Notas do Fórum da Habitação do Projeto LOGO – The LOcal GOvernance of housing policy – 3ª edição – Territórios de Baixa Densidade na Região Centro

Por: Bruna Lee Azado

No dia 16 de junho de 2025 aconteceu, em Coimbra, a 3ª edição do Fórum da Habitação do projeto LOGO – A Governação Local das Políticas de Habitação. Uma investigação das Estratégias Locais de Habitação (2023–2026).

Depois de duas edições na Área Metropolitana de Lisboa, este fórum deslocou-se para o Centro do país, com o objetivo de conhecer a realidade das políticas de habitação nos territórios rurais e de baixa densidade. Participaram 8 técnicos municipais e 1 vereador, das áreas da Acção Social e Obras Públicas, dos concelhos de Cantanhede, Coimbra, Covilhã, Fundão, Guarda, Mangualde e Mealhada.

Enquadramento

A criação da Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH), em 2017, e da Lei de Bases da Habitação (LBH), em 2019, procurou descentralizar os processos de governação, posicionando os municípios como agentes centrais das políticas de habitação, através do lançamento de novos instrumentos como as Estratégias Locais de Habitação (ELH) e as Cartas Municipais de Habitação (CMH). No entanto, esta mudança cria uma tensão central que é o fio condutor da nossa investigação: Até que ponto os governos municipais conseguem mobilizar suas práticas e conhecimentos locais quando os programas nacionais (1º Direito – Programa de Apoio à Habitação e BNAUT – Bolsa de Alojamento Urgente e Temporário) e mesmo os prazos de acesso aos fundos comunitários são definidos centralmente?

Este Fórum teve como objetivo não apenas mapear estes desafios para o caso dos territórios rurais e de baixa densidade da Região Centro, mas também construir um espaço de diálogo entre técnicos municipais e a Academia.

Os resultados parciais do Fórum destacam como os técnicos municipais operam dentro de sistemas de governação centralizados, gerindo diversas escalas de tomada de decisões, tempos e dinâmicas políticas;  no entanto, as suas práticas locais revelam um potencial transformador. Os técnicos reinterpretam os esquemas nacionais para se adequarem às realidades territoriais, desde onde propõem formas alternativas de governação. Em última análise, examinar a governança em contextos de “não-centralidade” também desafia as hierarquias convencionais de produção de conhecimento. Isso nos obriga a questionar não apenas como os recursos circulam dentro do território português, mas também como as práticas locais, em contextos contingentes de capacidades técnicas ou recursos humanos, podem instituir novas práticas e remodelar as estruturas políticas regionais ou nacionais.

Tais práticas estão em consonância com teorias mais amplas de democratização impulsionada pela governança (Warren, 2009) e coprodução de conhecimento político (Jasanoff, 2004; Fischer, 2009), que enfatizam que a legitimidade democrática depende cada vez mais da capacidade das instituições de integrar conhecimentos e perspetivas diversas. Nesse sentido, a dimensão transformadora do conhecimento e da Academia pode decorrer da sua capacidade de, dentro dessas brechas institucionais, questionar algumas relações de poder e a transformação de espaços de deliberação em espaços de co-criação, co-decisão e co-gestão.

Figura 1 – Mesas de trabalho

Aspetos Metodológicos

Uma abordagem participativa à produção de conhecimento pode combinar várias técnicas de investigação, como “quantitativas” e/ou “qualitativas”, mas geralmente dá prioridade a workshops de construção coletiva de conhecimento. A diferença fundamental em relação às duas abordagens reside na finalidade da recolha de informação e implica, desde logo, a devolução da informação à própria população, grupo ou coletivo, para que, apoiados por técnicas adequadas, sejam essas pessoas a planear as próprias estratégias de superação aos bloqueios identificados.

A manhã foi dedicada ao trabalho em mesas temáticas, onde os técnicos analisaram as forças, fraquezas, oportunidades e ameaças (“SWOT”) associadas a duas dimensões da política de habitação: a dos instrumentos locais (ELH e CMH); e a dos programas nacionais, como o 1.º Direito e o BNAUT.

Ainda antes do almoço, a partir da técnica do sociograma ou “mapa de atores”, discutimos os posicionamentos dos diferentes atores sociais (institucionais, base associativa e base social) que integram os diferentes níveis das políticas de habitação face à questão em debate – a favor, afins, diferentes ou em contra –, de acordo com o grau de poder e os tipos de relações atribuídas a cada um. Este exercício serviu como ponto de partida para a sessão da tarde, ajudando-nos a refletir “com quem” devemos planear a superação das fraquezas e ameaças identificadas nas mesas anteriores.

