Uma nova geração… de financeirização da habitação?

Por Simone Tulumello

Este post é uma breve história de políticas com impacto sobre a habitação desenvolvidas à margem das políticas de habitação. Este post é uma breve história da financeirização da habitação em Portugal. O termo financeirização tem sido utilizado para descrever o crescimento da influência dos setores financeiros no Ocidente e em todo o mundo, bem como as transformações socioeconómicas que este crescimento produziu. A financeirização da habitação refere-se, em particular, à progressiva transformação da habitação num ativo a ser utilizado para obter lucro via especulação financeira (vejam-se os trabalhos de Manuel Aalbers). A motivação deste post é a aprovação, no início de 2019, de duas reformas que constituem mais dois passos na direção da financeirização da habitação: o regime jurídico das Sociedades de Investimento e Gestão Imobiliária (SIGI) e o Direito Real de Habitação Duradoura (DHD).

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Por Alexander Stein. Fonte: Pixabay. Pixabay License.

Durante o último ano, este blog tem dado bastante espaço ao tema da habitação, que voltou recentemente ao centro do debate público, das agendas políticas e do trabalho de investigação do grupo ATS e do seu Urban Transitions Hub (onde decorrem três projetos sobre habitação: exPERts, HOPES e SUSTAINLIS). Portugal está a atravessar uma complexa crise habitacional e o governo tem reagido desde o verão de 2017, quando foi criada uma Secretaria de Estado da Habitação, que tem vindo a trabalhar numa série de políticas que pretendem constituir uma Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) – que inclui um programa para o realojamento de agregados a viver em situações de extrema precariedade (1º Direito), um programa de arrendamento acessível e outras medidas complementares.

Porém, como veremos, nem todas as políticas que impactam o setor da habitação se encontram no contexto da NGPH. De facto, esta situação não é uma novidade: um estudo do IHRU demonstrou, por exemplo, que cerca de três quartos do esforço do Estado com habitação entre 1987 e 2011 foram canalizados para os descontos de juros e o apoio à compra de habitação própria – ou seja, por uma política fiscal fora do controlo das tutelas responsáveis pela habitação. Uma verdadeira história das políticas com influência na habitação iria mostrar quão marginais foram, durante décadas, as políticas de habitação e, pelo contrário, quão centrais foram as políticas de financeirização do mercado de habitação.

Gerações de financeirização da habitação

O modelo “clássico” de financeirização da habitação, prevalecente em Portugal desde os anos 1980 (e longamente analisado nos departamentos de economia política), assentou na promoção da habitação de propriedade própria através das bonificações de juros. O acesso ao crédito fácil levou as famílias a contrair dívidas para comprar casa e as empresas de construção e imobiliário a contrair dívidas para construir e expandir as suas atividades. Beneficiaram os bancos, que tinham o controlo tanto da oferta como da procura de habitação e obtinham lucros seja dos empréstimos concedidos, seja da possibilidade de investimento especulativo sobre os empréstimos concedidos. Esta situação prevaleceu até ao rebentar da bolha imobiliária em 2006/2007, a qual, ao criar enormes imparidades, foi a causa central da crise financeira, depois económica e, finalmente, da dívida soberana.

Mas, como aconteceu ao nível global, a crise não travou, senão temporariamente, a financeirização da habitação: pelo contrário, durante e depois do período de crise foram criados instrumentos para expandir a presença do setor financeiro no mercado da habitação. Dado que o mercado de compra de habitação se encontrava estagnado a seguir ao rebentar da bolha, era no setor do arrendamento que se deveria apostar: já no meio da crise económica global, o então governo socialista criou o regime Jurídico dos Fundos de Investimento Imobiliário e concedeu condições fiscais favoráveis aos fundos que investissem em arrendamento (inscritas no OE 2009).

Avancemos rapidamente até 2016. Enquanto a crise habitacional alastra pelo país, e antes de o governo do primeiro-ministro António Costa decidir repor a habitação no centro da agenda política, o Conselho de Ministros criou o Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado (FNRE), que torna o próprio Estado um ator da financeirização da habitação por meio do seu fundo, o Fundiestamo. O FNRE tem como objetivo mobilizar edifícios públicos para o mercado de habitação, parte dos quais a preços acessíveis. Porém, o FNRE deve ainda garantir uma rendibilidade mínima de 4%, e por essa razão pode investir também em usos não residenciais. De caminho, avisa Helena Roseta, «o património imobiliário deixa de ser público, a contratação de obras deixa de ser obrigatoriamente por concurso e até a escolha dos projetistas é decidida à margem de qualquer procedimento concursal».

