A recuperação das “ilhas” no Porto: partir as gavetas para repensar o espaço comum

Por Roberto FalangaAitor Varea Oro

Quando em 1994 Isabel Guerra publicou o artigo “As pessoas não são coisas que se ponham em gavetas” no nº 20 da revista Sociedade e Território, o objetivo era despertar a atenção para as questões habitacionais do país à luz do arranque do Programa Especial de Realojamento (PER) ocorrido em 1993. A este programa seguiram-se outros planos e intervenções pontuais neste domínio, como a Lei 91/95 (alterada pela Lei 70/2015) sobre as Áreas de Génese Ilegal (AUGI) e, em 2005, a Iniciativa Bairros Críticos (IBC), aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 143/2005. No entanto, a discussão em torno do desenho e das modalidades de realojamento, e da habitação em geral, continuou presente no debate público, embora de forma tímida quando comparada com o que se verifica atualmente.

O debate sobre o direito a uma habitação condigna voltou a marcar a agenda política nacional, com a nova estratégia de políticas de habitação anunciada pela Secretaria de Estado da Habitação, e já mencionada por João Ferrão neste blogue, e a preparação de uma nova lei de bases da habitação, anunciada pela deputada do Partido Socialista Helena Roseta nos finais de 2016. Recentemente, o Fórum da Habitação: Ausências Passadas, Presenças Futuras, em que participaram representantes políticos, técnicos municipais, membros da academia e ativistas, contribuiu para salientar como as problemáticas que as novas medidas que o  Governo está prestes a adotar precisarão de abordagens complexas e multinível perante as múltiplas carências ainda existentes no território nacional (ver post de Simone Tulumello neste blogue).

Ainda a este respeito, a Caravana pelo Direito à Habitação, uma iniciativa que desde 2017 junta moradores, grupos de ativistas e académicos, desempenhou um papel fundamental na denúncia de carências habitacionais pelo país. Entre os casos assinalados pela Caravana, as “ilhas” existentes na zona Oriental do Porto destacaram-se por, em muitos casos, se caraterizarem ainda hoje por condições de extrema precariedade estrutural e de insalubridade. As “ilhas” são estruturas habitacionais produzidas durante o período da industrialização do país, sobretudo na cidade do Porto, localizadas no interior dos quarteirões das zonas de expansão burguesa da cidade oitocentista, e que consistem em estreitos corredores de uso comum com acesso, de um ou dois dos seus lados, a diminutas casas de aproximadamente 16m2, faltando-lhes, em muitos casos, casa de banho própria. A Caravana recolheu testemunhos de escassa, se não nula, manutenção pública das casas e situações graves de precariedade habitacional. Os moradores apontaram ainda o aumento exponencial do custo da habitação e a desregulamentação do mercado de arrendamento na cidade do Porto como fatores que ameaçam a qualidade de vida e a possibilidade de mobilidade social.

Ora, havendo moradores que reclamam o direito de aceder a serviços básicos, muitos afirmam também que as “ilhas” representam o seu sítio de pertença, um lugar onde gostariam de continuar a viver desde que as condições de habitabilidade sejam melhoradas. Anseios e preocupações em torno das “ilhas” confirmam que os objetivos de inclusão social dificilmente poderão ser intervencionados a partir de uma visão meramente material e de curto-prazo do alojamento. Pelo contrário, uma análise crítica das “ilhas” deverá conjugar a sua evolução histórica com o atual debate sobre as novas políticas de habitação no país.

A este respeito, é indispensável mencionar o papel desempenhado pelo processo Serviço Ambulatório de Apoio Local (SAAL), o qual colocou a complexidade da questão habitacional no centro do debate nacional no contexto pós-revolução 1974. Se, de forma semelhante ao PER que o sucedeu quase 20 anos depois, a preocupação principal incidia sobre as questões da habitabilidade e salubridade, outros elementos chave foram introduzidos pelo SAAL numa abordagem diametralmente oposta à do PER, tal como a posse do terreno e a formulação de políticas do habitar. No Porto, e na redefinição do que comummente eram entendidos como “bairros de lata”, o SAAL atuou ou esteve prestes a atuar nas “ilhas”, e tornou-se um dos instrumentos para reclamar o direito à cidadania plena. O programa contribuiu para que o estigma associado às “ilhas” fosse substituído por uma revalorização da sua centralidade urbana, uma mudança que não pode ser entendida sem mencionar a influência que a matriz da Escola de Arquitetura do Porto teve na forma de pensar a cidade e a sua vivência. Como legado do SAAL chega-nos a validação das “ilhas” como modelo patrimonial, a valorização do comunitário como elemento distintivo destes lugares, a ligação entre desenvolvimento “de baixo para cima” e a democratização da produção do espaço urbano, e a possibilidade da prática arquitetónica contribuir para construir a favor da identidade cultural dos lugares em que intervém. Mais do que uma abordagem formal, o SAAL visou ser uma ferramenta de agrupação da procura capaz de orientar a prática arquitetónica para torná-la cúmplice da transformação social (e não da preservação do status quo).

A progressiva divergência entre direitos e interesses em torno da habitação torna-se evidente nas “ilhas”, onde continua a exercer-se uma certa violência sobre os seus habitantes: se no passado estas estruturas representavam soluções “de fim de linha” para uma população que não dispunha de outra alternativa habitacional, hoje a precariedade física desses locais coexiste com o medo de expulsão como consequência da ação maciça dos grupos de investimento imobiliário. Deparamo-nos desde logo com uma primeira encruzilhada: será justo intervir nas “ilhas” e correr o risco de estas se tornarem apetecíveis para os interesses do mercado e do alojamento local, levando, na maioria dos casos, à substituição dos residentes atuais por inquilinos com maior poder económico? Ou será melhor não intervir, preservando as “ilhas” de uma transformação radical, mas também deixando que os seus residentes continuem a viver em condições precárias? Haverá uma terceira opção?

