Por Mónica Truninger
No ano em que se celebram os 50 anos da ida dos primeiros seres humanos à Lua participei na organização de um workshop interdisciplinar com colegas das ciências sociais e naturais do Reino Unido e da Alemanha, que teve lugar em maio na Universidade de Manchester. Juntaram-se antropólogos, sociólogos, investigadores de ciência e tecnologia, bem como geólogos planetários, astrónomos e astrofísicos para apresentar quinze comunicações em torno do tópico geral A Lua como Ponto de Contacto com Outros Mundos.
A palestra de abertura ficou a cargo de Oliver Morton – comunicador e escritor de ciência – que apresentou o seu recente livro The Moon: History for the Future (editado pela Hachette), que aborda o significado cultural e social da relação entre as sociedades humanas e a Lua ao longo do tempo, e como esta se transformará no futuro. A comunicação de Morton deu o mote para debater uma série de tópicos que problematizam as atuais e futuras iniciativas, tanto do sector privado como público (através das respetivas agências espaciais de vários estados), do ‘regresso’ à Lua, e do papel deste corpo celeste como ponte para incursões noutros planetas (e.g. Marte). Muitas destas iniciativas em torno de viagens e explorações de novos territórios à procura da expansão de fronteiras trazem à tona as memórias dos descobrimentos dos séculos XV e XVI, o Destino Manifesto do séc. XIX nos Estados Unidos e a corrida ao Oeste. As consequências destes episódios históricos no desenhar de mapas geoestratégicos de controlo e domínio, de colonização, de extorsão de recursos e acumulação de capital, são os potenciais desafios e riscos desta aventura ao espaço.
Com os novos planos de regresso à Lua a humanidade está cada vez mais próxima de superar o estágio de mera exploração lunar, avançando para uma era de possível ´colonização espacial`. Nesse âmbito, a China teve um papel crucial no rejuvenescimento da ‘conquista lunar’, já que conseguiu pela primeira vez colocar o veículo robótico Yutu-2 na face oculta da Lua através da missão Chang’e-4. As novas missões à Lua e ao espaço sideral têm objetivos diferentes dos do passado e vão muito além da curiosidade e das ambições de engenharia dos primeiros exploradores espaciais. Se nas décadas de 1960 e 1970 essas missões eram patrocinadas pelo Estado, hoje testemunhamos a crescente penetração de financiamento comercial e privado numa nova era de exploração espacial. A denominada ´Nova Indústria do Espaço` é um sector que tem vindo a desenvolver-se rapidamente, sobretudo aproveitando os anos difíceis de crise económica mundial e de retração do investimento público nas atividades espaciais (mais visíveis entre 2008 e 2014). O potencial económico do turismo espacial estimulou empresas como a SpaceX de Elon Musk (que em 2018 colocou o carro Tesla Roadster conduzido por Starman em órbita no sistema solar), a Virgin Galactic, a Blue Origin, a Orion Span e a Boeing a acelerar o desenvolvimento tecnológico do transporte espacial em torno da órbita terrestre.

A Estação Espacial Internacional (ISS) tem acolhido vários projetos e atividades de investigação, inovação e desenvolvimento de bens e serviços não só promovidas pelo sector público, como também pelo privado. A ilustrar, a empresa Aleph Farms conseguiu, em setembro de 2019, criar a bordo da ISS carne de vaca e coelho com a ajuda de uma impressora 3D. A intenção da empresa é desenvolver este processo de fabrico de carne artificial e comercializá-la no planeta Terra, de forma a contribuir para a produção de proteína animal com menor impacto no ambiente. A produção de carne a bordo da ISS poderá constituir igualmente uma revolução nos hábitos alimentares das equipas de astronautas que vão integrar as futuras missões e viagens interplanetárias mais longas. A ISS tem sido um espaço de inovação tecnológica no sector agroalimentar que vai obrigar a desenraizar conceitos fixos ao contexto terrestre (produção local, regional, nacional, internacional) e expandi-los a contextos para além da Terra (produção extraterrestre). Quem sabe se um dia encontraremos no mercado alimentos com o rótulo ‘impresso em 3D na Lua’ ou em ‘Marte’? O que é certo é que neste mundo entre realidade e ficção, para além da carne, já em 2015 alfaces frescas tinham sido produzidas com sucesso a bordo da ISS, revolucionando as papilas gustativas dos astronautas e cosmonautas tão habituados que estavam à comida seca e desidratada. A frescura alimentar, mesmo que criada artificialmente em laboratório, foi algo muito apreciado na equipa da ISS, encetando até uma nova atividade na estação: os jardineiros ou agricultores do espaço (‘space gardeners’). Também aqui o conceito de frescura merecerá interessantes reflexões ao nível da sua reconfiguração concetual, mais uma vez obrigando a criatividade dos investigadores a desprenderem-se do contexto terrestre e a expandir horizontes alinhados com a emergente sociologia do universo (ver Dickens e Ormrod, 2007) ou a antropologia dos confins do espaço (vejam-se os trabalhos pioneiros de Debbora Battaglia, 2006; Lisa Messeri, 2016; David Valentine, 2017; Valerie Olson, 2019).
