A procura de habitação a partir de uma perspetiva demográfica

Por Alda Botelho Azevedo

Desde o seu início, em 2016, e em resultado do destaque que assume na atualidade, o tema da habitação tem sido frequentemente tratado neste blogue. Este post contribui para este debate com uma reflexão sobre as dinâmicas demográficas na  procura de habitação em Portugal, com o propósito de melhor esclarecer e circunscrever os seus impactos.

Existe um consenso generalizado de que as tendências demográficas são determinantes na procura de habitação, consenso esse aceite no contexto da atual crise na habitação em Portugal e comummente epígrafe no enquadramento de políticas da habitação, como se verifica nos documentos da Nova Geração de Políticas da Habitação. Isso é preocupante se não forem claros o alcance e os limites da demografia na procura de habitação.

Foi neste desassossego que parti de um trabalho de Juan Antonio Módenes sobre as dimensões da análise da habitação em ambientes urbanos para escrever este post. O autor delimita as principais responsabilidades da demografia ao universo dos alojamentos familiares clássicos de residência habitual, o que se justifica porque, de uma forma simplista, os agregados familiares procuram solucionar as suas necessidades residenciais dentro das unidades disponíveis neste universo e exercendo as suas opções residenciais pelo menos quanto ao regime de ocupação, bem como ao tipo e ao tamanho do alojamento. O autor distingue três níveis de pressão demográfica sobre a procura de habitação: a) o volume da população; b) a sua distribuição etária; e os c) padrões de composição familiar.

a) A população residente num determinando período e território resulta do saldo entre a entrada de indivíduos (por nascimento ou imigração) e a saída de indivíduos (por morte ou emigração). Não será então de estranhar que quanto maior o crescimento da população, maior a procura de habitação. Contudo, importa salientar que enquanto as dinâmicas naturais produzem um efeito diferido na procura de habitação e são previsíveis com cerca de duas décadas de avanço, as migrações produzem um efeito imediato e são mais difíceis de estimar.

b) A distribuição etária da população é outro dos fatores a ter em conta na procura de habitação. Quanto mais jovem determinada população, maior dinamismo na formação de novos agregados familiares (por efeito da conjugalidade), e superior a procura de habitação. Quanto mais envelhecida a população, maior o dinamismo na extinção de agregados familiares (por efeito da mortalidade), logo potencialmente menor a diferença entre formação e extinção de agregados. A distribuição etária de uma população intervém ainda nas necessidades da população relativamente às características do parque habitacional. Quanto mais envelhecida for determinada população, maior a necessidade de alojamentos adaptados e adaptáveis às necessidades de saúde e cuidados decorrentes do processo de envelhecimento.

c) Aceitar que a cada agregado familiar corresponde um alojamento implica reconhecer que os padrões de composição familiar influenciam a procura de habitação. Quanto maior o dinamismo na formação e dissolução familiar, maior a procura de habitação. Menos famílias complexas, maior a procura. Quanto mais cedo ocorrer a emancipação residencial dos jovens, maior a procura. Maior individualização residencial, maior a procura de habitação.

Tratando-se de dinâmicas demográficas, a sua análise exige a devida contextualização no período e no território. No período, porque as dinâmicas demográficas alteram-se ao longo do tempo, o que se repercute no peso e na relação entre os níveis de pressão mencionados. No território, porque sendo Portugal um país de assimetrias, coexistem dinâmicas que afetam diferenciadamente a procura de habitação e que se esbatem nos indicadores ao nível nacional.

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Porto, Portugal (2016). Fonte: Thierry Marthy, Flickr. Flick License.

Passemos a exemplificar. Em Portugal, em 2011, residiam pouco mais de 10,5 milhões de indivíduos (Quadro 1). Destes, os indivíduos entre os 15 e os 24 anos representavam 10,9% da população residente. Já o grupo etário dos 65 e mais anos, isto é, o grupo de maior risco de extinção de agregado, representava 19% da população. Havia, em Portugal, em 2011, mais alojamentos que famílias, o que se justifica pela elevada proporção de alojamentos de residência secundária e alojamentos vagos. A dimensão média do agregado familiar era de 2,6 pessoas. Aproximadamente um em cada cinco agregados era constituído por uma pessoa só. A proporção de jovens entre os 25 e os 34 anos representantes do agregado era elevada (34,3%), considerando que um cenário de conjugalidade plena corresponderia a uma proporção de 50%. Quer isto dizer que, vivendo conjugalmente ou sós, a maioria dos jovens neste grupo etário eram residencialmente independentes.

