Mobilizar as mais valias do planeamento a favor da construção de habitação económica?

Por Sónia Alves

No seguimento de outras publicações que neste blogue discutem o futuro das políticas de habitação em Portugal (Falanga, Tulumello, Ferrão) e de posts anteriores que sublinham a importância da análise comparada internacional para o aperfeiçoamento das políticas de habitação, reflete-se agora sobre as potencialidades do planeamento urbanístico na provisão de habitação económica, isto é de habitação destinada ao arrendamento social e ao arrendamento privado a preços acessíveis às famílias de classe média-baixa.

A reflexão estrutura-se em duas partes. Na primeira parte, a partir do uso de estatísticas oficiais, apresento evidências que demonstram a existência de problemas nos mercados de habitação e na situação económico-financeira das autarquias, que apelam, a meu ver, a uma nova abordagem na captura dos aumentos de valor do solo e dos edifícios que resultam de decisões e de ações do planeamento urbano. Na segunda parte, apresento o exemplo da Inglaterra, país onde prevalece uma agenda ideológica neoliberal, marcada pela crença na centralidade dos mercados, mas também um consenso alargado sobre a necessidade das autoridades locais, a bem da sustentabilidade económico-financeira das autarquias e da justiça social, utilizarem instrumentos de captura dos planning gain – como coloquialmente têm vindo a ser designados.

1. Sobre a necessidade de captura das mais-valias do planeamento e do licenciamento urbanístico

A Lei de Bases da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo define os objetivos, os princípios gerais e os procedimentos associados ao planeamento urbanístico. Ao nível local, são os planos territoriais que determinam as normas relativas à ocupação, uso e transformação do solo, condicionando, por isso, o seu valor económico no mercado. A alteração do estatuto jurídico do uso de solo rústico para uso de solo urbano consubstancia, especialmente em áreas urbanas, a criação de importantes mais valias para os proprietários. Ao longo das últimas décadas a permissividade das autoridades locais em relação à transformação (excessiva e arbitrária) de solo rural em solo urbano, causou não apenas o aumento excessivo dos perímetros urbanos, com também a destruição de diversos valores paisagísticos e arquitetónicos.

O aumento da construção de habitação não significou a resolução dos problemas do setor, mas antes o aumento de custos da administração com infraestruturação e construção de equipamentos públicos. Em algumas áreas verificou-se inclusivamente o aumento exagerado nos valores da habitação. Os dados do INE (2017) confirmam a existência de uma bolha especulativa nos preços da habitação nos municípios da Área Metropolitana de Lisboa e do Algarve, quer no arrendamento quer na compra da habitação própria, com o município de Lisboa a registar o preço de venda médio mais elevado, de 2 231 €/m2 (INE, 2017).

A informação disponível demonstra também que:

– apesar do elevado nível de investimento no mercado imobiliário nesses municípios, quer ao nível do número de transações de imóveis, quer de obras concluídas e licenciadas, mantém-se um elevado nível de endividamento líquido das autarquias;

– a maior parte do investimento no setor da construção e da requalificação urbana tem sido dirigido para o setor do turismo (comércio, restauração, alojamento temporário) e para um segmento de população estrangeiro com um elevado poder de compra, reduzindo as opções das famílias da classe média-baixa de acesso a uma casa adequada, em termos de espaço, comodidades e distância ao local de trabalho;

– as políticas públicas em Portugal têm incentivado o investimento privado estrangeiro no setor imobiliário nacional (ex. Golden Visa), ao contrário do que acontece noutros países, como a Dinamarca, onde a compra de habitação é proibida a estrangeiros, a menos que estes tenham vivido no país nos últimos cinco anos e façam dessa a sua residência permanente. A habitação de uso secundário ou sazonal em Portugal representa já 23% do parque habitacional nacional, o que corresponde, em termos percentuais, a cerca do dobro do registado na Dinamarca;

– a disponibilização de recursos públicos para alavancar investimentos privados no setor do turismo e da requalificação urbana (e. g. Iniciativa Jessica, IFRRU 2020), por oposição a investimentos no setor da habitação acessível e sem fins lucrativos, tem tido impacto no aumento dos preços de venda de edifícios que se destinam (crescentemente) a usos que competem com a habitação e, em particular, com o arrendamento de longa duração.

