Novos usos em redor do Património Tangível Pós-Industrial. Contributos do Projeto H2020 ROCK

Por João Carlos Martins

As cidades, e os seus territórios urbanos mais ou menos periféricos, enquanto formas territoriais do capitalismo contemporâneo, resultam da interação entre capital, representações e atores sociais. Compreender a herança cultural das urbes contemporâneas, perante um contexto global que promove o consumo e a visita, e em que estas marcas históricas são convocadas como elementos fundamentais de competição entre cidades, é também compreender a razão das suas pulsões, desvios e disfuncionalidades.

Como outras cidades industriais no mundo, Manchester e a sua zona de Castlefield é um exemplo claro da reutilização do passado industrial com novos usos urbanos: zona de lazer noturno e até um museu de Ciência e Indústria.

Figura 1Manchester
Reutilização dos armazéns pós-industriais junto do rio Irwell em Manchester.
Fonte: Autor (2019)

É neste campo que o projeto ROCK (Regeneration and Optimization of Cultural heritage in creative and Knowledge cities), financiado pelo programa de investigação e inovação da União Europeia Horizonte 2020, se inscreve. Conta com a participação de 10 cidades europeias, em que 7 (Atenas, Cluj-Napoca, Eidhoven, Liverpool, Lyon, Torino e Vilnius) se apresentam como cidades modelo. O reconhecimento das suas boas práticas na gestão e otimização da herança cultural e na dinamização dos seus espaços urbanos com criatividade, conhecimento e inovação, constituem um exemplo para as cidades replicadoras (Lisboa, Skopje e Bolonha).

Lisboa, como cidade replicadora, tem vindo a promover as boas práticas testadas noutros contextos citadinos, através do mapeamento e da promoção de usos inovadores dos seus edifícios históricos, equipamentos culturais e espaços vazios. O projeto incide nas freguesias de Marvila e do Beato, orientando-se em particular para as áreas circundantes da Biblioteca de Marvila, um polo de dinamização cultural e também de participação cívica. Aqui o projeto H2020 ROCK tem vindo a promover um conjunto de iniciativas de revitalização urbana, entre elas dois Projetos Piloto: (i) a “Loja convida” e o (ii) Jardim para Todos” entre outras iniciativas de igual valor.

Figura 2 Núcleos populacionais na área do Projeto ROCK
Núcleos populacionais na área do Projeto H2020 ROCK.
Fonte: Francesca Berardi (2019)

De uma forma mais evidente,  a freguesia de Marvila tem sido vista como um novo espaço a descobrir, em renovação, como bairro cool, na moda, onde a reconversão de armazéns industriais se apresenta como um elemento de valorização do . O nosso papel como investigadores passou por compreender o uso contemporâneo de três tipologias diferenciadas de património físico: pátios e vilas operárias, palácios e quintas e armazéns industriais e comerciais.

Os pátios e vilas operárias ainda existentes na área de intervenção do Projeto H2020 ROCK localizam-se maioritariamente na Rua de Marvila e no Beco dos Toucinheiros, sendo uma destas a Vila Dias, onde se localiza a antiga Cooperativa de Crédito e Consumo A Xabreguense. Foi criada aquando da criação da vila operária, que alojava muitos dos operários do porto de Lisboa, assim como de um conjunto de indústrias existentes na zona de Xabregas. Esta vila operária foi alvo de uma tentativa de venda, sem qualquer conhecimento por parte dos moradores, nem da municipalidade. Em resultado, a venda foi impugnada judicialmente pela iniciativa municipal. Igualmente o Prédio Santos Lima, ou Vila Pereira, tem sofrido os efeitos da crescente visibilidade de Marvila, levando ao desalojamento dos seus moradores, em grande medida resultante do aumento crescente do preço por metro quadrado na Freguesia de Marvila, tal como os dados do último trimestre de 2018 e contabilizados pelo INE nos mostra.

Figura 3 Painel representativo da Cooperativa
Painel representativo da Cooperativa de Crédito e Consumo A Xabreguense.
Fonte: Autor (2019)

No que toca aos palácios e quintas existentes, maioritariamente em ruínas ou em estado expectante, a sua origem está ligada à ocupação cristã destes territórios, aquando da reconquista da cidade de Lisboa. Foram cedidas áreas a ordens religiosas, tendo sido criados espaços como o Convento do Beato, recentemente vendido para a instalação de um hotel, ou quintas agrícolas como a Quinta e o Palácio das Fontes, atual Biblioteca de Marvila.

Figura 4 Biblioteca de Marvila
Biblioteca de Marvila com o edifício rosa reconvertido da Quinta das Fontes.
Fonte: Autor (2019)

Por fim expomos os elementos patrimoniais que apresentam uma maior visibilidade no território do Projecto H2020 ROCK, os armazéns que tiveram usos industriais e comercias. Dos 32 espaços mapeados até julho de 2019, apenas 12,5% tinham sido reocupados até 1999, em resultado da criação do Parque das Nações, que atraiu alguns empreendedores para o local, como a Grafe Publicidade, responsável pela página Orientre. Mas a maioria dos equipamentos mapeados surgiram nos últimos três anos, com a introdução de espaços coletivos ocupados por várias empresas, os co-workspaces, e particularmente no campo da gastronomia, com novos restaurantes e cervejarias.

Figura 5 Okober fest
Oktober Fest na Cervejaria Musa.
Fonte: Autor (2018)

O passado, as diferentes vidas de uma cidade, que a marcam de forma física e intangível, as sucessivas vagas de urbanização a que estiveram sujeitas, os seus promotores e o alcance das transformações socio espaciais ocorridas, são elementos fundamentais para a compreensão não só do seu presente, mas também do seu futuro, convocando um passado mais ou menos longínquo constituinte da sua identidade. O projeto H2020 ROCK, enquanto parceria entre o Departamento de Cultura da Câmara Municipal de Lisboa e uma equipa do ICS, tem trabalhado afincadamente na otimização do Património de Marvila e do Beato, consubstanciada numa estratégia que implica a participação ativa destas comunidades, nomeadamente através da metodologia de laboratórios-vivos, em que um grupo de moradores tem estado presente ativamente. A recolha de testemunhos para a criação do novo Centro Interpretativo de Marvila tem revelado um conjunto de histórias vividas por aquelas populações que levantam a importância dos processos migratórios, do trabalho industrial e dos seus movimentos operários, da importância da memória como elemento fundamental na criação de um novo polo de dinamização e de consumo cultural em Lisboa.


João Carlos Martins é Investigador de Pós-Doutoramento no Projeto H2020 ROCK (Regeneration and Optimization of Cultural heritage in creative and Knowledge cities)

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