Por David Travassos
As Áreas Protegidas, tal como as demais áreas classificadas, albergam a maior riqueza do património natural e paisagístico do país, sendo fundamentais pelos serviços de ecossistemas que prestam e são a essência da própria ‘identidade natural’ do território. Apesar disso, sofrem de um historial já longo de múltiplos défices: de recursos humanos e financeiros, de fiscalização, de ações de conservação da natureza e restauro ecológico de habitats. E não têm merecido a atenção devida do poder político, dos media e da opinião pública.

Este texto é composto por duas partes: a primeira faz uma contextualização da Rede Nacional de Áreas Protegidas; a segunda reúne um conjunto de reflexões sobre a sua realidade em Portugal.
As Áreas Protegidas são uma ferramenta basilar das políticas de conservação da natureza e da biodiversidade. A criação do Parque Nacional de Yellowstone, nos EUA, em 1872, é o primeiro marco da história das Áreas Protegidas a nível mundial. Hoje, estas áreas cobrem no total cerca de 15% da superfície terrestre do planeta e perto de 12% dos oceanos e das áreas marítimas sob jurisdição de países (ver Protected Planet Report 2014). A maioria das espécies de plantas e de animais depende dos seus habitats naturais, que por sua vez estão integrados num conjunto diverso de ecossistemas da Terra. Perante a contínua destruição ou adulteração dos habitats naturais pelo homem ao longo da sua história, e da redução ou extinção de muitas populações de plantas e animais selvagens, impôs-se a necessidade de se protegerem áreas fulcrais para a salvaguarda de espécies e habitats, sem que isso signifique reduzi-las a ilhas rodeadas de territórios ecologicamente degradados.
Um século depois de Yellowstone, foi criada em 1971 a primeira Área Protegida em Portugal: o Parque Nacional da Peneda-Gerês. Mas foi em 1975, com a criação do Serviço Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico – o primeiro predecessor do atual Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) –, que se expande e consolida a hoje designada Rede Nacional de Áreas Protegidas (RNAP).
Alguma informação contextual sobre a Rede Nacional de Áreas Protegidas e Sistema Nacional de Áreas Classificadas
Atualmente, as Áreas Protegidas ocupam cerca de 8% do território nacional (continental) distribuindo-se por 46 áreas diferentes: 32 áreas de âmbito nacional, 7 de âmbito regional, 6 de âmbito local e uma de estatuto privado (ver mapa). São assim classificadas as áreas que apresentem uma relevância especial – natural (habitats, fauna e flora), geológica e paisagística – que implique medidas específicas de conservação e gestão, beneficiando de um quadro legal de proteção para assegurar a manutenção da biodiversidade, dos serviços dos ecossistemas, do património geológico, incluindo também a valorização da paisagem. Estas áreas compreendem estruturas de direção e gestão, serviços técnico-científicos e de vigilância, e planos de ordenamento acompanhados por regulamentos que definem as regras de uso e ocupação do solo.
Mapa da Rede Nacional de Áreas Protegidas (em Portugal Continental)

As Áreas Protegidas de âmbito nacional são criadas e geridas pela autoridade nacional de conservação da natureza (o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas – ICNF), enquanto as de âmbito regional ou local são criadas e geridas por municípios ou associações de municípios. As áreas de âmbito privado são propostas e geridas pelos respetivos proprietários. Todavia, a designação das Áreas Protegidas de âmbito regional, local ou privado é sempre atribuída, segundo determinados requisitos e critérios, pelo ICNF.
Para além das Áreas Protegidas ‘convencionais’, existem outros estatutos de classificação. Na União Europeia foi configurada a Rede Natura 2000. É a designação de uma rede comunitária de áreas classificadas que representam os habitats, espécies de plantas e de animais características da biodiversidade europeia (e de conservação considerada prioritária). A rede resulta da junção de duas categorias de áreas que se podem sobrepor, inclusive com as demais Áreas Protegidas de cada país: os Sítios de Interesse Comunitário (SIC), ao abrigo da diretiva “Habitats”, e as Zonas de Proteção Especial (ZPE), ao abrigo da directiva “Aves”. Portugal tem 62 SIC e 42 ZPE [para mais informações sobre a Rede Natura 2000 em Portugal, clicar aqui], que juntamente com a RNAP abrangem cerca de 22% do território nacional (continental).
