O Estado da Habitação, entre crise e novas políticas

Por Marco Allegra

Como sabemos, a habitação regressou à política, tanto nacional como europeia. Em Portugal, o motor deste debate foi a rápida subida dos preços do imobiliário – um tópico que se tornou incontornável nas conversas dos lisboetas (e não só) nos últimos anos.

Aliás,  nestes anos vimos também várias novidades do ponto de vista legislativo, como a Lei de Base de Habitação e sobretudo a chamada Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH), lançada pelo governo em 2017. A NGPH é o enfoque do dossier “O estado da habitação”, que a equipa do projeto exPERts publicou na revista CIDADES, Comunidades e Territórios.

Por um lado, o lançamento da NGPH revela que a política institucional sinalizou a emergência da crise da habitação. Por outro, o dossier levanta alguns pontos críticos que irão marcar a implementação das políticas de habitação no futuro.

Estes pontos críticos são vários e de natureza diferente. Sendo a NGPH um conjunto de medidas e ferramentas diferentes, cada programa mereceria, por si só, uma análise específica. Contudo, considerando as ambições declaradas pelo Governo, uma questão permanece em aberto: conseguirão estas várias medidas consubstanciar uma verdadeira estratégia e política nacional que garanta o direito à habitação?

O primeiro ponto crucial relaciona-se com os recursos. A NGPH aponta o objetivo ambicioso de garantir «o acesso universal a uma habitação adequada» e de introduzir uma transformação radical na governança do sector da habitação. Esta ambição concretiza-se na referência a indicadores quantitativos de médio prazo (definido como oito anos), nomeadamente «aumentar o peso da habitação com apoio público na globalidade do parque habitacional de 2% para 5%» (+ 170.000 fogos); e «baixar a percentagem de população que vive em agregados familiares com sobrecarga das despesas com habitação no regime de arrendamento de 35% para 27%». Será então possível mobilizar recursos adequados à magnitude da crise e a estes objetivos ambiciosos?

O segundo ponto crítico assenta na análise dos diferentes horizontes temporais, especialmente no contexto presente, no âmbito da habitação. As políticas de habitação têm que conciliar a urgência determinada pela rapidez das mudanças que vemos em contextos urbanos como os de Lisboa e Porto com as flutuações de médio prazo do mercado da habitação e do sistema político-eleitoral. Finalmente, o último horizonte, de longo prazo, diz respeito à ambição declarada de a NGPH desenvolver “políticas” e não simplesmente financiar “programas” – o que exige percursos de aprendizagem institucional, formação de capital humano qualificado, e mecanismos alargados de debate e participação, bem como de monitorização e avaliação para as necessárias correções de rota. Será a NGPH capaz de “navegar” dentro destes horizontes temporais diversos e às vezes conflituais – e desenvolver, segundo a ambição do governo, “um modelo de governança multinível, integrado e participativo… uma política proactiva, com base em informação e conhecimento partilhado e na monitorização e avaliação de resultados”?

Finalmente, o terceiro ponto crítico relaciona-se com a correspondência entre ação pública e mercado. Um dos fatores inovadores da NGPH assenta precisamente numa maior integração entre estas duas dimensões, bem como numa reflexão sobre a governança do sector. Esta inovação representa, em termos conceptuais, um passo na direção de uma governança mais integrada do sector, baseada no pressuposto de que a diversificação das fontes de financiamento das políticas de habitação permitirá aumentar a oferta de habitações e melhorar o funcionamento do mercado imobiliário, o que, indiretamente, facilitará o acesso à habitação. Contudo, os resultados desta aposta são dificilmente previsíveis, particularmente na atual situação de enorme pressão sobre o mercado imobiliário. Colegas da FAUP publicaram recentemente no jornal Público os resultados de um estudo que mostra como o Programa de Arrendamento Acessível (que oferece incentivos aos proprietários para baixarem a renda de 20% em relação aos valores médios de mercado) deixa de fora a maior parte dos residentes de Porto e Lisboa, as maiores áreas urbanas do país.

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Jornal Público, Ano XXX, nº 10729 (sábado, 7 de Setembro de 2019). Fonte: Autor.

Quanto aos capitais privados, como refere um provérbio muito apreciado pelos economistas, «podes levar um cavalo até à água, mas não o podes obrigar a beber». Assim, num contexto de lucros expressivos resultantes de investimentos especulativos no imobiliário, será possível atrair investimentos privados para projetos onde os lucros são relativamente reduzidos? Por outro lado, serão os atores privados a apoiar indiretamente a ação pública no sector, como a NGPH pressupõe, ou será o orçamento de estado a financiar ulteriormente as dinâmicas de gentrificação e turistificação que ocorrem em contextos urbanos, como sucede nas cidades de Lisboa e Porto?

Como se vê, estas perguntas são fulcrais para a definição de uma resposta adequada à crise habitacional – e remetem para outros temas específicos abordados pelo dossier: a governança das políticas de habitação; o tema da participação dos cidadãos; o papel da academia vis-à-vis as políticas de habitação; e o papel do estado na regulação deste sector.

Nestes últimos anos, o ICS-ULisboa tem acompanhado o desenvolvimento da crise e as iniciativas políticas do governo – por exemplo, acolhendo a primeira e a segunda edições do Fórum da Habitação e desenvolvendo vários projetos de investigação.

Teremos outra oportunidade de debater o tema no ICS-ULisboa durante a conferência final do projeto exPERts, nos dias 29 e 30 de outubro 2019.

Dia 29 (17.00h), a equipa apresentará os resultados do projeto. Dia 30, os participantes de uma das primeiras mesas redondas “pós-eleitorais” (Helena Roseta, Rita Silva e Ana Silva Fernandes; moderadora, Luísa Pinto, do jornal Público, 14.30h) debaterão o “estado da arte” das políticas de habitação em Portugal. A seguir (17.00h), o evento final da conferência do exPERts: a dupla AESOP Lecture de Manuel Aalbers e Iván Tosics.

Estão todos convidados e serão muito bem-vindos!

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Marco Allegra é Investigador Principal no ICS-ULisboa e Investigador Associado no CIES-IUL. Coordena o projeto exPERts.

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