Figura 2 e 3 – Sociograma ou mapa de atores

À tarde, o grupo reuniu-se em plenária, na qual os técnicos fizeram a devolução dos resultados das mesas e, após discussões, chegamos a uma síntese das principais fraquezas, ameaças, forças e oportunidades – a partir daí, fizemos o exercício de uma “SWOT propositiva”. A partir das fraquezas, discutimos como anulá-las ou reduzi-las; a partir das ameaças, como evitar ou atenuá-las; das forças, como ampliá-las ou mantê-las; e oportunidades, claro, como aproveitá-las.

Produção de Conhecimento a Partir da Base, algumas propostas dos técnicos municipais

As discussões mostraram como as políticas de habitação se confrontam, nos territórios rurais e de baixa densidade, com problemas estruturais de base, tensões de escala, temporalidades políticas e formas de conhecimento local que moldam a capacidade de ação municipal.

Essas foram algumas das propostas que saíram da “SWOT propositiva”:

  • Negociação dos critérios europeus – Necessidade de adaptar indicadores e métricas de elegibilidade dos financiamentos europeus às especificidades nacionais e territoriais;
  • Articulação regional – Reforço do papel das Comunidades Intermunicipais (CIM) e das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), dotando-as de maiores competências e poder de decisão;
  • Diferenciação de programas por densidade – Criação de programas com legislação e financiamento ajustados às realidades dos territórios de baixa e alta densidade.
  • Reativar estruturas locais de proximidade – Criação de equipas multidisciplinares permanentes, inspiradas nos antigos Gabinetes Técnicos Locais (GTL) das décadas de 1980/90.

Um dos momentos mais produtivos foi a discussão sobre o papel do BNAUT (Bolsa Nacional de Alojamento Urgente e Temporário) – com grande expressão na Região Centro – enquanto instrumento de articulação territorial, capaz de responder a fenómenos transversais como incêndios, cheias e despovoamento, bem como à falta de mão de obra no trabalho agrícola, através da atração e acolhimento de populações migrantes. A ideia de uma coordenação intermunicipal, a partir da CCDR e das CIMs, surgiu como proposta concreta de cooperação regional.

Figura 4 – Plenária – ‘SWOT Propositiva’

Próximos passos

Como dizia um dos técnicos, “desenha-se tudo para um território, que tem assimetrias tão grandes… que se esquece dos pequenos territórios, e pensa-se só nos grandes territórios. (…) quando, praticamente, não nos conhecemos uns aos outros. Não sabemos onde estão as dificuldades”. Conforme fomos defendendo, embora essas condicionantes possam impor dificuldades aos municípios rurais e de baixa densidade, as suas tentativas de superação podem revelar formas criativas e inovadoras de governação. Portanto, incluir esses agentes e seus conhecimentos, assim como os conhecimentos das diversas populações locais, poderá informar processos transformadores na formulação de políticas de habitação.

O projeto LOGO entra agora na fase de estudos de caso – entre eles, um conjunto de municípios da Raia, na fronteira leste com Espanha – para continuar a aprofundar o conhecimento sobre as diferentes realidades do território português e as possíveis articulações intermunicipais, regionais ou fronteiriças.

Bruna Lee Azado (Faculdade de Arquitetura, Universidade do Porto) é bolseira de mestrado no projeto LOGO – The Local Governance of Housing Policy. Possui formação avançada em metodologias participativas para o desenvolvimento rural e gestão territorial (RedCIMAS/UCM, Espanha), bem como em perspectivas e metodologias participativas para o aprofundamento da democracia (CLACSO, Argentina), com especialização adicional em Sistemas de Informação Geográfica. bsilva@arq.up.pt

Notas do 2º Fórum da Habitação do projeto LOGO: Estratégias Locais de Habitação, da elaboração à implementação

Por: Caterina Di Giovanni

No dia 31 de março de 2025 teve lugar o 2º Fórum da Habitação – Estratégias Locais de Habitação: da elaboração à implementação – no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Esse evento enquadra-se nas atividades do projeto LOGO – A governança local das políticas de habitação. Uma investigação das estratégias locais de habitação (2023-2026), cujo foco principal é a dimensão local das políticas de habitação, investigando especificamente o impacto das Estratégias Locais de Habitação (ELHs) e das Cartas Municipais de Habitação (CMHs).