Sistema Nacional de Áreas Classificadas em Portugal Continental

Considerando ainda outras áreas classificadas em Portugal ao abrigo de compromissos internacionais (de âmbito supracomunitário), e que se podem justapor com os outros estatutos de classificação atrás apresentados, é de referir ainda, e sobretudo, as Reservas da Biosfera da UNESCO e os Sítios Ramsar (estes no âmbito da Convenção das Zonas Húmidas com interesse internacional para as aves aquáticas – Convenção de Ramsar).
O conjunto da Rede Nacional de Áreas Protegidas e das outras áreas classificadas ao abrigo de compromissos internacionais assumidos pelo Estado Português – sobretudo áreas de Rede Natura 2000 (SIC e ZPE), Reservas da Biosfera e Sítios Ramsar – constitui o Sistema Nacional de Áreas Classificadas, que por sua vez, juntamente com as ‘áreas de continuidade’ de Reserva Ecológica Nacional (REN), Reserva Agrícola Nacional (RAN) e domínio público hídrico, compõe a Rede Fundamental de Conservação da Natureza.
Como nota, no âmbito do seminário “Áreas Protegidas: Que Modelo de Gestão?” ocorrido em Março de 2017 no Instituto de Ciências Sociais (ICS), organizado pelo OBSERVA e pelo Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CNADS), foi publicado um policy brief sobre este tema que está disponível on-line, e que inclui, por exemplo, informação sobre a evolução do quadro legislativo e dos modelos de gestão e direção das Áreas Protegidas em Portugal.
Problemas e desafios
Ao longo dos últimos 25 anos da história das Áreas Protegidas em Portugal, é de realçar uma série de problemas e desafios estruturantes para o seu futuro, alguns dos quais se traduzem em debilidades estruturais que se arrastam há muito tempo e que teimam em permanecer, enquanto outros se impuseram recentemente:
- Conversão dos Planos Especiais de Ordenamento do Território (que incluem os Planos de Ordenamento das Áreas Protegidas) em Programas Especiais de Ordenamento do Território.
- Défice de recursos humanos e financeiros.
- Défice de fiscalização.
- Défice de monitorização das espécies e habitats, bem como de ações de conservação da natureza e restauro ecológico.
- Défice de educação e sensibilização ambiental e de interpretação do património natural.
- Desinteresse manifestado pelo poder político (nacional e local), pelos media (sobretudo televisivos) e pela opinião pública.

De Planos Especiais de Ordenamento do Território a Programas Especiais de Ordenamento do Território
Com repercussão direta na gestão das áreas protegidas é de salientar a conversão em curso, por imposição determinada pela Lei n.º 31/2014 (Lei de Bases da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo), dos Planos Especiais de Ordenamento do Território – incluindo, portanto, os Planos de Ordenamento de Áreas Protegidas (POAP) – em ‘meros’ Programas Especiais de Ordenamento do Território. Assim, por obrigação legal, os conteúdos dos POAP são vertidos nos Planos Diretores Municipais (PDM). Ao contrário dos POAP, os Programas vinculam apenas a administração pública e não os particulares, passando estes ser vinculados unicamente pelos PDM.
Para além das já manifestadas dificuldades de exequibilidade desta transposição, e com base também na experiência-piloto do novo modelo de gestão a ser ensaiado no Parque Natural do Tejo Internacional, é manifesto o receio de um processo tendente à ‘municipalização’ das áreas protegidas, que por génese, ao defenderem valores patrimoniais de interesse nacional e internacional – habitats, fauna e flora, paisagens, valores geológicos – revelam um carácter supramunicipal e só nesta lógica tem sentido serem geridos. Tomemos, a título de exemplo, o caso do Parque Nacional da Peneda-Gerês, abrangido por cinco concelhos – perante a realidade natural em causa, que não obedece a fronteiras administrativas, tem sentido a continuação da sua gestão como um todo, e não como um somatório espartilhado por cada visão municipal (e dos seus interesses) sobre a sua parcela.
É assim imperativa, tal como defende o CNADS, a reversão do processo em curso e a manutenção dos POAP na sua condição de Planos Especiais de Ordenamento do Território – respeitando a importância nacional e internacional dos valores em causa e, como tal, de lógica e dimensão supramunicipal – e vinculativos dos particulares.