Entretanto outras agências estatais começaram a mobilizar esforços para se colocarem na corrida ao espaço, inclusive Portugal, que em março de 2019 criou também a sua Agência Espacial localizada nos Açores. O regresso à Lua e o sonho de visitar Marte são também um dos objetivos do programa Artemis da NASA, que agenda para 2024 a alunagem de uma mulher pela primeira vez na história. A reflexão das ciências sociais sobre as questões de género nos programas espaciais é pertinente também aqui, num contexto em que a corrida ao espaço tem sido tradicionalmente contada no masculino.
É assim cada vez mais urgente que as ciências sociais acompanhem estes desenvolvimentos da exploração espacial e coloquem perguntas pertinentes sobre as implicações éticas, ambientais, políticas, económicas, sociais e culturais destas missões à Lua e aos confins do espaço, patrocinadas tanto pelo sector público como pelo privado, e até por parcerias mistas de financiamento. Neste sentido, o grupo ATS reúne os instrumentos concetuais de excelência para começar a fazer perguntas pertinentes nesta área e a debater criticamente estas matérias, já que este é um tema que toca as três linhas de investigação do grupo (ambiente/alterações climáticas; alimentação; transições urbanas). Por exemplo, seria interessante organizar um debate crítico sobre estes assuntos: as questões da redefinição concetual do termo ambiente, que terá de ser pensado para além das fronteiras físicas do planeta Terra; o lixo espacial; o turismo de observação de estrelas e o seu impacto no desenvolvimento do território; o turismo espacial e os seus impactos sociais e ambientais; a justiça social e ambiental da corrida ao espaço; os riscos e controvérsias em torno da instalação de estações de lançamento de foguetões e satélites; a apropriação social de tecnologias espaciais na monitorização e evolução dos impactos e cenários futuros de alterações climáticas (e.g. satélites, agricultura de precisão); a comunicação de ciência sobre estas matérias e seus impactos na mobilização de projetos de ciência cidadã; os imaginários futuros de construção de cidades, arquitetura e habitação espacial (ver a Aldeia Lunar); as questões da alimentação impressa em 3D fora do planeta Terra; a eterna busca de recursos (e.g. água e energia) no espaço sideral; os imaginários projetados na literatura e no cinema de ficção científica e as narrativas sobre a sobrevivência e sustentabilidade da Terra e dos seus habitantes; e até o papel dos animais na corrida ao espaço.
Não desmerecendo a importância fundamental que têm os projetos e iniciativas particulares pela dinâmica que promovem, de vez em quando é necessário criar pontes, sinergias, dinamizar projetos comuns, de diálogo e de partilha coletivos. Esta é uma maneira de canalizar a energia criativa da investigação científica para comunicar e intervir de forma exigente e crítica na transição para sociedades mais justas e sustentáveis no nosso planeta. Será que as questões espaciais podem ser um dos projetos mobilizadores dessas sinergias? Creio que temos os ingredientes inter- e transdisciplinares e a imaginação ‘fora da caixa’ suficientes para promover debates críticos sobre temas globais como este.

Mónica Truninger é investigadora auxiliar do ICS-ULisboa e coordena o Grupo de Investigação de Ambiente, Território e Sociedade.