Em Lisboa, os efeitos desta tendência têm vindo a repercutir-se na perda da população residente. Entre 1981 e 2011, o município de Lisboa perdeu aproximadamente 250.000 residentes, o que equivaleu a 32,5% do total da população. Em 2011 residiam no município de Lisboa somente 536.859 indivíduos. A análise da duração dos contratos e valores das rendas nos períodos antecedente e posterior ao Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU) confirma um aumento da precarização nos contratos de arrendamento, em termos de redução da duração média e aumento dos valores da renda (Alves et al. 2017).

Em Portugal verifica-se que a proporção da população com custos em habitação superiores a 40% do rendimento disponível é mais elevada no caso dos inquilinos com rendas no mercado de arrendamento privado (35,9%). Um facto tanto mais preocupante quando se verifica que é precisamente neste sector que se registam os maiores aumentos nos valores das rendas e onde vive cerca de 39,3% do total das famílias de menores rendimentos.

Um outro dado interessante é que as taxas urbanísticas cobradas pelos municípios aos privados têm sido escassas para cobrir os custos da provisão de infraestruturas (Rebelo s/data, Condessa 2012), e que os recursos existentes ao nível local são insuficientes para a implementação dos objetivos considerados estratégicos ao nível do documento nacional de políticas de habitação (ver Nova Geração de Política de Habitação).

Os estudos de Alves & Rosa (2017) demonstram que a implementação do regime jurídico excecional da reabilitação urbana, criado pelo governo em 2004, tem permitido a aplicação de um sistema de isenção de taxas urbanísticas por parte das autarquias que, em vez da captação de recursos, tem permitido a transferência de importantes somas de dinheiro para as empresas privadas. Mesmo no caso de operações de renovação urbana que envolveram a criação de parcerias público privadas e a aplicação de importantes somas de dinheiro para cobrir custos com expropriação de terrenos e edifícios por ‘utilidade pública’, demolição ou construção de infraestruturas, as autoridades públicas não tiveram a coragem política e técnica de exigir aos privados a inclusão de habitação acessível às classes média-baixa, optando alternativamente por realojar os inquilinos de fracos recursos económicos em habitação social noutras áreas. A Operação das Cardosas é um caso paradigmático a este respeito (figura 1).

Sonia Alves post Foto 2 21 Mar 2018
Figura 1 – A operação das Cardosas no Porto (foto da autora).

2. O exemplo de Inglaterra

Em Inglaterra existe uma separação básica entre o direito de propriedade e o direito de desenvolvimento do solo. Por exemplo, um solo classificado como rústico, destinado a áreas agrícolas ou florestais, não pode ser usado para usos residenciais a menos que seja emitida uma licença por parte das autoridades de planeamento ao nível local. Na avaliação dos pedidos de licenciamento para a realização de obras de construção as autoridades locais consideram não apenas aspetos relacionados com a qualidade do projeto de arquitetura e de outras especialidades, como também os custos diretos e indiretos associados a essas operações, por exemplo para a realização, manutenção e reforço de infraestruturas, equipamentos coletivos e habitação económica (para arrendamento social, arrendamento privado e compra) acessível às famílias de classe média-baixa.

O princípio de inclusionary housing policy que em Inglaterra é implementado através da Section 106, do Town and Country Planning Act 1990, e do Community Infraestructure Levy (CIL), em execução desde 2010, tem permitido contribuições financeiras e em espécie para a provisão de habitação económica em operações conduzidas pelo mercado.

A avaliação da execução destes instrumentos tem demonstrado uma grande variabilidade de práticas ao nível local, mas também que em áreas de grande dinâmica construtiva (e.g. Londres e no Sul de Inglaterra) tem permitido a coleta de importantes recursos para a provisão de habitação económica, infraestruturas e equipamentos públicos (Lord et al., 2018), facilitando a mistura de regimes e tipos de habitação.

Sonia Alves post Foto 1 21 Mar 2018
Figura 2 – Houses under construction on Birkenhead, Merseyside, England. (Fonte da imagem, licença Creative Commons)

Termino defendendo a necessidade de um debate sobre a relevância da aplicabilidade destes instrumentos ao contexto local português com vista a garantir uma maior redistribuição dos benefícios e custos associados ao desenvolvimento urbano, e como forma de contribuir para a provisão de habitação económica.


Sónia Alves é atualmente Postdoctoral Fellow Marie Sklodowska-Curie na Universidade de Cambridge – Cambridge Centre for Housing and Planning Research, Department of Land Economy. É ainda visiting researcher no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa). Página pessoal. Email: sa823@cam.ac.uk

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