Por Fábio Rafael Augusto
“Sabemos que o terreno de pesquisa […] é muito mais do que um local onde vai ser realizada a observação. Mas também é um local.” (Amante, 2015)
No âmbito do projeto de doutoramento que me encontro a desenvolver no ICS-ULisboa em Sociologia, onde procuro analisar iniciativas de apoio alimentar (IAA) e as dinâmicas relacionais que se estabelecem entre voluntários e beneficiários, tenho vindo a deparar-me, como seria de esperar, com desafios de diversa ordem.
Um desses desafios prende-se com o acesso ao terreno. De forma a chegar às dinâmicas entre os atores supramencionados considerei pertinente partir para a realização de voluntariado nas IAA selecionadas. Desta forma, seria possível – com recurso ao método de observação participante – cumprir os objetivos do projeto e, simultaneamente, dar algo em troca às iniciativas.

Esta estratégia tem sido utilizada por diversos investigadores (ver Merrel & Williams, 1994; Watts, 2011; Martin, 2014) como forma de aceder aos mais variados tipos de instituições. Apesar desta “troca” que o investigador realiza com a instituição ser apontada na literatura como uma solução válida com benefícios para todos os intervenientes, levantaram-se algumas questões relacionadas, sobretudo, com a forma como o processo de negociação de entrada no terreno se iria desenrolar: Que postura devo adotar? O que devo propor e como o devo fazer? Que exigências podem surgir? Que restrições podem apontar?
Numa tentativa de dar resposta a algumas das questões que me inquietavam, parti para o voluntariado numa IAA em outubro de 2016. Tratava-se de um período exploratório em que me interessava, fundamentalmente, perceber a realidade que viria mais tarde a estudar. Esta fase foi importante para perceber o funcionamento da iniciativa, bem como o ambiente vivido no seu seio. Apercebi-me, por exemplo, que a iniciativa carecia fortemente de voluntários; que as várias tarefas que iria realizar em contexto de voluntariado poderiam dificultar a observação das dinâmicas pretendidas no âmbito do doutoramento; e que a criação de um documento escrito que desse a conhecer os deveres do investigador e da iniciativa podia facilitar o processo de negociação de entrada nas IAA.
Porém, se é verdade que este período exploratório me permitiu traçar algumas estratégias, também é certo que levou ao surgimento de outras questões, nomeadamente no que dizia respeito à forma como eu iria informar os vários participantes no estudo sobre o meu duplo papel, enquanto investigador e enquanto voluntário.
Face a tais constatações, e após partilhar as mesmas com a minha orientadora e em contexto de aula, comecei a pensar sobre o processo de negociação e tomei algumas decisões. Parti para a criação do referido protocolo de cooperação de forma a que este garantisse, por um lado, que a iniciativa me acolhesse e permitisse cumprir os objetivos do projeto, ficando responsável por mediar a minha interação com voluntários e beneficiários e por informar todos os intervenientes sobre o meu duplo papel; e, por outro, que eu me comprometesse a dar a conhecer a todos os participantes do estudo os objetivos do projeto e a salvaguardar tanto a integridade da iniciativa como dos seus atores através do anonimato e da confidencialidade dos dados. Este protocolo foi submetido à Comissão de Ética do ICS-ULisboa. Além disso, também solicitei um parecer ao Instituto em causa que comprovasse o meu estatuto de doutorando e a existência do meu projeto, algo que eu considerava essencial para dar legitimidade ao meu discurso.

Após estes passos, parti para o contacto com as iniciativas e, portanto, para o processo de negociação de entrada no terreno. Um processo que depende fortemente da interação entre o investigador e o responsável ou os responsáveis pela instituição e da capacidade de o primeiro cativar o(s) segundo(s) a colaborar(em). Durante este processo de negociação deparei-me com posturas muito díspares por parte dos vários responsáveis com quem interagi, o que me conduziu a adaptar a diferentes exigências. De forma a salvaguardar as iniciativas, irei utilizar três letras escolhidas de forma aleatória para me referir às três IAA analisadas.
Na iniciativa A deparei-me com um responsável habituado a acolher os mais variados tipos de projetos de investigação na iniciativa que lidera. Este responsável referiu não ser necessário assinar qualquer protocolo nem ficar com nenhum tipo de documento relativo ao projeto, mostrou-se disponível a colaborar e não me exigiu nada em troca. Ainda assim, optei por partir para a assinatura do protocolo e para a entrega de vários documentos informativos do meu projeto.
Na iniciativa B “bati de frente” com uma instituição burocrática e altamente hierarquizada, tendo sido extremamente difícil chegar ao responsável e não só me foi exigido o estabelecimento do protocolo e a entrega de vários documentos informativos, como também o compromisso de que antes de publicar os resultados da investigação os desse a conhecer previamente à iniciativa. Com grandes reticências, optei por concordar com todas as exigências. Contudo, no decorrer do trabalho de campo a iniciativa viria a tornar-se mais flexível e a concordar com a partilha de dados relativos apenas às notas de campo utilizadas no âmbito da tese, que ainda assim é uma prática questionável, mas mais fácil de gerir.
Na iniciativa C encontrei um misto das reações das anteriores, uma instituição algo burocrática e hierarquizada, mas flexível quanto à forma como o voluntariado iria ser compatibilizado com a investigação. Tive total liberdade para decidir as tarefas que pretendia desempenhar, bem como os horários, tal como na iniciativa A. Foi assinado o protocolo de cooperação e entregues os vários documentos informativos, mas tratou-se mais de uma necessidade minha do que da iniciativa.
Esta multiplicidade de situações mostra que o investigador deve partir para o processo de negociação de entrada no terreno com alguma preparação prévia e, de preferência, com conhecimento da realidade que pretende estudar. Desta forma, será possível estabelecer um diálogo mais próximo e realizar pedidos realistas. Durante o processo é necessário que o investigador seja capaz de negociar sem ser demasiado exigente e de ceder, sempre que possível, em prol do projeto e da sua continuidade. A existência de um protocolo de cooperação, de uma declaração por parte da instituição de acolhimento a comprovar a existência do projeto e de outros documentos informativos atribui legitimidade à pesquisa e permite clarificar os termos sobre os quais a parceria entre o investigador e a IAA irá assentar.
Fábio Rafael Augusto é doutorando em Sociologia – OpenSoc no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (Bolsa FCT: SFRH/BD/130072/2017), tendo colaborado como investigador nos projectos “TRANSE-AC – Transição social e ambiental: alternativas e comuns” e “Families and Food in Hard Times”. fabio.augusto@ics.ulisboa.pt
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