alguns eram investigadores no ICS-ULisboa: eu próprio, Simone Frangella, Roberto Falanga, Andy Inch e Rita Silva. As formas de participar eram diferentes: alguns e algumas de nós estavam entre as pessoas que lideravaml a Caravana, outros participavam através de grupos ativistas, outros ainda foram convidados para contribuir para a mobilização com as suas competências académicas.

Quando decidimos partilhar dentro do ICS-ULisboa as notícias que estavam a sair na imprensa sobre a Caravana e a nossa participação, houve alguns mal-entendidos com as pessoas responsáveis pela comunicação: a participação em mobilizações sociais não era, de acordo com uma certa perspetiva, algo que se pudesse considerar enquanto atividade de “extensão”, como nós achávamos.

Essa experiência foi o pontapé de saída para uma reflexão que quisemos levar em frente quando o ICS-ULisboa criou a Comissão de Extensão Universitária e começou a preparar o Prémio ECS. Numa sessão de discussão organizada no contexto dos seminários Responsible Research and Innovation, defendipartilhei a natureza “ativista” de qualquer processo de investigação social: o meu argumento, só parcialmente provocatório, foi que a investigação sobre temas sociais e políticos tem sempre efeitos sobre as dinâmicas políticas – isto é, tem os mesmos efeitos que o ativismo tem como objetivo; portanto, trata-se de reconhecer a posicionalidade política e ativista específica de cada processo de investigação.

Nem todos concordaram, claro. A questão era defender que a definição de extensão no ICS-ULisboa fosse aberta às diferentes sensibilidades sobre o tema: inclusive à de quem considera possível, e positivo, fazer investigação em contextos ativistas. A inclusão das “ações de intervenção social” na lista de atividades reconhecidas no ICS-ULisboa como extensão vem precisamente daí.

Em 2020, o nosso trabalho na Caravana recebeu o prémio ECS na categoria “atividades de extensão para a comunidade”. O júri justificou o prémio à Caravana «pela sua originalidade e relevância, através da aproximação entre academia e grupos historicamente subalternizados e colaboração em processos de empoderamento dos mesmos». Considero esse prémio um reconhecimento, mais do que do nosso trabalho, de uma forma de entender a relação entre academia e sociedade – um sucesso na abertura do ICS-ULisboa para formas de trabalho académico que importa promover, acho.

No final de 2023, saiu, pela editora Outro Modo, o livro A Caravana pelo Direito à Habitação: Da mobilização à construção de um movimento, escrito por alguns dos que ganharam o prémio (eu, Simone Frangella, Rita Silva e Roberto Falanga) com Jannis Kühne. O livro conta a história da Caravana e o seu papel na construção do movimento pelo direito à habitação em Portugal. Um capítulo é dedicado às subjetividades dos “académicos ativistas” que participaram na mobilização – uma reflexão que continua.

Figura 1. A Caravana pelo Direito à Habitação: Da mobilização à construção de um movimento.

Simone Tulumello é investigador auxiliar em geografia no ICS-ULisboa. Os seus interesses se colocam na fronteira entre geografia humana, estudos urbanos críticos e economia política: habitação; violência e segurança urbanas; imaginários urbanos. Tem especial interesse nas trajetórias dos contextos semiperiféricos, com experiência de campo no Sul da Europa, no Sul dos EUA e Argentina.

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