Sobre a importância de uma adequada regulação no planeamento urbano e no arrendamento

Por: Sónia Alves e Alda Botelho Azevedo

“Não há nada mais importante para o progresso das nossas economias do que uma boa regulamentação. Por uma boa regulamentação entende-se um tipo de regulação que serve para melhorar o bem-estar da comunidade em geral.” Uma posição defendida pela OCDE, e subscrita por Andreas Hendricks, professor da Universidade de Munique, que, durante o Seminário III do projeto SustainLis, refletiu sobre o conjunto de instrumentos que têm sido usados no campo do planeamento urbano para capturar parte do aumento das mais-valias resultantes da decisão e da ação pública, por exemplo, no licenciamento de operações urbanísticas (por exemplo de construção ou ampliação) de dimensão relevante que devem destinar uma percentagem da sua área para habitação social (mais detalhes aqui).

Figura 1. Participantes no Seminário III do projeto SustainLis. Vídeo do seminário disponível aqui.

A importância destes instrumentos resulta, como o próprio Andreas Hendricks explicou, por um lado, do reconhecimento da existência de recursos públicos limitados para responder a um número crescente de expectativas de intervenção do Estado (nos domínios da segurança social, do emprego, da educação, da saúde, habitação, etc.); e, por outro lado, do reconhecimento de que as decisões públicas no domínio do planeamento e do licenciamento urbanístico geram mais-valias que podem ser parcialmente capturadas para responder a algumas dessas necessidades sociais (como é o caso do acesso a habitação social e acessível).

A relevância da regulação e promoção do mercado de arrendamento é óbvia. Num país como Portugal, onde o sector de habitação social é residual (2% do stock habitacional em 2011) e prevalece a ocupação em propriedade (ainda que em decréscimo), o arrendamento desempenha um papel importante na provisão de habitação às famílias de todos os estatutos socioeconómicos. Mais, é também a regulação do setor de arrendamento, no que se refere à duração, aos valores de renda e aos termos de denúncia dos contratos, que determina a qualidade, a composição e as tendências que se observam no sector. Mas vamos por partes e foquemo-nos particularmente na regulação do sector de arrendamento privado, que é constituído por alojamentos familiares clássicos, de propriedade de particulares ou empresas, cuja atividade económica visa a obtenção de lucro.

Em Portugal, a percentagem dos alojamentos familiares clássicos de residência habitual ocupados por inquilinos e outros diminuiu de 61% em 1960 para mínimos históricos de 24% em 2001. Os resultados preliminares dos Censos de 2021 indicam um ligeiro aumento relativamente a 2011 (de 27% para 30%). Os dados do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (Eurostat), apesar de não serem diretamente comparáveis por se referirem ao universo da população e não dos alojamentos, são úteis porque nos permitem acompanhar a situação ano a ano. Em 2021, apenas uma pequena proporção da população portuguesa residia em alojamentos arrendados a preços de mercado (10,9%), um valor muito abaixo da média europeia dos 27 países (20,2%). Igualmente reduzida era a proporção da população a residir em alojamentos arrendados a preços abaixo de mercado ou gratuitamente (10,8%). A situação predominante em Portugal é a ocupação em propriedade (78,3% da população em 2021) que, como se sabe, foi o resultado de políticas públicas com base em juros bonificados e concessões fiscais que favoreceram os interesses dos bancos e dos construtores num modelo de expansão urbana. Entre 1960 e 2011, o stock de habitação mais do que duplicou em Portugal, a um ritmo que em muito ultrapassou o do crescimento do número de famílias, conduzindo à formação de uma bolsa de habitação que está vaga ou é apenas utilizada sazonalmente.

As fragilidades, assimetrias e dualidades do caso português tornam-se mais óbvias quando analisadas à luz de outros casos europeus. Depois de uma primeira geração de regulação dos contratos de arrendamento muito restrita, aplicada durante a primeira metade do século XX, em resposta à destruição do edificado e à crise económica desencadeadas pelas duas grandes guerras mundiais, a generalidade dos países da Europa Ocidental substituiu as medidas de congelamento dos valores nominais das rendas por uma regulação mais equilibrada, que considerava os custos de manutenção/reabilitação dos edifícios e as expectativas de retorno ou rentabilidade dos senhorios. Um dos principais instrumentos de apoio a esta reorientação de políticas, aplicada em vários países europeus a partir da década de 1980, foi a introdução de subsídios à renda para as famílias com vulnerabilidades económicas e de medidas que procuraram harmonizar os valores das rendas – no segmento dos novos contratos e dos existentes – em função da localização, área e qualidade dos alojamentos e das características dos edifícios.

A história, como se sabe, é bem diferente em Portugal. As lutas político-ideológicas que marcaram o final da década de 1970 e o início da de 1980 e o modo como os interesses da banca e da construção influenciaram a política pública nas décadas seguintes, levaram ao desenho e à implementação de políticas de habitação que incentivaram a nova construção em detrimento da promoção da reabilitação e do arrendamento urbano. Sucessivos governos, ao congelarem os contratos de arrendamento anteriores a 1990 e beneficiarem a compra de casa própria, foram contribuindo para a progressiva estagnação do sector do arrendamento privado em Portugal, reduzindo, por sua vez, as já poucas oportunidades de acesso à habitação digna e acessível de diversos grupos vulneráveis.

Figura 2. Website do projecto SustainLis.

A descredibilização deste importante sector nas últimas décadas, quer entre inquilinos quer entre senhorios, tem vindo a dificultar o acesso à habitação digna e a preços acessíveis, bem como a penalizar as condições habitacionais dos agregados domésticos em arrendamento. Precisa-se, por conseguinte, de uma adequada regulação do sector de arrendamento privado em Portugal – na linha da “boa regulação” defendida por Andreas Hendricks para o planeamento urbanístico – o que implica favorecer, pelo menos: a) a harmonização dos valores das rendas em função da localização, da idade e das características dos edifícios/alojamentos; e b) contratos de arrendamento que ofereçam segurança aos inquilinos relativamente à ocupação da habitação e aos senhorios no que respeita aos rendimentos do arrendamento. Por último, a modernização dos edifícios de habitação, questão fundamental para melhorar a qualidade do stock de habitação em arrendamento privado, poderá ser impulsionada, como acontece noutros países europeus, pela disponibilização de apoios à reabilitação e/ou à renda, estes últimos em caso de carência económica dos inquilinos.


Sónia Alves, doutorada em Sociologia, com uma licenciatura em Geografia e mestrado em Planeamento e Projeto do Ambiente Urbano, é investigadora auxiliar no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. A sua investigação e principais publicações centram-se nas áreas da geografia social, sociologia urbana e das políticas urbanas e de habitação. sonia.alves@ics.ulisboa.pt

Alda Botelho Azevedo é investigadora auxiliar no Instituto de Ciências Sociais e professora auxiliar convidada no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. A sua investigação centra-se sobretudo nas áreas da demografia da habitação e do envelhecimento da população. alda.azevedo@ics.ulisboa.pt

Este trabalho foi apoiado pela FCT no âmbito dos projetos SustainLis (PTDC/GESURB/28853/2017) e PopUP (2020.01758.CEECIND/CP1615/CT0010).

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