Pobreza energética generalizada com crise energética por cima

Por: Ana Horta

A minha fatura de gás de setembro duplicou face ao que eu costumava pagar. Como de costume, recebi um SMS a avisar que a fatura já estava a pagamento, mas desta vez a mensagem acrescentava que esta fatura contemplava um acerto acima da média do meu consumo e, por isso, o pagamento tinha sido fracionado. Assustei-me. O meu consumo de gás costuma ser bastante baixo, como é que esta fatura poderia ser tão alta a ponto de me oferecerem um pagamento fracionado? Afinal, porque o meu consumo é, de facto, muito baixo, a fatura não é assim tão alta. Mas é praticamente o dobro da de agosto, o que me fez pensar como será para muitos portugueses que têm consumos mais altos e salários mais baixos.

Num país que já estava mergulhado em pobreza energética…

Que os portugueses são das populações europeias mais expostas à pobreza energética já não é novidade (neste blogue, por exemplo, já abordámos o assunto aqui e aqui). Uma multiplicidade de fatores explicam esta vulnerabilidade da população portuguesa, entre os quais se destacam os problemas no acesso à habitação, a baixa qualidade de construção e o mau estado de conservação do parque habitacional, os equipamentos domésticos disponíveis e a sua ineficiência, os baixos níveis de rendimento, o elevado custo da energia e ainda fatores socioculturais que nos levam a aceitar e a considerar normal ter frio ou humidade em casa. No seu conjunto, estes fatores contribuem para uma grande extensão da vulnerabilidade das famílias à pobreza energética pelo país fora.

como vai a população fazer face a esta crise?

Sem querer fazer futurologia, parece-me que nenhum dos fatores que têm conduzido à pobreza energética está a evoluir num sentido positivo. Pelo contrário, os preços da energia estão a aumentar, a inflação está a agravar o custo de vida, as taxas de juro dos empréstimos para comprar casa estão a subir dramaticamente e os aumentos salariais anunciados parecem ficar aquém do necessário para não se perder poder de compra. Quanto aos apoios do Estado à renovação e eficiência das habitações, como o Programa Edifícios + Sustentáveis, são claramente insuficientes. Assim, parece inevitável que a pobreza energética aumente consideravelmente em Portugal.

Na investigação sobre pobreza energética desenvolvida no ICS-ULisboa, temos verificado que uma das principais estratégias dos portugueses para lidar com os custos da energia usada no espaço doméstico consiste em restringir a utilização dos serviços energéticos (aquecimento, iluminação, etc.). Assim, muitos portugueses não usam equipamentos de aquecimento no inverno apenas porque isso seria demasiado caro. Uma outra estratégia consiste em recorrer a combustíveis mais baratos (ou que podem ser obtidos gratuitamente) como a lenha. Porém, nem uma nem outra são isentas de riscos para a saúde. A exposição ao frio em casa está relacionada com o agravamento de doenças cardiovasculares e respiratórias, enfraquece o sistema imunitário, fazendo aumentar o risco de infeções, constipações e gripes, agrava artrites e reumatismos e prejudica a saúde mental. Mas também a queima de lenha em casa, sendo responsável pela emissão de partículas tóxicas, agrava doenças cardiovasculares e respiratórias e enfraquece o sistema imunitário.

Existem outras estratégias, que não só permitem ganhar em conforto térmico, como melhorar a eficiência energética da habitação (por exemplo, isolamento térmico de paredes, coberturas e pavimentos, instalação de janelas e portas eficientes ou instalação de toldos), mas apenas as famílias com recursos económicos suficientes as podem adotar. E, dessas, nem todas o fazem.

Obras em casa – sonho ou pesadelo?

Apesar de os edifícios serem geralmente grandes consumidores de energia e de se estimar que na União Europeia quase 75% do parque edificado seja ineficiente energeticamente, apenas 1% dos edifícios são renovados anualmente. Estamos ainda muito longe de uma “onda de renovação” almejada pela Comissão Europeia como parte da transição energética no sentido da sustentabilidade.

No caso de Portugal, a necessidade de renovar – e, até, de reparar – os edifícios é especialmente relevante. Como mostram as estatísticas do Eurostat, nos últimos anos os portugueses têm sido, juntamente com os cipriotas, as populações da União Europeia a viver em habitações com mais infiltrações, humidades e apodrecimentos. Não menos que um em cada quatro portugueses vive em habitações com estes problemas (Figura 1).


Figura 1. Total da população a viver em habitações com infiltrações nos telhados, humidade nas paredes, pavimentos ou fundações ou apodrecimentos nas janelas ou pavimentos, por países da União Europeia, em 2020 (em %). Fonte: Eurostat.

Este estado de degradação da habitação no país não pode explicar-se apenas pelos rendimentos baixos dos portugueses. A baixa qualidade de construção de muitos edifícios, a maior parte dos quais construídos antes de 1990, quando surgiu a primeira regulamentação sobre o desempenho térmico dos edifícios, também deve contribuir. Mas há outros fatores que devemos considerar. Numa perspetiva sociológica, para que a realização de obras de manutenção e/ou renovação das habitações possa tornar-se uma prática corrente, é necessário conjugarem-se diversos elementos, como o conhecimento, competências e saber-fazer que temos em relação ao que é preciso ser feito, os significados e aspirações relacionados ou as tecnologias e componentes materiais envolvidos. Ora, em Portugal há não só escassez de mão-de-obra qualificada no setor da construção, como, de uma forma geral, a população não está ainda suficientemente familiarizada com a importância do isolamento térmico, por exemplo. Há ainda bastante desconhecimento acerca de que medidas podem ser implementadas para melhorar o conforto e a eficiência energética das habitações, que materiais devem ser usados, quem pode executar essas medidas. Tudo isto contribui para que haja incerteza quanto à relação custo-benefício das obras e o recente aumento dos custos com matérias-primas e materiais de construção é mais um travão.

E, no entanto, é preciso arregaçar as mangas…


Ana Horta é investigadora auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, onde pertence ao grupo de investigação Ambiente, Território e Sociedade. É membro da equipa de coordenação da Secção Ambiente e Sociedade da Associação Portuguesa de Sociologia.

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