O 1º Fórum do projeto foi em março do ano passado e teve como tema a elaboração das ELHs na Área Metropolitana de Lisboa (AML) (vejam aqui o pré e post fórum); este ano focamo-nos sobre a implementação das ELHs na AML, com o objetivo de fazer um ponto da situação depois de um ano.

Repetimos o formato do ano passado, com uma programação tripartida em sequência: duas sessões fechadas com os técnicos camarários da Área Metropolitana de Lisboa e uma aberta ao público sob forma de mesa-redonda com peritos da habitação.

A primeira sessão do dia foi constituída por um workshop organizado segundo o modelo do chamado “world café”: os participantes foram divididos em grupos por mesa temática. Após cerca de 30 minutos de debate numa mesa, os grupos passaram a uma nova mesa, repetindo-se o processo até que cada grupo tivesse participado em todas as mesas.

As três mesas temáticas abordaram temas relacionados com as políticas locais da habitação:

– Mesa 1 (“Os atores das políticas locais”) na qual se procurava saber quais atores estão a participar, juntos com as câmaras, na implementação das ELHs e que tipo de relação se está a desenvolver entre eles (Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana – IHRU, consultorias, associações locais, juntas de freguesias, etc.);

– Mesa 2 (“O processo de implementação e o seu impacto sobre as carências habitacionais locais”) na qual se procurava perceber que tipo de desafios estão ligados ao processo de implementação e que impacto este está a ter (ou vai ter no futuro) sobre as carências habitacionais dos municípios;

– Mesa 3 (“Os recursos para uma política de habitação pós-PRR”) na qual se procurava perceber como é o que mudou (ou vai mudar) a dinâmica da política de habitação local pós-PRR.

Figura 1 – Abertura dos trabalhos. Apresentação das mesas temáticas com técnicos camarários da AML. Foto: Marco Allegra

Seguimos com a metodologia de Rose, Thorn, Buds (Fig. 2) — Rosas: resultados positivos; Espinhos: pontos críticos e Brotos: potenciais para o futuro. Os participantes responderam às perguntas colocadas pelos facilitadores e as respostas foram colocadas no quadro com post-its, colocando-os de acordo com a metodologia referida.

Figura 2 – “Rosas, Espinhos, Brotos” na mesa temática 2. Foto: Caterina Di Giovanni

Foi pedido aos participantes que dessem as suas respostas a um questionário instantâneo, dividido em três partes, com perguntas iguais ao ano passado, podendo assim refletir sobre o que mudou após um ano.

Na primeira parte, os participantes deveriam dar a sua opinião relativamente às seguintes afirmações (onde 1=discordo; 5= concordo). Após um ano, os resultados evidenciam que a ELH introduziu mais desafios de mudança e de esperança, mas a dinâmica de participação de outros atores esteve em queda.

Figura 3 – Resultados do questionário instantâneo (1ª parte) aos técnicos da AML — 1º Fórum (esquerda) e do 2º Fórum (direita)

Na segunda parte, os participantes deveriam escrever que palavras utilizariam para descrever a sua experiência em termos de ELH (uma palavra x cinco campos). Os resultados, visualizados numa nuvem de palavras, apontam para palavras centradas em reconhecimento de atributos mais positivos a respeito do ano passado.

Figura 4 – Resultados do questionário instantâneo (2ª parte) aos técnicos da AML — 1º Fórum (esquerda) e do 2º Fórum (direita)

Na terceira parte, os participantes deveriam escrever uma resposta à seguinte reflexão: “Se eu fosse responsável pelas Políticas de Habitação, a minha prioridade seria… (até 200 caracteres). Os resultados foram organizados em categorias, como evidenciados na fig. 5, e mostram ideias mais detalhadas em termos de instrumentos, princípios e ação do Estado.

Figura 5 – Resultados do questionário instantâneo (3ª parte) aos técnicos da AML — 1º Fórum (2024) e do 2º Fórum (2025)

O programa seguiu com a sessão plenária, que integrou o resumo de pontos fortes, fraquezas e oportunidades (Rosas-Espinhos-Brotos) e um debate interno sobre o processo das ELHs nos municípios da AML.

Finalmente, o Fórum abriu as portas para o público na sessão da mesa-redonda, constituída por Ana Pinho (ex-Secretária de Estado de habitação), Carlos Humberto de Carvalho (Primeiro-Secretário da AML) e Sílvia Jorge (investigadora CiTUA/IST-ID).

