Quando os espaços perdem o nome: Considerações sobre o anonimato organizacional

Por: Fábio Rafael Augusto

Em 2018, escrevi um post para este mesmo blogue acerca dos desafios com que me deparei no acesso ao terreno de pesquisa. Entre os vários constrangimentos identificados, no decurso da minha investigação de doutoramento, encontravam-se as várias exigências dos responsáveis pelas iniciativas de apoio alimentar que analisei (Organização de Redistribuição de Alimentos – ORA, Cantina Social e Mercearia Social). Tratando-se de um projeto que envolvia a realização de observação participante, por intermédio da prática de voluntariado, era crucial garantir que o acesso às organizações envolvidas ocorria de forma fluida e flexível. Uma das imposições que acabaria por marcar decisivamente o desenrolar da pesquisa, bem como o ritmo e o tom em que a tese seria escrita, prendeu-se com a garantia do anonimato organizacional.

Durante o processo de negociação de entrada nas iniciativas, conforme tive oportunidade de explicar no já mencionado post, contactei com diferentes arranjos institucionais e modelos de gestão. Encontrei estruturas altamente burocráticas e hierarquizadas, mas também modelos organizacionais horizontais e informais. Desta heterogeneidade emergiram diferentes vontades, sendo uma delas a necessidade, expressa por alguns dirigentes, em salvaguardar não só os atores, como também as organizações que representavam. Isto deveu-se, sobretudo, à possibilidade de as caracterizações realizadas na tese poderem, de alguma forma, fragilizar a imagem pública das iniciativas e/ou ferir algum tipo de suscetibilidade.

Perante a impossibilidade de nomear algumas das organizações envolvidas e de utilizar qualquer elemento caracterizador que permitisse a identificação das mesmas, surgiram diversas inquietações: devo ceder e anonimizar? consigo encontrar alternativas viáveis? que procedimentos devo seguir? com quem devo falar? que tipo de informação devo procurar? como devo partir para o processo de escrita? como irá o leitor encarar tal limitação? Com o intuito de alcançar respostas e tomar uma decisão informada, contactei com orientadores, professores, colegas investigadores e explorei alguns artigos científicos sobre a temática. Além disso, também procurei ter acesso a trabalhos (ex.: dissertações, teses e relatórios) que incluíssem o anonimato organizacional no seu percurso metodológico.

 Após o período de exploração e análise do procedimento em causa, foi possível chegar a algumas conclusões. Trata-se, sem dúvida, de uma decisão fraturante, na medida em que limita fortemente a informação que pode ser disponibilizada. A literatura mobilizada apontava para constrangimentos relacionados com dificuldades em contextualizar, do ponto de vista histórico e geográfico, as organizações, bem como para desafios ligados à impossibilidade de incorporar certos elementos visuais na pesquisa. Contudo, também foram reconhecidas algumas vantagens associadas ao anonimato organizacional, destacando-se a liberdade para escrever de forma crítica sobre as organizações analisadas. O investigador pode, desta forma, criar um maior distanciamento para com o seu objeto e dar a conhecer os resultados da sua pesquisa sem receio de julgamento por parte das entidades e atores visados. Esta mais-valia acabaria por ter um peso decisivo no processo de tomada de decisão.

Em termos práticos e após várias conversas com os atores supramencionados, considerei ser inviável procurar organizações substitutas, sobretudo pelo desconhecimento associado ao novo processo de negociação. Não só as novas instituições poderiam fazer o mesmo tipo de exigências, como não era possível prever os prejuízos temporais que o processo de acesso poderia acarretar. Desta forma, optei por aceitar a exigência imposta e por dar a mesma hipótese às restantes organizações envolvidas. Depois de alguns diálogos com os responsáveis, estabeleceu-se que todas as organizações seriam anonimizadas, permitindo uma uniformização do procedimento.

Já com a decisão tomada e as iniciativas devidamente informadas da mesma, avancei para os habituais procedimentos de anonimização dos dados recolhidos (ex.: atribuição de pseudónimos, armazenamento dos ficheiros em local seguro e passagem a pente fino das transcrições com o intuito de evitar qualquer tipo de identificação). Ainda que trabalhosos, tais procedimentos foram levados a cabo de forma relativamente pacífica. O principal obstáculo com que me deparei dizia respeito à escrita do produto final (a tese). Sendo uma pesquisa de carácter etnográfico institucional e conhecendo a importância que as descrições detalhadas sobre os eventos, os atores e os espaços assumem associados à prossecução do método, receei promover demasiada ambiguidade e incerteza junto do leitor. Nesta fase, foram cruciais os vários exemplos de trabalhos científicos visitados que enfrentavam “tormentas” idênticas. A consulta dos mesmos e o entendimento de que era possível seguir uma narrativa e uma linha argumentativa sólidas apesar do impedimento em causa motivaram-me a avançar.

Durante o processo de escrita, foi-se tornando cada vez mais claro que era possível fornecer os dados necessários para fazer cumprir os objetivos da pesquisa. O enfoque recaiu, essencialmente, sobre o conjunto de dinâmicas relacionais e organizacionais que eram (re)produzidas no seio das iniciativas de apoio alimentar analisadas. Descreveram-se com rigor as interações, os acontecimentos, as práticas, as emoções, os sentimentos, bem como os aspetos de ordem mais prática e processual associados ao exercício de voluntariado e/ou de gestão das organizações. Mesmo em relação aos elementos visuais, foi possível integrar no texto informações sobre o modo como as materialidades detêm peso e valor simbólico, constituindo, simultaneamente, um determinante relacional e organizacional. A título de exemplo, destaca-se a presença de umas escadas à entrada de uma das iniciativas analisadas que colocavam frente-a-frente voluntários e beneficiários e demarcavam os primeiros dos segundos. Por colocarem num patamar superior o voluntário que distribuía comida e num patamar inferior o beneficiário que a recebia, estas escadas contribuíam, ainda que de forma não intencional, para reforçar a posição de superioridade daquele que dá face àquele que recebe. À semelhança do estrado que separa o professor dos alunos na escola e reforça a sua posição dominante, também as escadas daquela iniciativa contribuíam para enaltecer a superioridade e/ou inferioridade percecionada por parte de certos atores.

Figura 1. As escadas que demarcam.

A estratégia para contextualizar o leitor passou, justamente, por dar a conhecer elementos que não colocavam em causa a garantia do anonimato organizacional, mas que eram fundamentais para a compreensão das dinâmicas pretendidas. Considera-se que a introdução e o enfoque na exploração de certos elementos, como as referidas escadas, forneciam pistas preciosas para a investigação sem, no entanto, colocarem em causa o procedimento em discussão. Por se tratar de aspetos caracterizadores gerais e transversais a inúmeras iniciativas a atuar no mesmo sector, eles não ameaçavam qualquer tipo de identificação. Além disso, a pesquisa procurava olhar para as iniciativas e os seus atores, mas também para os vários arranjos organizacionais envolvidos e experiências de dar e receber bens alimentares. Neste zoom in e zoom out constantes, acredito que o leitor se sinta suficientemente esclarecido sobre as realidades em análise.


Fábio Rafael Augusto é doutorando em Sociologia (OpenSoc) no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (Bolsa FCT: SFRH/BD/130072/2017) e assistente convidado na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Santarém, tendo colaborado como investigador nos projetos “TRANSE-AC – Transition sociale et environnementale: alternatives et communs” e “Families and Food in Hard Times”. fabio.augusto@ics.ulisboa.pt

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