Se uma pessoa aguenta, não é preciso estar a gastar energia! Sobre a pobreza energética em Portugal

Por Ana Horta

Após ter sido ignorada durante muitos anos, a pobreza energética começa finalmente a ser reconhecida em Portugal como um problema que afeta muitas famílias. Uma investigação recentemente conduzida pelo ICS-ULisboa consistiu numa primeira abordagem sociológica das práticas e perceções dos portugueses a este respeito. Esta investigação foi desenvolvida no âmbito da medida Ligar, coordenada pela ADENE e financiada pela ERSE no âmbito do Plano de Promoção da Eficiência no Consumo de Energia Elétrica. Além da participação da ADENE e do ICS-ULisboa, este projeto reuniu como parceiros o CENSE da FCT-UNL, a Sair da Casca e a CDI Portugal. Este post reflete sobre alguns dos resultados do relatório produzido pela equipa do ICS, onde são analisadas 100 entrevistas realizadas em dez freguesias de zonas bastante diferentes do país.

Um dos resultados obtidos sugere a extensão e também a intensidade do desconforto térmico sentido em casa por muitos portugueses. Mais de metade dos agregados familiares entrevistados afirmaram que a sua casa é simultaneamente fria ou muito fria no inverno e quente ou muito quente no verão. Apenas 16 dos 100 agregados entrevistados disseram estar satisfeitos com o comportamento térmico da sua casa, tanto de verão como de inverno. Entre estes 16 encontram-se pessoas que afirmam “nunca ter frio”, mas também agregados que, para aquecerem a casa, têm de usar algum tipo de equipamento. Vários destes casos recorrem a lareiras e localizam-se em meios rurais.

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Fonte: Sonia Salvador (Flickr)

Nas zonas mais frias pode ser necessário acender a lareira todos os dias, de setembro ao final de maio ou junho. Diversos entrevistados afirmaram usar a lareira não só como aquecimento, mas também para cozinhar em panelas ou potes de ferro e ainda para aquecer água. Apesar de as lareiras tradicionais serem pouco eficientes, segundo o Inquérito ao Consumo de Energia no Setor Doméstico, em 2010 eram utilizadas em 24% dos alojamentos portugueses, sendo o segundo equipamento de aquecimento mais usado a seguir aos aquecedores elétricos. Embora relativamente ao consumo total de energia (medido em toneladas equivalentes de petróleo) nos alojamentos portugueses a lenha surja em segundo lugar após a eletricidade, no que diz respeito ao custo a lenha correspondia a apenas 3,4% da despesa total dos agregados familiares em energia. Esta diferença deve-se ao facto de a maior parte da lenha consumida não ser adquirida, mas sim recolhida nas proximidades de casa ou obtida de outras formas, sem custos. Embora a utilização de lareiras para aquecimento da casa possa assim não ser cara, não deixa de ser um recurso precário, sobretudo porque depende da disponibilidade de biomassa e porque obriga a esforços físicos (recolha e transporte da lenha, mas também limpeza) que a dado momento podem tornar-se demasiado penosos devido a doença ou envelhecimento. Entre as entrevistas realizadas encontram-se alguns casos de pessoas, sobretudo idosos, que referiram ter deixado de acender a lareira por alguma razão – apesar do frio que sentem em casa. É o caso de uma senhora de 74 anos, a viver sozinha, que disse ter passado a aquecer-se apenas com mantas e cobertores.

Por um conjunto de razões, em que se incluem aspetos históricos, infraestruturais, socioculturais e políticos, Portugal é, a seguir a Malta, o país da União Europeia onde menos habitações dispõem de equipamentos de aquecimento. Em 2015-16 só 16,2% dos agregados familiares tinham aquecimento central em casa e apenas 15,7% tinham ar condicionado. Mesmo entre a população no quintil com mais rendimento, apenas 26,6% dispunham de um sistema de aquecimento central e 31,1% de ar condicionado. O acesso a estes equipamentos diminui progressivamente à medida que as famílias têm níveis de rendimento mais baixos (Figura 1). Entre estes equipamentos, o mais comum no país é o aquecedor elétrico portátil, cuja instalação é imediata, não exigindo a realização de obras, tem um custo de aquisição baixo e é de utilização muito simples e segura. No entanto, como mostram as entrevistas, por experiência própria muitos agregados familiares aprenderam que os aquecedores elétricos são “sorvedouros” de energia. Diversos entrevistados afirmaram ter posto de parte o aquecedor, não pretendendo voltar a usá-lo. E os que não o dispensam tentam reduzir ao mínimo o tempo de utilização.

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Figura 1 – Famílias portuguesas com sistemas de regulação da temperatura interior em casa por quintis do rendimento total equivalente, 2015-16 (%).
Fonte: INE.

A principal razão evocada nas entrevistas para limitar o uso deste equipamento é o custo da eletricidade. Num país em que os rendimentos estão bem abaixo da média da União Europeia, não surpreende que a população tenha um nível de vida igualmente mais baixo. No entanto, no que diz respeito ao custo da eletricidade para os consumidores domésticos há uma enorme desproporção entre o rendimento médio da população e o preço de um bem que, numa sociedade moderna, é essencial. De facto, Portugal é um dos países da União Europeia em que este custo é mais alto. E ainda que, medindo em euros, o preço da eletricidade para as famílias portuguesas na segunda metade de 2018 tenha sido o sexto mais alto de entre os 28 países da UE, se for medido em paridade de poder compra o preço da eletricidade em Portugal é o mais alto da UE. E isto é assim apesar de nos últimos dois anos o preço da eletricidade para os consumidores domésticos ter descido ligeiramente em Portugal. Na verdade, nos últimos anos este custo tinha subido continuamente e, desde 2012, tem ficado acima da média da UE. Como mostra a Figura 2, os impostos e as taxas incluídos no preço da eletricidade correspondem a mais de metade do preço da eletricidade para os utilizadores domésticos. Em média, na UE os impostos e as taxas constituem pouco mais de um terço do preço da eletricidade para as famílias.

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Figura 2. – Preços da eletricidade para os consumidores domésticos em Portugal e na União Europeia, 2008-17. 
Fonte: Eurostat.

A regulação dos preços, os impostos e as taxas são instrumentos de que os governos dispõem para incentivar ou penalizar determinados consumos. E num contexto em que é cada vez mais urgente a transição para um sistema energético sustentável, na tentativa de mitigar as alterações climáticas, é compreensível que o consumo de eletricidade seja penalizado. No entanto, num país em que a maior parte da população apenas tem acesso a aquecedores elétricos (ou lareiras), e que diversos indicadores e estudos mostram que tem uma elevada vulnerabilidade à pobreza energética, o preço da eletricidade para os consumidores domésticos devia estar sujeito a mais evidentes princípios de justiça social.

A pobreza energética não seria eliminada através de uma simples descida do preço da eletricidade, uma vez que também tem outras causas. Além dos fatores já referidos neste post, é importante referir a baixa qualidade do parque habitacional, que torna a maioria das habitações energeticamente pouco eficientes. Seria ainda importante que os decisores políticos, dada a sua responsabilidade, ultrapassassem uma espécie de estoicismo muito frequente no país, que abrange desde a resignação a uma preferência pela aclimatação, que pode contribuir para que os portugueses estejam entre os europeus que menos energia gastam em casa – mas que dificulta o reconhecimento dos efeitos negativos da pobreza energética e da necessidade de um combate consistente a este problema.


Ana Horta é investigadora auxiliar no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa). ana.horta@ics.ulisboa.pt 

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