Figura 6 – Oradores da mesa-redonda aberta ao público. Foto: Teresa Madeira da Silva.

O que aprendemos com este Fórum?

Apesar da diversidade dos territórios da AML e do grande investimento público na habitação,[1]  o resultado      é que as carências estão a aumentar exponencialmente, pelo que as respostas poderão ser insuficientes.

Algumas breves notas evidenciadas para o processo de implementação das ELHs:

Rosas

–  Reabilitação de parque público existente (solução mais apostada) com impacto positivo na vida das pessoas;

– Melhor monitorização e gestão do parque público;

– Compromisso das Câmaras para executar o que estabelecido.

Espinhos

– Prazos continuam a ser o espinho maior, em continuação com o ano passado;

– Impasse das candidaturas dos beneficiários diretos provocou uma desacreditação do processo;

– Mercado aquecido e carências habitacionais em constante ampliação.

Brotos

– Diversificação de soluções habitacionais e de tipos de arrendamento (além do apoiado);

– Perspectivas de colaboração intermunicipal;

– Revisão das ELHs juntamente com a elaboração da CMH – questões esquecidas para resolver.

Os métodos utilizados durante este 2º Fórum, resumidos na metodologia de Rosas-Espinhos-Brotos e no questionário instantâneo, sublinham como os atores envolvidos, já poucos em fase de elaboração das ELHs, estiveram em queda na implementação, mostrando como os municípios são o verdadeiro Ator do processo. As Câmaras assinalam uma aposta na diversidade de soluções aplicadas e, no entanto, muitas carências ficaram fora nesta fase da implementação. Através das ELHs, o capital de conhecimento das Câmaras foi reforçado, enquanto os recursos humanos continuam sobrecarregados principalmente para cumprir os prazos apertados. Não obstante os muitos obstáculos observados, as respostas do questionário são mais esperançosas face ao ano passado, delineando uma aprendizagem contínua das ELHs.          

Perante os bons resultados do 2º Fórum da Habitação, a equipa LOGO está a pensar no próximo que terá lugar ainda este ano em Coimbra.

Stay tuned!

Caterina Di Giovanni é arquiteta e doutorada em Estudos Urbanos (ISCTE-IUL / FCSH NOVA). É investigadora júnior no ICS-ULisboa no âmbito do projeto LOGO.

Urbanização em solo rústico e a crise da habitação: uma falsa associação

Por: Simone Tulumello

No dia 30 de dezembro de 2024, enquanto Portugal recuperava da ressaca de Natal e se preparava para celebrar o ano novo, o governo de direita presidido por Luís Montenegro publicou o Decreto-Lei n.º 117/2024, que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio). A alteração mais relevante diz respeito ao artigo 72 deste último, relativo à reclassificação para solo urbano – nomeadamente, a transformação de solos “rústicos” em solos urbanizáveis sem alteração do plano de ordenamento municipal. Trata-se, por definição do Regime Jurídico, de uma operação “excecional”: em sentido legal, pois constitui uma exceção legal ao processo regular de classificação dos solos nos planos municipais; e no sentido literal, por ter de ser implementada em situações verdadeiramente excecionais de urgente necessidade de solos não disponíveis de outra forma.

Sem mudar a letra da lei na referência à excecionalidade, o DL 117/2024 simplifica o procedimento e cria um “regime especial de reclassificação para solo urbano com finalidade habitacional”. Como explica a retórica do preâmbulo ao DL, trata-se de tornar a reclassificação dos solos rústicos num pilar da estratégia de incremento da oferta habitacional.

Fig. 1: Fotografia do Alto da Eira em 2013 (pelo autor)

Trata-se, ao mesmo tempo, de um retrocesso de várias décadas na gestão do território, escancarando a porta à expansão descontrolada das áreas urbanizadas e à especulação – a simples alteração de um solo de rústico para urbano multiplica o valor do mesmo, até antes de se ter construído qualquer coisa. Foram, de facto, muitíssimas as reações de pessoas e entidades com competência sobre o tema – veja-se, por exemplo, a Carta Aberta da Rede H – Rede Nacional de Estudos de Habitação, que recolheu centenas de subscrições e contribuiu para que o DL fosse levado à Assembleia da República onde, contudo, não se esperam alterações estruturais. A carta aberta clarifica a falácia de um dos principais álibis usados pelos defensores do DL: «não existe falta generalizada de solos urbanos nos perímetros urbanos», isto é, se o problema fosse a necessidade de construir mais casas, não estaria a sua causa na falta de solos urbanizáveis.

