Um novo rumo? O Fórum da Habitação no ICS-ULisboa

Por Simone Tulumello

João Ferrão salientou recentemente neste blogue como, após algumas décadas de marginalização, a habitação está a regressar ao centro da agenda política mundial. De facto, a habitação tem estado no centro da mobilização social nos anos recentes da crise (para um enquadramento, ver In Defense of Housing de David Madden e Peter Marcuse e a minha recensão em português), para depois começar a fixar-se, embora ainda de forma muito fraca, na ação de instituições internacionais como a ONU ou a UE. Em Portugal, com alguns anos de atraso, foi a retoma económica, mais do que a crise, que trouxe a habitação de volta às agendas política e pública: um crescimento económico assente no turismo e no setor imobiliário está a produzir, através da explosão do custo da habitação nos centros urbanos, novas precariedades habitacionais, que se somam a precariedades históricas (persistência de bairros informais, habitação social degradada, sobrelotação e ausência geral de soluções para as classes baixas e médio-baixas). Com mais visibilidade após a visita da Relatora Especial das Nações Unidas pela Habitação Condigna efetuada no final de 2016, multiplicaram-se os sinais sociais deste regresso (ver, por exemplo, a Caravana pelo Direito à Habitação). E também em Portugal assistimos a uma nova institucionalização do tema, evidente na criação, em julho de 2017, de uma Secretaria de Estado da Habitação, que está a trabalhar num pacote com diferentes medidas (a Nova Geração de Políticas de Habitação), enquanto a Assembleia da República prepara uma Lei de Bases da Habitação.

É neste contexto que a equipa do projeto exPERts (https://expertsproject.org/) decidiu organizar um Fórum da Habitação, cujo primeiro encontro, com o título Ausências Passadas, Presenças Futuras (coordenado por Roberto Falanga, Marco Allegra e Ana Rita Alves), ocorreu no ICS no dia 8 de janeiro de 2018. O objetivo do fórum era partir da experiência do passado – e em particular da análise do Programa Especial de Realojamento (PER), lançado em 1993 para realojar as famílias residentes em bairros autoconstruídos e objeto de estudo do projeto exPERts – para contribuir para a discussão sobre políticas para o futuro. O fórum pôs em debate académicos com experiência na área da habitação e do governo do território (Isabel Guerra, Nuno Serra, Isabel Raposo, Maria João Freitas, Jorge Malheiros e António Brito Guterres), ativistas (Rita Silva, pela associação Habita) e decisores políticos (a Secretária de Estado da Habitação Ana Pinho, a presidente do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana Alexandra Gesta, a deputada da Assembleia da República Helena Roseta e a vereadora da Câmara de Lisboa Paula Marques).

2018_Forum da Habitação ICS Janeiro (Rob Falanga)
O Fórum da Habitação. Fotografia de Roberto Falanga

O encontro foi aberto pelo coordenador do projeto exPERts, Marco Allegra, que apresentou o policy brief recentemente publicado pelo Observa, onde são resumidas algumas pistas para o futuro das políticas públicas de habitação em Portugal. Seguiram-se quatro painéis, dois dedicados a uma reflexão sobre o passado e dois a uma reflexão sobre o futuro – todos concluídos por um animado debate com a audiência. As conclusões ficaram a cargo de João Ferrão, que apontou nove pontos para articular as lições do passado com a preparação do futuro. É impossível resumir em poucas palavras muitas horas de debate; por esta razão, na parte final deste post vou basear-me algo livremente em alguns temas emergentes para enquadrar o estado do debate e as perspetivas para o próximo futuro que emergiram no Fórum – ver também um artigo em O Corvo.

2018_policy brief habitação (Simone)
O primeiro policy brief do exPERts, disponível no site do projeto.

Um tema recorrente ao longo de todo o dia foi a questão da continuidade/descontinuidade das políticas sobre habitação em Portugal. Nuno Serra refletiu sobre a forma como a habitação tem sido o elo fraco da construção do estado social no Portugal democrático –em contraste, por exemplo, com a educação, a saúde e a segurança social, o orçamento público para as políticas de habitação encontra-se basicamente estagnado desde 1974.

