O mar não pode esperar: controvérsia em torno do derrame de petróleo em praias do Nordeste brasileiro

Por José Gomes Ferreira e Winifred Knox

A 30 de agosto de 2019, uma enorme mancha de petróleo de origem ainda desconhecida atingiu as praias do Nordeste brasileiro. Rapidamente a contaminação afetou praias de onze estados brasileiros e, segundo dados atualizados a 15 de janeiro de 2020 pelo IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, afetou 130 municípios e 999 localidades, com impacto nos ecossistemas marinhos e no modo de vida das comunidades.

O derrame é já classificado como o maior desastre ambiental no litoral brasileiro e soma-se às catástrofes ambientais resultantes do rompimento das barragens de Mariana (5 de novembro de 2015) e Brumadinho (25 de janeiro de 2019) como um dos maiores desastres ambientais do país, refletindo o negligenciar dos riscos ambientais, designadamente quanto à sua prevenção, à existência de dispositivos de informação e alerta, aos arranjos institucionais para situações de emergência, aos tempos de resposta a catástrofes e à definição de competências entre os estados e a União. Tardou o acionar do Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas, ativado apenas 45 dias depois. Em vez disso, o aparecimento das primeiras manchas originou narrativas explicativas diversas e divergências quanto à responsabilidade pelo crime ambiental e às suas consequências.

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Localidades atingidas de 30 de agosto de 2019 a 15 de janeiro de 2020. Fonte: IBAMA, 2020.

Podem-se identificar quatro fases em torno das quais diferentes narrativas parecem criar unicidade. A primeira, de desinformação, desresponsabilização e resposta por parte das comunidades afetadas, focou-se no surgimento do petróleo nas praias, predominando a narrativa do petróleo venezuelano e de derrame criminoso e político por um barco próximo da costa.

Desta fase inicial de explicação essencialmente política passou-se para uma segunda fase, de controvérsia científico-política, com o questionar da análise das imagens de satélite feita por Humberto Barbosa, do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélite (LAPIS) da Universidade Federal de Alagoas. Esta fase é igualmente marcada pelo desespero e reação imediata de milhares de pessoas, na maioria pescadores, pequenos empresários do turismo e voluntários, no sentido de se articularem para a limpeza das praias. Surgiram, em particular por todo o Nordeste, ações espontâneas de limpeza das praias, sem nenhum equipamento de proteção, meios técnicos ou acompanhamento pelos serviços de proteção civil.

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Manchas de petróleo no litoral do Rio Grande do Norte. Fonte: Projeto Cetáceos, Universidade Estadual do Rio Grande do Norte, 2019.

Em meados de outubro tem início uma terceira fase, de reconhecimento do problema pelas autoridades públicas, com a solicitação à Marinha para elaborar um relatório, o qual refere que o petróleo derramado tinha um alto índice de toxidade, pelo que os voluntários não deveriam ter contacto com o mesmo a não ser devidamente protegidos. Cresce igualmente a preocupação com os recursos marinhos e nos níveis estaduais aumenta a pressão para o esclarecimento das causas e dos instrumentos de mitigação do desastre. Esta fase tem ainda duas componentes transversais. De um lado, o reconhecimento, a partir de uma decisão da Procuradora da República de Sergipe, Martha Figueiredo, do Ministério Público Federal, de que o caso era de calamidade pública e emergencial. De outro, a aprovação da Medida Provisória 908/2019, de 29 de novembro, que institui o Auxílio Emergencial Pecuniário para os pescadores profissionais artesanais, um universo de cerca de 65 mil pescadores ativos no Registro Geral da Atividade Pesqueira, que tiveram sua atividade profissional prejudicada e que poderão receber o montante de R$ 1.996 (cerca de 430 €) pago em duas parcelas.

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Manchas de petróleo no litoral do Rio Grande do Norte. Fonte: Projeto Cetáceos, Universidade Estadual do Rio Grande do Norte, 2019.

A quarta fase, de articulação setorial e de institucionalização do debate, foi marcada pela realização, a 21 de novembro de 2019, da audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília, onde vários cientistas e representantes da população atingida foram ouvidos. Na sequência, a 22 de novembro também em Brasília, realizou-se na Procuradoria-Geral da República do Ministério Público Federal, a sessão Plenária sobre Violações Socioambientais em Comunidades Tradicionais Pesqueiras, que reuniu 200 pescadores e pescadoras artesanais de todo o Brasil, mas principalmente dos estados atingidos pelo derrame de petróleo. O encontro fez parte das atividades do Grito da Pesca 2019, uma ação de mobilização e incidência política organizada pelo Movimento Nacional dos Pescadores e Pescadoras Artesanais, com apoio de várias ONG e da Comissão Pastoral da Pesca.

O derrame de petróleo e a contaminação das praias geraram também preocupações de saúde pública. No diagnóstico sobre este tema colaboraram instituições como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que criou uma sala de situação, ou seja, um grupo de trabalho para atuar em conjunto com o Centro de Operações de Emergência – COE- Petróleo, do Ministério da Saúde, assim como a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diversas instituições estaduais. A preocupação central foi com as consequências para a saúde resultantes do contacto com o petróleo. Outra preocupação foi a da segurança alimentar do peixe proveniente de áreas contaminadas, tendo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) emitido um boletim no qual descreve os resultados da análise de risco dos pescados nas regiões afetadas pelo óleo, usando parâmetros restritos aos Hidrocarbonetos Policíclicos Aromáticos (HPA), que são citados como os mais relevantes pela literatura e por órgãos de controlo que já enfrentaram incidentes anteriores similares ao ocorrido no litoral brasileiro. Em carta aberta datada de 6 de novembro, 30 veterinários recomendaram que não fosse consumido pescado com origem nas áreas afetadas pelas manchas de petróleo. A carta aberta constituiu uma resposta ao assessor do presidente da República Brasileira para assuntos da pesca da Secretaria Especial de Pesca, após este ter afirmado que “O peixe é inteligente. Quando vê uma mancha de petróleo, foge”, considerando que o consumo de peixe da área afetada era seguro, ao contrário da cautela pedida por vários especialistas. Já em 2020, surge a notícia de que, afinal, o peixe não está contaminado, segundo a análise laboratorial realizada por investigadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte a 10 espécies de peixes e 5 invertebrados, mas este é certamente um tema que não está encerrado.

Em síntese, o carácter periférico do Nordeste face ao tamanho continental do Brasil e a forma como tem sido colocada na agenda a temática do risco ambiental desviaram a atenção das prioridades da resposta, que deveria ser rápida na contenção da mancha poluidora e no apoio às comunidades. A priorização da desinformação e a procura de responsáveis pelo derrame ignoraram o alastramento da poluição e a condição de vulnerabilidade das comunidades marítimas nordestinas. Ainda assim, vale a pena realçar a resposta dos membros dessas comunidades, que de manga arregaçada e expondo-se a riscos de contaminação retiraram o petróleo da praia, mas também o interesse de várias instituições científicas na identificação da origem do problema, na informação sobre o risco de exposição e consumo do pescado e na articulação das respostas institucionais.


José Gomes Ferreira é professor visitante do Departamento de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Winifred Knox é professora do Departamento de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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