Défice de recursos humanos e financeiros, de fiscalização, de monitorização de espécies e habitats, de ações de conservação da natureza e restauro ecológico
O estrangulamento financeiro e de meios do ICNF é uma realidade que tem atravessado os ciclos políticos, já se revelando aliás bem antes da crise financeira que afetou o país recentemente. A quase penúria a que tem sido votado o ICNF tem comprometido grandemente a missão da Rede Nacional de Áreas Protegidas (e sem referir outras dimensões, como a avaliação de desempenho dos seus dirigentes ou as interferências políticas hierarquicamente superiores). A situação chegou ao ponto de, por exemplo, em 2004 terem sido cortadas as chamadas telefónicas nas Áreas Protegidas por dívidas acumuladas. Ainda no início de 2017, o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, uma das maiores Áreas Protegidas do país (com cerca de 110 quilómetros de linha costeira) e que engloba um património natural de valor internacional (incluindo diversas espécies endémicas de plantas e, por definição, apenas presentes nesta região em termos mundiais), contava apenas com dois vigilantes da natureza. Esta incúria é condenável face aos parâmetros mínimos exigíveis às responsabilidades do Estado. No entanto, aguarda-se que a entrada de 20 novos vigilantes no final de 2017 e de mais 30 em 2018 inicie um novo capítulo num domínio essencial para a eficácia da gestão das Áreas Protegidas.
Por outro lado, há um défice de monitorização dos valores naturais destas áreas, sobretudo dos habitats e espécies de conservação prioritárias. É um pré-requisito essencial e mesmo básico para o desempenho dos parques e reservas naturais – essa avaliação contínua deveria nortear as suas ações ou os seus planos de atividades ou de gestão (e estes existem?). O mesmo se passa com ações de conservação da natureza e de restauro ecológico de habitats – por exemplo, de áreas dominadas por espécies exóticas invasoras, como as diferentes espécies de acácias (Acacia sp.) provenientes da Austrália que invadiram importantes áreas florestais, ocupando de ano para ano cada vez mais território, e onde se tornaram quase a única espécie vegetal, ou os chorões-das-praias (Carpobrotus edulis), uma espécie proveniente da África do Sul que se alastrou pela maior parte da linha costeira de norte a sul do país.
Défice de educação e sensibilização ambiental e de interpretação do património natural
É fundamental que as Áreas Classificadas desempenhem também a função central de educação ambiental (de promoção do seu património natural, paisagístico, geomorfológico e cultural) dirigida aos seus residentes e visitantes, e ao público em geral, com estratégias próprias, valorização das infra-estruturas existentes e procura de novas soluções. Um padrão preocupante e constante ao longo das últimas décadas, quando tanto já poderia ter sido feito, é o desconhecimento profundo dos cidadãos em geral, e dos residentes nas áreas classificadas em particular, sobre a sua importância e o património que albergam.
A este nível, e no caso específico das Áreas Protegidas, todas deveriam estar equipadas com centros de interpretação / informação, e em pleno funcionamento. Há áreas com mais de 25 anos que continuam sem ter um centro de interpretação; outras têm-no mas encontram-se desativados ou encerrados aos fins de semana (quando podem ser visitados pela maioria das pessoas). Estes centros deveriam ser infra-estruturas centrais na relação entre as Áreas Protegidas e o sistema de ensino (escolas) que se encontram na sua área de influência, e onde os alunos (e professores) poderiam deslocar-se em visitas de estudo e no âmbito de projetos e parcerias.
De uma forma mais abrangente, e reconhecendo o papel estratégico dos media na formação e informação da opinião pública, os media de ‘serviço público’, da TV à rádio, devem ser envolvidos na criação e emissão de mais programas e espaços dedicados à conservação da natureza e da biodiversidade (ao património natural português), incluindo as áreas classificadas – sem esquecer a abordagem das sua importância, dificuldades e problemas – e em ‘horário nobre’. Neste domínio também deveria envolver-se a participação de órgãos privados de comunicação social, nomeadamente de TV (como contributos no âmbito da responsabilidade ambiental das empresas).