Ainda que ninguém possa negar que em Portugal o preço da habitação se tornou incomportável para os rendimentos da maioria (praticamente a  totalidade) de quem trabalha e vive no país, será que precisamos mesmo de construir mais casas? Mais construção é a resposta que, desde sempre, oferece a direita – e, fundamentalmente, também o Partido Socialista, que tinha já avançado com estímulos à construção e uma simplificação da reclassificação dos solos rústicos, mas só para promoção pública de habitação acessível. Este DL complementa o anterior pacote do governo de direita, denominado, de forma explícita, Construir Portugal. Para os pensadores de direita, não há dúvidas. Veja-se, por exemplo, o que diz José Mendes:

se não fosse um assunto sério, daria vontade de rir. É por demais evidente que existe em Portugal um problema de escassez na oferta de habitação, sobretudo no que se refere ao segmento suportável pela classe média, chamem-lhe acessível, moderada ou outro nome qualquer.

Será mesmo para rir? O argumento que é normalmente utilizado – igualmente mencionado no preâmbulo do DL 117/2024 – é o da redução, nas últimas duas décadas, das novas construções. O que esse argumento não diz, contudo, é que menos construção não significou “menos casas”. Nas últimas duas décadas, o rácio de casas disponíveis para núcleos domésticos existentes não diminuiu. Se se construiu menos, sim: porque a construção das décadas anteriores colmatou as carências quantitativas que vinham da época do Estado Novo e porque a população parou de crescer. Dizer, neste contexto, que construir menos causou uma ausência de habitações seria como dizer que não comer depois de saciados causa fome.

E saciados estamos à vontade. Há em Portugal dois milhões de habitações não usadas para residência: mais de um milhão de residências secundárias, sazonais ou usadas como apartamentos turísticos (isto é, retiradas do mercado da habitação) e mais de 700 mil devolutas. E, contra o que muitos pensam, os devolutos não se colocam em contextos de escassa pressão urbanística: há 50 mil só na cidade de Lisboa.

Neste contexto, construir mais ajudaria a baixar os preços? A resposta é simples: não. Como demonstrado pelos estudos de habitação baseados em décadas de evidências científicas – aqui a síntese do argumento por Josh Ryan-Collins –, não é o encontro entre procura e oferta que empurra os preços da habitação, mas a disponibilidade de liquidez. Antes da crise, foi o crédito a baixo custo (estimulado pelo Estado) a aumentar os preços enquanto se construía muito mais do que se procurava. Agora, é a liquidez de investidores, financeiros e não só, muitos dos quais internacionais, que inflaciona os preços: repare-se que o incremento das taxas de juro da conjuntura pós-pandémica fez reduzir a procura mas não parou o crescimento dos preços – como demonstrado no estudo de dois economistas do Banco de Portugal que, contudo, acabam na falácia de defender a resolução do problema com… mais construção!

Dir-se-ia que o que serve é construir habitação a preços baixos – «chamem-lhe acessível, moderada ou outro nome qualquer», frisava Mendes acima. Chamemos como quisermos: mas e a substância? O DL 117/2024 condiciona a reclassificação a que «700/1000 da área total de construção acima do solo se destine a habitação pública, ou a habitação de valor moderado». Só que esta última é definida como aquela em que «o preço por m2 de área bruta privativa não exceda o valor da mediana de preço de venda por m2 de habitação para o território nacional ou, se superior, 125 % do valor da mediana de preço de venda por m2 de habitação para o concelho da localização do imóvel, até ao máximo de 225 % do valor da mediana nacional». Os últimos dados do INE disponíveis colocam a mediana do preço de venda nacional a 1,736€/mq, colocando o limite superior nas cidades de maior pressão nos 3,906€/mq: uma moderação evidentemente incomportável para quem aufere rendimentos em Portugal, feita à custa da expansão incontrolada do solo urbanizado.

A conclusão é simples: fomentar a construção fora dos planos de ordenamento do território só serve para fomentar a especulação. Paremos de usar a crise de habitação como álibi. Há, hoje em dia, só uma forma de tornar a habitação acessível para quem vive em Portugal:  regular o mercado, a partir do controle de rendas – tema que não poderei, contudo, desenvolver aqui.