Este retrato transversal torna-se bastante mais completo com a perspetiva temporal. Assim, entre 2001 e 2011 verificou-se um crescimento na população residente bastante discreto (2%), mas uma acentuada alteração na estrutura etária da população, com o peso relativo dos jovens entre os 15 e os 24 anos a decrescer 24% e peso dos mais velhos a crescer 16,4%. Mais, segundo o cenário central das projeções da população residente do Instituto Nacional de Estatística, até 2030 é expectável que a tendência de envelhecimento se acentue, projetando-se que os seniores constituam 27,3% da população residente nesse ano. Relativamente à relação entre o número de famílias e alojamentos clássicos, entre 2001 e 2011 verificou-se um aumento em termos absolutos dos dois, mas também um aumento da diferença entre o número de famílias e o número de alojamentos, ou seja, mais alojamentos que famílias. Por último, a formação familiar entre os jovens aumentou ligeiramente, 2,1% em termos relativos (apesar de decrescer em termos absolutos), e o número de agregados unipessoais cresceu 23,9%, o que se explica pela tendência para a individualização na emancipação residencial dos jovens, em linha com a redução da dimensão média das famílias clássicas.

Como referido anteriormente, Portugal é um país de assimetrias regionais, mesmo entre grandes centros urbanos, como os municípios de Lisboa e do Porto. De acordo com os dados censitários (Quadro 1), verifica-se que estes dois municípios contribuíram para travar o discreto aumento populacional verificado ao nível nacional entre 2001 e 2011 pois perderam população residente devido ao efeito da suburbanização. Quanto à estrutura etária, tanto em Lisboa como no Porto o peso dos jovens decresceu acentuadamente. Em contrapartida, o peso dos mais velhos aumentou, sobretudo no Porto, onde a estrutura etária da população residente em Lisboa apresentava um acentuado envelhecimento demográfico já em 2001. O número de famílias clássicas manteve-se relativamente estável, ainda assim com um crescimento maior em Lisboa do que no Porto. Isso, porém, não impediu o aumento expressivo do número de alojamentos clássicos e da diferença entre o número de famílias e o universo de alojamentos em ambos os municípios, em linha com a tendência nacional de mais alojamentos que famílias. A dimensão média das famílias também decresceu em ambos os municípios. Contudo, há diferenças relevantes nos padrões de composição familiar nestes dois municípios. Em Lisboa, observa-se que a proporção de jovens representantes da família é maior do que no Porto, sugerindo uma idade média de saída da casa dos pais mais baixa entre os jovens residentes em Lisboa. Nesta cidade há também uma maior proporção de agregados unipessoais, sendo que o Porto atinge em 2011 a proporção verificada em Lisboa em 2001.

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Quadro 1 – Dados sobre a população residente e alojamentos, Portugal, 2001-2011. Fonte: INE, Recenseamento da população e habitação – Censos 2001 e Censos 2011.

Em última análise, poderá dizer-se que, conservando intacto o parque habitacional num determinado período e território, basta que o saldo entre a formação e a extinção de agregados familiares seja positivo, para ocorrer um aumento na procura de alojamentos.

Como exemplifiquei, a demografia tem responsabilidades na procura de habitação, mas sendo as dinâmicas naturais processos inerentemente lentos são mais previsíveis e controláveis do que as determinantes políticas e/ou económicas. Por essa razão, procurar atribuir à demografia uma responsabilidade maior do que a que efetivamente tem na atual crise da habitação implica reconhecer sérias limitações na formulação de políticas públicas no passado e no presente, tanto mais que a tendência para o envelhecimento da população portuguesa é conhecida há décadas. Resta-nos aprender com as lições do passado para melhor preparar o futuro.


Alda Botelho Azevedo é doutorada em Demografia (Universitat Autónoma de Barcelona). Presentemente é investigadora no Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa e professora auxiliar convidada no ISCTE- Instituto Universitário de Lisboa. Adicionalmente é membro do Conselho Diretivo da Associação de Demografia Histórica e membro do Conselho Fiscal da Associação Portuguesa de Demografia. A sua investigação tem-se centrado no estudo da demografia da habitação e do envelhecimento demográfico.


 

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