Por: José Gomes Ferreira
Durante 2020 falou-se muito no desmonte da política ambiental brasileira, e certamente vamos continuar a falar. A lista de polémicas já vai longa e coloca em causa a agenda ambiental do presidente Jair Messias Bolsonaro e do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. O tema não se remete apenas à discussão de política interna. Enquadra-se nas preocupações de degradação do planeta e da ausência de resposta ao desmatamento e exploração de minérios (garimpo) da Amazónia. Relaciona-se ainda com os incêndios florestais na Amazónia, Cerrado e Pantanal, e a pressão do agronegócio por mais terras. A preocupação com o desmatamento é tanta que o debate tem sido trazido, por agências multilaterais e pela ciência, como nexo de causalidade entre o desmatamento e os recentes surtos epidémicos.
Fonte: Pexels.com.pt (Pok Rie,2018)
A cobrança pelo cumprimento de maior proteção ambiental é maior com o atual governo. Porém, no Brasil, o ambiente não tem sido devidamente acolhido como símbolo e desígnio nacional, ainda que a riqueza em termos de biodiversidade mundial e reserva de água doce se erga como bandeira. Pelo contrário, o ambiente tem sido culpado de ser entrave ao desenvolvimento e indutor de conflito e injustiça ambiental. O Brasil aparece de forma sistemática na liderança do ranking dos países com maior número de assassinatos por razões ambientais, como mostram os relatórios da Global Witness e o relatório Massacres no Campo elaborado pela Comissão Pastoral da Terra.
Estão em confronto duas visões da relação Sociedade-Natureza-Economia. De um lado, uma visão neoliberal sustentada na exploração intensiva da natureza que satisfaça a pressão da globalização capitalista, para a qual alertava Milton Santos, e cada vez mais presente através da chamada financiarização, com exemplos de investimento de fundos patrimoniais e de reformados americanos e ingleses a apostarem em territórios de produção intensiva das chamadas commodities. De outro lado, uma visão defendida após a Conferência do Rio de 1992, através de acordos internacionais, e que reconhece a urgência na transição para uma economia mais justa, com menor impacto no ambiente e que inverta o aumento das desigualdades. Em contexto de relações diplomáticas, esse confronto tem gerado situações de conflito, em que se destacam o processo de pré-adesão do Brasil à OCDE e as negociações do acordo União Europeia-Mercosul que, como afirma Jo Klanovicz, resultam da crescente ecologização da política e das relações diplomáticas inter-regionais e com a União Europeia. Sendo que também a opinião pública europeia se manifesta contra o acordo com o Mercosul, condenando a política ambiental e climática brasileira para a Amazónia. Nem tudo é negativo, na medida em essa ecologização das relações internacionais tem trazido benefícios ao país em troca do contributo nacional para a proteção do planeta, de que é exemplo o Fundo Amazónia.
Internamente, não podemos ignorar a permanente descontinuidade das políticas e a personalização dos cargos públicos, mudando a política de rumo cada vez que muda o ministro. Assim como a fragmentação temática e territorial do ambientalismo brasileiro, que encontrou motivação extra no processo de redemocratização, e beneficiou a preparação da Constituição Federal de 1988 e a Rio 1992, mas que depois se acantonou, dando espaço às grandes associações ambientalistas internacionais para atuarem no país.
Turismo e energia eólica, praia de Tourinhos, São Miguel do Gostoso/RN
Fonte: arquivo pessoal 2018
A completar esse panorama assiste-se à diluição progressiva das dimensões ambientais da orgânica do Governo Federal, que fragmenta setorialmente as competências por outros ministérios. Isso mesmo se pode verificar através da Lei nº13.844, de 18 de Junho de 2019, que estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. No caso do ministro Salles, a perda de competências inclui a implementação do Código Florestal, Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, que dispõe sobre a proteção da vegetação nativa, com preocupação com a biodiversidade, o desenvolvimento sustentável e a vegetação associada aos ecossistemas hídricos, e que transitou para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Não é uma novidade a diluição da componente ambiental por vários ministérios. Pontuando-se os casos do saneamento básico, anterior competência do Ministério das Cidades, que transitou para o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), e que para esta matéria possui a tutela da ANA. A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico foi criada após aprovação do novo marco regulatório do saneamento básico, Lei nº 14.026, de 15 de Julho de 2020. A sua antecessora, a Agência Nacional de Águas, foi criada pela Lei nº 9.984, de 17 de Julho de 2000, que transferiu as competências do Ministério do Ambiente para o novo órgão.
Na sequência das diversas alterações, a presença do Ministério do Ambiente faz-se notar em funções de licenciamento, fiscalização e proteção ambiental, competências que têm sido fortemente postas em causa no atual governo. Das recentes polémicas destacamos a nomeação de chefias militares para cargos fora da sua área de conhecimento e a situação de órgãos vitais como o IBAMA e ICMBio, que se encontram ameaçados de fusão e desmantelamento de estruturas regionalizadas. Se no caso do IBAMA a controvérsia gira em torno da possível flexibilização das ações de fiscalização, que favorecerá os madeireiros, sobre as áreas protegidas pende ainda a ameaça quanto à anunciada concessão privada de 26 parques nacionais. Vimos em texto anterior que a resposta ao derramamento de petróleo no litoral do Nordeste brasileiro foi tardio e agravou a condição das comunidades pesqueiras tradicionais. Somam-se os casos de permeabilidade da administração pública na ocultação dos crimes ambientais de Mariana e Brumadinho, neste último caso acabando a primeira proposta de indemnização da Vale por favorecer mais a empresa que as famílias das vítimas, forçando-a apresentar nova proposta. Outro exemplo de inversão das políticas ambientais está patente na publicação do Decreto nº 9806, de 28 de Maio de 2019, que dispõe sobre a composição do Conselho Nacional do Meio Ambiente, reduzindo a sua composição, retirando representatividade aos estados e diminuindo a participação e controle pela sociedade civil.
Em suma, a temática ambiental está presente nas políticas nacionais desde a preparação da Conferência de Estocolmo realizada em 1972, mas isso não significa que seja encarada na sua transversalidade e cooperação entre os órgãos federativos, nem que seja prioridade da agenda política. Os acordos internacionais têm permitido obter benefícios, mas constituem igualmente uma responsabilidade, e, no atual contexto, um desafio em confronto com argumentos de defesa da soberania nacional. A pressão internacional dificilmente influenciará positivamente as políticas nacionais. Mesmo que o faça será um processo lento e com custos elevados, em resultado do qual o país estará impreparado para um mercado pós-carbono e pós-desmatamento, em particular para cumprir a Estratégia de Longo Prazo para Descarbonização da Economia Brasileira, elaborada, em 2019, pelo Fórum Brasileiro de Mudança do Clima, que destaca entre as medidas setoriais a necessidade de parar o desmatamento, de substituição dos combustíveis fósseis, do aumento da produção de energias renováveis e de investimento na eficiência energética, só para citar alguns exemplos. Lembrando também que é necessário reverter a política negacionista e retomar a implementação das políticas ambientais.
José Gomes Ferreira, professor visitante no Departamento de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, leciona na graduação de Gestão de Políticas Públicas e na Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais. Coordena e participa em projetos sobre a temática ambiental, sustentabilidade, desenvolvimento regional, COVID-19, políticas públicas, memória da seca e semiárido. Email: josegomesufrn@gmail.com