Simone Tulumello é investigador auxiliar em geografia no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Interessa-se pelas dimensões globais da urbanização, com foco em temas como habitação, violência urbana e imaginários urbanos. simone.tulumello@ics.ulisboa.pt

Envelhecimento em Portugal: desafios habitacionais em casas frias e sobredimensionadas

Por: Alda Botelho Azevedo

A população portuguesa nunca foi tão envelhecida. Segundo os Censos 2021 do Instituto Nacional de Estatística (INE), 23,4% da população tem 65 e mais anos. São 182 seniores por cada 100 jovens. Diferem entre si em muitas características, entre essas, nas condições habitacionais.  A diversidade de condições e desafios habitacionais marca a experiência de viver e envelhecer em Portugal. 

A maioria das pessoas com 65 e mais anos vive em casa própria (78%). Todavia, cerca de 22% reside em habitação arrendada, de acordo com os dados do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR) entre 2015 e 2019. Nos adultos entre os 18 e os 64 anos, essa proporção sobe para 26%. A prevalência do arrendamento também varia com o grau de urbanização, sendo mais comum em áreas densamente povoadas e intermédias, onde chega aos 30%.

Pode conjeturar-se que os mais velhos tiveram mais tempo e oportunidades para se tornarem proprietários, seja através de poupanças, heranças, ou do crédito bancário, amplamente incentivado até 2002 por sucessivos governos via juros bonificados. É, por isso, bastante plausível que aqueles que não possuem casa própria aos 65 anos dificilmente o virão a conseguir.

A situação dos arrendatários com 65 e mais anos é diferente da dos mais jovens, sobretudo daqueles que estão no início da vida ativa. Para os mais velhos, o congelamento das rendas, sustentado ao longo dos anos por prorrogações e, mais recentemente, transformado em definitivo, foi um fator decisivo. Já os jovens em início da vida adulta têm compromissos habitacionais frequentemente considerados menos permanentes, como arrendamento ou partilha de habitação, muitas vezes devido à incerteza laboral e económica.

Portugal transformou-se num país de proprietários – talvez por falta de outras opções –, mas ter casa não garante, por si só, condições habitacionais dignas. Um trabalho anterior sobre desigualdades sociais mostra que os arrendatários enfrentam uma situação ainda mais desfavorável do que os proprietários: têm custos de habitação mais altos, estão mais frequentemente sobrecarregados com despesas, em condições de sobrelotação e de privação severa das condições de habitação.

Um dos indicadores mais ilustrativos das condições habitacionais, e um dos habitualmente utilizados para medir a pobreza energética, é a proporção da população com incapacidade financeira para manter a casa adequadamente aquecida. Entre 2015 e 2019, essa dificuldade afetou 18% dos proprietários e 34% dos arrendatários, de acordo com os dados do ICOR. Por faixa etária, mais de uma em cada quatro pessoas com 65 e mais anos relatou não ter recursos para aquecer a casa adequadamente (26%), uma proporção superior à observada entre os 18 e 64 anos (20%). As diferenças são pequenas entre áreas densamente e pouco povoadas. Este quadro resulta da conjugação de vários fatores: baixos rendimentos, custos de energia elevados, falta de isolamento térmico, despesas de habitação elevadas e dificuldade em aceder a programas de apoio que funcionam por reembolso. Como o nome do indicador sugere, é uma questão essencialmente financeira. No entanto, há outros fatores que também contribuem para este problema. Sendo menos debatidos, merecem ser aqui considerados.

Os Censos 2021 revelam uma realidade preocupante. Por um lado, a maioria das casas usadas como residência habitual em Portugal não possui sistemas de aquecimento ou conta apenas com aparelhos móveis, elétricos ou a gás, pouco eficientes tanto no consumo de energia quanto na capacidade de aquecer o ambiente. Esta situação é mais frequente nas regiões com clima mais ameno, como as regiões autónomas, a Área Metropolitana de Lisboa e o Algarve. Mesmo nas áreas mais frias, como o Norte, menos de metade dos lares têm aquecimento central, lareiras abertas, recuperadores de calor ou outros equipamentos fixos.

Figura 1. Alojamentos familiares clássicos de residência habitual (%), por tipo de aquecimento utilizado com maior frequência, NUTS II. Fonte: Censos 2021, INE.

Por outro lado, viver numa casa com mais divisões do que o necessário representa custos adicionais de aquecimento. Os Censos 2021 revelam que Portugal tem uma taxa de sublotação da habitação muito elevada nos alojamentos utilizados como residência habitual (64%). As regiões do Centro e do Alentejo apresentam valores ainda mais altos (73% e 69%, respetivamente). Mesmo nas áreas com maior pressão no mercado imobiliário, as taxas de sublotação continuam extremamente altas: Região Autónoma da Madeira (49%), Área Metropolitana de Lisboa e Algarve (ambas com 57%).