Falta criar um ‘espírito de identidade’ para cada uma das Áreas Protegidas, passando estas a ser reconhecidas como um referencial territorial comum de valores naturais, culturais e paisagísticos por parte dos seus habitantes, numa lógica supramunicipal. Mas estas áreas nem sequer possuem um sítio-web próprio, nem qualquer publicação periódica ou uma simples newsletter, faltando a organização das mais variadas iniciativas, como exposições sobre os seus valores naturais (itinerantes ou não pelos municípios das respetivas áreas). Salvo raras exceções – como por exemplo a criação de algumas áreas protegidas de âmbito local (e sem avaliar a qualidade do seu desempenho) –, são décadas de desinteresse, de falta de iniciativas e de vontade política a nível nacional e municipal.

Desinteresse manifestado pelo poder político (nacional e local), pelos media (sobretudo televisivos) e pela opinião pública
Durante 2017, e segundo dados do ICNF, arderam cerca de 20 mil hectares no Parque Natural da Serra da Estrela (PNSE) – o equivalente a duas vezes a área do concelho de Lisboa e a quase um quarto da superfície total do próprio PNSE. E praticamente todos os anos ardem centenas ou milhares de hectares na mesma área. O mesmo se passa no Parque Natural do Douro Internacional ou no Parque Nacional da Peneda-Gerês, com recorrentes incêndios que vão consumindo diferentes áreas. Em ambos os casos, qual foi a superfície total afetada nos últimos 10-15 anos? Provavelmente cerca de metade ou mais das suas áreas… Em 2017, os incêndios causaram um duro golpe na Paisagem Protegida da Serra do Açor, que inclui a Mata da Margaraça, e consumiram na totalidade a Reserva Botânica do Cambarinho, na serra do Caramulo (ambas, jóias da coroa do património natural nacional), e cerca de 72% da área do Monumento Natural das Portas de Ródão e 52% da Paisagem Protegida da Serra da Gardunha…
E outros problemas ameaçam as Áreas Protegidas, como as pedreiras que descaracterizam o Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros, e no Parque Natural da Arrábida, uma delas, de grande dimensão, continua a lavrar mesmo ao lado da maior arriba costeira de Portugal Continental, indiferente à singularidade monumental deste local e aos diversos estatutos de classificação desta área. Ou, por exemplo, a pressão urbanística no Parque Natural de Sintra-Cascais, onde a construção dispersa já domina a paisagem a norte da serra de Sintra.
No entanto, estas realidades, as respectivas consequências ambientais e a delapidação do património natural continuam sem merecer grande destaque nos media (sobretudo televisivos). O padrão alastra-se ao debate público nacional e a outras matérias, como as questões anteriormente elencadas: a conversão dos Planos Especiais de Ordenamento do Território (que incluem os Planos de Ordenamento das Áreas Protegidas) em Programas Especiais num caminho que abre mais portas à ‘municipalização’ das Áreas Protegidas, o défice de recursos humanos e financeiros, o défice de fiscalização, de monitorização dos valores naturais, de conservação da natureza e restauro ecológico de habitats, ou sobre os próprios valores em causa – o património natural e paisagístico, que para além das magnas funções ecológicas (os diversos serviços dos ecossistemas) possuem valor económico (turismo de natureza, por exemplo) e o seu próprio valor intrínseco. As Áreas Protegidas deveriam ser alvo de modelos pioneiros de desenvolvimento face ao resto do território, mas nem esse debate também tem lugar.
O silêncio quase crónico a que tem sido votada esta matéria ao longo das últimas décadas tornou-se parte do problema e não da solução – a discussão ou visibilidade continuam acantonadas a um círculo muito restrito de atenções. Atualmente, podem acontecer as maiores perdas de património natural sem que sejam notícia ou anotadas. É tempo de os media ampliarem o foco e contribuírem para dar a visibilidade que as Áreas Protegidas, a biodiversidade e o património natural merecem. Para mais num momento em que a par da ameaça das alterações climáticas à escala planetária (sendo a Península Ibérica uma das regiões do mundo mais afetadas), a crise global da biodiversidade chegou ao ponto de podermos estar a assistir à sexta extinção em massa conhecida da história da Terra, só que desta vez pela ação do homem, no que já é considerado como o novo período ou época do Antropoceno (ou Antropocénico).
Por mais pioneiro que seja em energias renováveis, um país que despreza, desconhece e não salvaguarda o seu património natural e biodiversidade, nem se dá conta da sua importância, não deixará de ser um país imaturo em matéria de ambiente e negligente face aos desafios atuais e ao conhecimento hoje existente.
David Travassos integra a equipa do OBSERVA (david.travassos@ics.ulisboa.pt)
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