SIGI e DHD

E chegamos assim ao início de 2019, com a criação das SIGI e do DHD. As SIGI (globalmente conhecidas por Real Estate Investment Trusts – REIT) funcionam como verdadeiras sociedades por ações, permitindo a pequenos e grandes investidores comparticipar no investimento no imobiliário.

A conexão do DHD com os processos de financeirização é menos direta. O DHD é um novo regime de acesso à habitação, que se distingue seja da compra, seja do arrendamento. O morador acede ao contrato ao pagar ao proprietário uma caução correspondente a cerca de 10/20% do valor do imóvel, continuando, depois, a pagar uma prestação mensal. A especificidade é que só o morador pode terminar o contrato. Se sair antes de dez anos, o morador recebe a caução de volta; depois dos dez anos, a caução é transferida progressivamente para a posse do proprietário e, ao fim de 30 anos, será extinta. Embora criticado pelas associações de inquilinos por ser fiscalmente pouco favorável, parece-me que este regime poderá ser apetecível para jovens famílias que, por um lado, não conseguem aceder aos empréstimos necessários para comprar casa cujos preços estão a disparar, e, pelo outro, só encontram contratos de curtíssima duração no mercado de arrendamento (nas grandes cidades, hoje o normal é ter contratos de 1 a 3 anos). Porém, é pouco claro por que deveriam os proprietários, numa época de enormes ganhos especulativos, pôr os seus imóveis num regime deste tipo – e, efetivamente, as associações de proprietários declararam-se pouco interessadas. Quem, pelo contrário, tem declarado o seu interesse por este novo regime é a Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal (APEMIP), ao frisar que, pela sua estabilidade, o regime pode ser apetecível para fundos que queiram diferenciar os seus investimentos.

Uma nova geração de financeirização da habitação

No dia seguinte à aprovação do DHD (14 de fevereiro de 2019), Helena Roseta, a deputada pelo PS até agora mais ativa na promoção de políticas públicas de habitação, declarou a sua surpresa com a aprovação do novo regime e, especialmente, com a total ausência de informação enviada ao Parlamento e ao seu grupo parlamentar. Esta questão pode parecer marginal, porém exemplifica de maneira bastante evidente a forma como políticas com grandes impactos na habitação podem passar nos bastidores do debate, público e político, sobre políticas de habitação.

Helena Roseta poderá estar surpreendida, mas, como pudemos ver nesta breve história, trata-se de um refrão recorrente do cenário nacional, e curiosamente de forma mais evidente quando os governos são socialistas – enquanto os governos de direita têm sido mais explícitos nas suas políticas de liberalização da habitação (por exemplo, veja-se a dita Lei Cristas, o NRAU, que liberalizou o mercado de arrendamento em 2012).

De qualquer forma, a aprovação das SIGI e do DHD representa talvez o ponto cimeiro da construção, diluída ao longo de décadas, de uma complexa infraestrutura, feita de leis e de políticas públicas, que favorece a financeirização da habitação. Trata-se, como debatido em casos onde esta infraestrutura tem um historial mais longo (especialmente no Reino Unido e na Holanda), da verdadeira construção de novos mercados, neste caso financeiros, pela mão do Estado. A financeirização da habitação tem vindo a ser criticada por transformar um direito básico (reconhecido pela Constituição da República Portuguesa no seu art.º 65) numa mercadoria útil para gerar lucro.

O conflito entre habitação como direito e habitação como mercadoria é especialmente visível, hoje em dia, na coexistência de uma Nova Geração de Políticas de Habitação oficial, por um lado, com uma nova geração de financeirização da habitação informal, pelo outro. Vendo bem, um ano e meio depois da indigitação da nova Secretaria de Estado da Habitação, com os preços da habitação incontroláveis e processos cada vez mais rápidos de expulsão de habitantes dos centros urbanos, o conflito está a ser ganho, mais uma vez, pelo lado da mercantilização.


Simone Tulumello é investigador auxiliar no ICS-ULisboa, Urban Transitions Hub, e co-PI fdo projecto HOPES – Perspectivas e lutas em torno da habitação. Movimentos, políticas e dinâmicas residenciais em e para além de Lisboa (FCT; PTDC/GES-URB/28826/2017).

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