Se adotarmos uma definição menos restritiva de sublotação do que a utilizada a nível europeu — considerando que ter uma divisão a mais possa não configurar sublotação, especialmente à luz da importância do espaço interior evidenciada na pandemia de Covid-19 —, a taxa de sublotação em Portugal ainda seria de 35%. Ou seja, mais de três em cada dez casas têm pelo menos duas divisões a mais do que seria necessário, tendo em conta a composição do agregado familiar.

Figura 2. Alojamentos familiares clássicos de residência habitual, por índice de lotação, NUTS II. Fonte: Censos 2021, INE.

É sabido que a sublotação é mais elevada em casas onde residem pessoas idosas, refletindo um desajuste comum em países com baixa mobilidade residencial: enquanto a dimensão familiar muda ao longo do tempo, a tipologia da habitação permanece fixa. A ideia de “uma casa para toda a vida” está profundamente enraizada nos padrões residenciais em Portugal, mas isso traz diversos desafios, incluindo um esforço financeiro adicional para aquecer adequadamente a casa. A literatura científica aponta para uma relação entre o excesso de mortalidade no inverno e a exposição prolongada a baixas temperaturas internas, sendo a idade um dos principais fatores de risco. Perante isto, estes dados são, no mínimo, preocupantes. 

Portugal, como muitos outros países, enfrenta desafios decorrentes de tendências demográficas de longo prazo, em particular o envelhecimento da população. Esta realidade é o resultado de dinâmicas bem conhecidas: o aumento gradual da esperança de vida, décadas de baixa natalidade e períodos prolongados de saldos migratórios negativos. Este processo só deverá desacelerar na década de 2040, quando as gerações nascidas a partir dos anos 1980, menores em número, atingirem a senioridade. Nesse momento, segundo as projeções oficiais, o grande desafio deixará de ser o envelhecimento e passará a ser o declínio demográfico.

Não basta, porém, viver mais. É fundamental viver melhor, e isso passa por melhorar as condições habitacionais. As casas precisam de ser mais adaptadas às necessidades de uma população envelhecida, garantindo conforto térmico, acessibilidade e segurança. Investir na requalificação dos espaços habitacionais, com melhores isolamentos e sistemas de aquecimento eficientes, não só promove uma vida mais digna para todos, mas também é um passo essencial para responder aos desafios de uma população cada vez mais envelhecida.

A autora agradece o apuramento de dados do ICOR 2015-2019 facultado pelo INE (PED-421796786) no âmbito do Grupo de Trabalho sobre Indicadores das Desigualdades Sociais.

Uma versão deste texto foi publicada na edição n.º 17 (Nov-Dec 2024) da IntelCities, Revista das Cidades Inteligentes.

Alda Botelho Azevedo é investigadora auxiliar no Instituto de Ciências Sociais (ICS), onde coordena o doutoramento em Population Sciences da Universidade de Lisboa, e professora auxiliar convidada no ISCSP. A sua investigação centra-se sobretudo nas áreas da demografia da habitação e do envelhecimento da população. alda.azevedo@ics.ulisboa.pt 

Incursão livre sobre os dados do Barómetro Habitação da Fundação Francisco Manuel dos Santos

Por: Alda Botelho Azevedo

Dois dias depois da demissão do Primeiro-Ministro António Costa, no âmbito do que viria a ser conhecida como a Operação Influencer, foi publicado o Barómetro Habitação da Fundação Francisco Manuel dos Santos, em que tive o prazer de participar com o João Pereira dos Santos, do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa. Apesar da atenção mediática e da opinião pública estarem centradas sobretudo no que se passava na arena política, o Barómetro Habitação recebeu ampla cobertura dos meios de comunicação social.

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O modelo de regeneração de Aalborg Øst: Um projeto LEGO de esperança

Por: Sónia Alves

As area-based initiatives (iniciativas de base territorial) estão bem documentadas e debatidas na literatura, contando já com mais de quatro décadas de financiamento por parte de governos locais e nacionais, bem como da União Europeia.

A lógica subjacente a estas iniciativas é que, embora os problemas da pobreza e da desvantagem socioespacial não estejam confinados às áreas em desvantagem, o modo como estes se concentram e se interligam nessas áreas podem gerar espirais negativas de declínio que ameaçam não só a coesão social e urbana, como uma mobilidade social descendente da população residente, sobretudo a mais vulnerável.