2018_evolução despesa_PIB (Fig 3 Simone)
Evolução de vários componentes da despesa pública em percentagem do PIB (1972-2012). Fonte: Observatório sobre Crises e Alternativas (dados DGO/MF e INE/BP).

Enquanto as outras áreas do estado social se foram constituindo como serviços universais, a habitação tem evoluído por “pacotes” (uma expressão utilizada por Maria João Freitas) que nunca se constituíram em “políticas” estruturais. A única verdadeira “política” – dotada de continuidade no tempo e universalidade no território nacional – foram os créditos bonificados para compra de casa própria: uma política que tem beneficiado a classe média e não os grupos mais vulneráveis, ou, melhor (como apontou Rita Silva), os promotores imobiliários, os construtores e os bancos, que retiraram vantagens do aumento do valor da habitação estimulado pelo fluxo de fundos públicos. Na ausência de uma visão estratégica, territorial e de longo prazo, a habitação se tornou um espaço de grande desigualdade, mas também de segregação e exclusão, às vezes de cariz étnica e racial (questões apontadas, por exemplo, por Isabel Raposo, Helena Roseta e António Brito Guterres).

João Ferrão evidenciou, nas conclusões, como as iniciativas mais importantes, inclusive o SAAL (programa pós-revolucionário de apoio ao melhoramento das condições habitacionais) e o PER, aconteceram em momentos sociopolíticos propícios e como consequência do trabalho de individualidades políticas, às vezes excecionais (o caso de Nuno Portas no pós 1974 é paradigmático). Se, de um lado, o momento presente parece ser caraterizado por uma convergência deste tipo, é porém importante sublinhar alguns fatores críticos.

O primeiro risco é a falta de continuidade, mais uma vez. Ou seja, a possibilidade de que venham mais “pacotes”, capazes de resolver problemas pontuais mas passíveis de serem revertidos num futuro próximo. Isso torna-se ainda mais problemático hoje em dia pela escala global dos desafios com que a habitação se defronta – mais evidente nos processos de especulação imobiliária, principalmente liderada por investimentos estrangeiros, nos centros urbanos. Muitos intervenientes no Fórum sugeriram, por isso, que será necessário repensar a regulamentação de fatores como o alojamento local ou os “vistos gold” – e mais, as regras de expropriação e direito de preferência das autarquias sobre a compra de imóveis – para reduzir a pressão que o turismo e a especulação estão a pôr sobre o parque habitacional. Em geral, como sugerem Madden e Marcuse, a questão será, em Portugal como no resto do mundo, voltar a considerar a habitação mais como um direito social (e um elemento fundamental de uma cidade mais justa) do que uma mercadoria passível de ser utilizada como instrumento de acumulação de capital – ou seja, reverter décadas de liberalização do mercado da habitação assente na promoção da especulação. Alguns avanços neste sentido poderão talvez vir da Lei de Bases da Habitação, cuja preparação Helena Roseta está a liderar. Porém, o primeiro-ministro António Costa  declarou recentemente que não está em causa a liberalização do mercado da habitação – e a própria deputada Helena Roseta frisou que será difícil encontrar consenso na Assembleia da República para modificar as normas sobre o alojamento local e os “vistos gold”.

Assim, fecharei este post com algumas perguntas e não com respostas. Conseguirão as medidas propostas pela secretária de Estado Ana Pinho e uma nova Lei de Bases (se for aprovada) constituir-se como um início de uma política de habitação que faça desta um direito como está inscrito no artigo 65 da Constituição Portuguesa? Ou, como sugeriu Rita Silva, este governo, enquanto cria algumas soluções pontuais, está a aprofundar as dinâmicas de transformação da habitação em mercadoria? O debate em torno destas perguntas é de cariz eminentemente político, mas vai necessitar também de investigação e de reflexão científica: é a hora de a habitação, com as suas contradições, lutas e problemas, voltar também ao centro do debate académico – e o grupo de investigação Ambiente, Território e Sociedade do ICS-ULisboa está empenhado nesse objetivo.


Simone Tulumello é investigador pós-doc no ICS-ULisboa e membro da equipa do projeto exPERts: Making sense of Planning Expertise (FCT PTDC/ATP-EUR/4309/2014). simone.tulumello@ics.ulisboa.pt 

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