O trabalho que o Habitar Porto tem vindo a desenvolver nos últimos anos na cidade do Porto possui como um dos seus eixos de reflexão e intervenção a recuperação de “ilhas”. Recuperar “ilhas” significa alargar o foco de análise para além da mera qualidade construtiva dos seus fogos, colocando em perspetiva histórica pressupostos que estruturaram alguns dos programas nacionais em matéria de habitação, e retirar aprendizagens que permitam perceber as intervenções não só em termos de “objetos arquitetónicos”, mas também como forma de coser o território e corrigir os seus desequilíbrios. Em linha com a abordagem de transformação social promovida pelo SAAL, foi lançado o concurso “Pensar, Construir, Habitar” em novembro de 2017 pelo Habitar Porto em parceria com a Junta de Freguesia de Campanhã. O local de intervenção é uma das “ilhas” da operação SAAL-Antas que não chegou a ser intervencionada, estando o arquiteto responsável por aquela brigada entre os elementos do júri. Este é chamado a escolher uma proposta que responda à necessidade de a nova proprietária da “ilha” controlar os custos de recuperação do património, e dos novos inquilinos acederem a habitação a custos justos. Trata-se do primeiro concurso que, a nível nacional, desafia os profissionais de arquitetura a procurar soluções de projeto que democratizem o acesso tanto à produção como ao usufruto do espaço urbano.

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Ilha das Antas 52, Porto (fonte: Habitar Porto)

A iniciativa decorre em duas fases, encontrando-se neste momento na fase de avaliação das 14 propostas submetidas. Aproveitando os interesses não lucrativos da proprietária, o concurso pretende levar para o “centro” valores que hoje se encontram, por vezes, na periferia do pensamento arquitetónico. A recuperação não deverá contemplar alojamento local, mas sim a inclusão num mesmo espaço de pessoas com estatuto social e condições económicas diferentes, misturando regimes de rendas condicionadas e de custo livre. As intervenções deverão estar em conformidade com as regras legais vigentes, de modo a garantir a boa execução das obras e a resolver a situação de limbo urbanístico que carateriza as “ilhas”. Finalmente, exigem-se soluções que considerem a acessibilidade e a redução de barreiras arquitetónicas, o que se traduz na exigência de áreas generosas que contrariam tanto as exíguas dimensões das “ilhas” como a atual tendência do mercado para maximizar o lucro minimizando a dimensão das frações.

Resta perceber o que será então um bom projeto de recuperação para esta “ilha”, num país onde a habitação volta a ser tema crucial de debate e onde as grandes cidades são chamadas a governar da melhor forma novos fluxos imigratórios, investimentos de capitais externos e especulação imobiliária. A tipologia de casas abre, intuitivamente, ao interesse de pessoas seniores, assim como de jovens casais e quaisquer pessoas que não procurem necessariamente grandes áreas de habitação. Os perfis sociodemográficos dos futuros moradores não poderão ser entendidos ignorando as grandes transformações em curso na cidade do Porto e no país, isto é, a exigência de acesso a habitação condigna e a saída de centros históricos atacados pela especulação imobiliária. O que poderá ser o espaço comum para pessoas que vêm de contextos diferentes, com interesses e estilos de vidas por vezes opostos ou, no mínimo, contrastantes? Como articular, ou até agregar, os mais diversos desejos, anseios e medos de antigos e novos inquilinos? Por fim, como inventar uma nova ideia de espaço comum sem que esta fique presa a falsos idealismos e esteticismos?

A reconfiguração do espaço comum da “ilha” requer a articulação de múltiplos espaços de encontro e confronto, destacando-se o espaço simbólico onde os interesses da proprietária, dos arquitetos projetistas, da autarquia e dos inquilinos se encontram, assim como o espaço de partilha entre moradores dentro dos muros que delimitam a própria “ilha”. Reconfigurar o espaço comum desafia ainda uma certa rigidez técnica e burocrática de administração central e local para com a habitação, e a fragmentação de laços sociais em sociedades que por vezes não procuram, ou já não são capazes de procurar, vida comunitária. Coloca-se, portanto, o desafio de reconfigurar um espaço de e para a comunidade, um espaço de partilha onde seja possível sair de, ou partir, as “gavetas” da habitação. Este desafio não se coloca apenas a este concurso ou a esta “ilha”. No entanto, este concurso tem o mérito de frisar que as “ilhas” não são apenas um objeto degradado, mas lugares históricos e simbólicos a partir dos quais é possível repensar a urbanidade. Questiona-se não apenas a missão social da arquitetura, mas também a função do arquiteto juntamente com outros profissionais e académicos, numa sociedade que precisa de análises complexas para soluções construtivas e sociais adequadas. As “ilhas” obrigam-nos, de certa forma, a refletir sobre o tipo de sociedade que somos num contexto urbano que se transforma a um ritmo acelerado, e que exige que valores e direitos do habitar voltem a estar no centro da agenda política nacional.


Roberto Falanga é investigador no ICS-ULisboa e membro do Júri do Concurso ‘Pensar, Construir, Habitar’. roberto.falanga@ics.ulisboa.pt

Aitor Varea Oro é investigador no MDT-CEAU-FAUP e coordenador do programa ‘Habitar Porto’

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