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Pacote de Habitação: o helicopter money tem onde aterrar?

Por: Ricardo Moreira

A crise da habitação em Portugal ganhou uma visibilidade enorme nos últimos meses, muito embora não seja um problema novo. Com efeito, já em 2019, João Seixas avisava que a taxa de esforço na Área Metropolitana de Lisboa estava muito elevada: 28% na compra e 46% no arrendamento. Depois da pandemia a situação piorou muito. No último trimestre de 2022, o preço das casas na Zona Euro subiu 6,8%, mas em Portugal subiu o dobro, ficando acima dos 13%. As rendas têm subido a um ritmo médio de 9,7% ao ano desde 2017, sendo esta subida ainda mais acentuada nas cidades. A taxa de juro dos novos créditos à habitação quadruplicou no último ano e a Euribor está no seu valor máximo desde 2008.

A situação na habitação é tão grave que um conhecido humorista relatou histórias sem piada que lhe chegaram via redes sociais e o descontentamento social está a levar as pessoas a manifestarem-se por soluções.

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Demografia, avaliação de necessidades de habitação e governança metropolitana

Por: Alda Botelho Azevedo e Sónia Alves

Em diversas áreas metropolitanas europeias, como, por exemplo, em Bruxelas ou Londres, as estratégias públicas de habitação são definidas à escala metropolitana, contando com um orçamento significativo que é o resultado de transferências diretas do estado central e de taxas e receitas cobradas ao nível municipal. Os estudos demográficos, realizados com base em dados censitários, administrativos e de inquérito são elementos cruciais na avaliação das necessidades de habitação e na definição das estratégias metropolitanas de habitação. São esses estudos que, a partir da análise das dinâmicas da natalidade, mortalidade e das migrações, e ainda das tendências nos padrões de formação familiar, permitem compreender a procura demográfica de habitação e examinar os impactos das decisões setoriais (por exemplo, no domínio da mobilidade ou do licenciamento urbanístico), e de investimento privado nas próprias necessidades de habitação, por subgrupos de população e tipologias/regimes de habitação.

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Solo municipal e o Programa de Renda Acessível de Lisboa

Por : Sónia Alves

Em muitas cidades portuguesas e europeias a escassez de terrenos urbanos para construção, isto é, de terrenos total ou parcialmente urbanizados que, como tal, estão afetos em plano de ordenamento do território à edificação, tem sido identificada como o principal obstáculo à provisão de habitação acessível às famílias de rendimentos médios e baixos.

Porque a existência destes terrenos (em vias de ou devidamente infraestruturados) a preços económicos é fundamental para a concretização de opções estratégicas dos municípios, incluindo as de provisão de habitação abaixo dos valores de mercado, muitas cidades têm optado por desenvolver políticas ou iniciativas fundiárias. Exemplos foram, em Portugal, o apoio às cooperativas de habitação (que foram, no entanto, incapazes de proteger a habitação produzida com subsídio público da especulação em vendas posteriores); ou o apoio à construção de habitação para arrendamento sem fins lucrativos, como se observa na Dinamarca. Na Alemanha, os privados recebem financiamento a fundo perdido para apoiar a construção e facilitar o arrendamento de habitação a rendas acessíveis às famílias das classes média e baixa por um determinado número de anos. Quando termina esse período a habitação entra no mercado de habitação não regulado.

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Precarious homes: gender, domestic space and film before and during the pandemic

By: Anna Viola Sborgi

In Phyllida Lloyd’s recent drama Herself (2020), domestic abuse survivor Sandra (Clare Dunne) devises her own way out of the Irish housing crisis: after watching some online tutorials on how to self-build an affordable home, she decides to build one to live in with her two little girls and to protect herself from her violent husband Gary (Ian Lloyd Anderson). To her help comes Peggy (Harriet Walter), the wealthy, retired doctor Sandra works for as a cleaner, who offers her land to build the house in the back of her Dublin townhouse. A group of friends and colleagues, overseen by initially reluctant building contractor Aido (Conleth Hill), generously gather to help her in the enterprise.

A compelling portrayal of domestic abuse survival, supported by a moving performance by actress and co-screenwriter Clare Dunne, the film is also a hymn to community and solidarity, especially resonant in pandemic times. Though the overly optimistic house-building narrative sometimes lacks credibility, especially considering class dynamics, the film is tempered by numerous plot twists that make one thing abundantly clear: home is never at easy reach.

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