A irrelevância da Sociologia e da Antropologia na elaboração do relatório sobre o estado da segurança alimentar e nutricional no mundo

Por Virgínia Henriques Calado

Entre o expectável rigor tecnocrático, alicerçado na prova estatística, e a desconstrução e a assunção da falibilidade do humano muitas vezes propostas pelas ciências sociais, a escolha tem sido feita sem grandes hesitações. Tem cabido à primeira destas propostas a preponderância por parte de quem tem poder para condicionar as políticas seguidas por quem governa. A esta regra não têm escapado as grandes instituições intergovernamentais, por exemplo, as que se abrigam no quadro das Nações Unidas.

Foi anunciada, para o dia 15 de julho de 2019, a publicação pela Organização para a Agricultura e a Alimentação (FAO) do relatório anual sobre segurança alimentar e nutricional no mundo. Alguma da informação surgida no Relatório de 2018 será agora atualizada e alguns temas adquirirão novo ou renovado destaque. Com publicação digital disponível desde 1999, estes relatórios pretendem informar sobre os progressos no combate à fome, o estado da segurança alimentar e nutricional e medidas a considerar para que a segurança alimentar, um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030 das Nações Unidas, seja alcançada. Além da FAO, quatro outras agências da Organização das Nações Unidas – Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), Fundo das Nações Unidas Para a Infância (UNICEF), Programa Mundial de Alimentos (PMA) e Organização Mundial da Saúde (OMS) – contribuem para a elaboração destes relatórios. O apoio de todas estas instituições, cada uma delas contando com o trabalho técnico e científico de dezenas de peritos, confere ao Relatório sólida autoridade e um amplo reconhecimento.

Dirigidos a uma vasta audiência, que inclui organizações nacionais e internacionais, governamentais e não-governamentais, académicos e decisores políticos, estes relatórios são referência frequente no enquadramento e justificação de posições e ações relacionadas com políticas públicas. Para além de terem um conteúdo informativo relevante, fornecem reportório lexical, conceitos, indicadores e estatísticas para a leitura e interpretação de questões conectadas com a segurança alimentar e nutricional.

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Capa do relatório The state of food security and
Nutrition in the world. Fonte: FAO, Roma. 2018.

Se atentarmos no relatório de 2018 – The state of food security and nutrition in the world (181p.) – facilmente percebemos as opções políticas, científicas e técnicas que o enformam. Uma equipa consultiva superior, com quadros designados pelas cinco agências, planificou este relatório e decidiu colocar a ênfase na influência das alterações climáticas na segurança alimentar e nutricional. A exposição a situações climáticas extremas mais complexas, frequentes e intensas, foi aí destacada, bem como as medidas de resiliência a adotar para fazer face às mesmas.

A decisão sobre as temáticas a enfatizar nos relatórios funda-se na evidência científica, mas esse facto não obsta a que seja também uma opção-decisão política. Sendo um documento de evidente alcance público, susceptível de influenciar as opções políticas e a governança associada a assuntos como a agricultura e a alimentação, deve ter-se em conta a relevância do que é escolhido como tema central. Além da evidência de que uma diferente escolha — por exemplo, a desigualdade na distribuição dos rendimentos — teria diferentes consequências, importa sublinhar que mesmo em relação ao tema escolhido, alterações climáticas e resiliência face às mesmas, se manifestam opções políticas sobre como proteger e gerir os recursos do mundo. Neste sentido, é como documento político que importa olhar para este Relatório.

O conjunto de técnicos e cientistas que a preparação do relatório de 2018 arregimentou é considerável, tendo estado envolvidas cerca de 130 pessoas. A orientação geral da publicação foi de Kostas Stamoulis (economista com especialização em questões agrícolas), do Departamento de Desenvolvimento Económico e Social da FAO, ficando a direção da publicação e a sua edição a cargo de funcionários do mesmo departamento, em coordenação com a comissão diretiva composta por representantes das diferentes agências da ONU. Dada a ênfase no uso de técnicas quantitativas para descrever a segurança alimentar e nutricional, a colaboração da Divisão de Estatística do referido Departamento da FAO foi uma peça fundamental na elaboração deste documento.

Dividido em duas partes, com uma primeira dedicada à descrição da segurança alimentar e nutricional no mundo, coordenada por Anne Kepple (FAO), nutricionista; e uma segunda, sobre os efeitos do clima na segurança alimentar e nutricional, coordenada por Cindy Holleman (FAO), economista sénior da FAO, o relatório evidencia claramente quais as áreas científicas/disciplinas relevantes na sua construção. Ciências agrárias, economia, ciências da saúde e da nutrição, climatologia, ecologia, demografia e estatística são as áreas principais. Se olharmos para as 393 notas que compõem este Relatório e onde se referencia a bibliografia, constataremos que uma parte significativa das obras citadas emana das agências da ONU e se circunscreve às referidas áreas, cabendo à história, à sociologia e à antropologia um lugar muito residual. Tão residual que as torna praticamente irrelevantes para a construção do relatório. Os estudos sociais sobre alimentação desenvolvidos por historiadores, sociólogos ou antropólogos não são valorizados neste retrato global. Apenas a fotografia da capa do documento contraria o carácter impessoal e tecnocrático do Relatório, ao retratar uma mulher trabalhando num campo de arroz no Vietname, ameaçado pelo aumento do nível médio das águas do mar. No essencial, as populações humanas para que nos remete desvanecem-se no horizonte, como se habitassem um lugar longínquo, diluídas nos números de um relatório descarnado.

Ainda que se faça referência às adaptações sociais e culturais necessárias num quadro de alterações climáticas — sementes mais resistentes (que permitam armazenar água no solo, com maturação mais rápida); ajustamentos nos calendários das sementeiras e colheitas; transições alimentares; técnicas de cultivo e de organização social (criação de cooperativas), os estudos sociais e culturais não assumem verdadeiramente importância, apesar da pertinência que alguns economistas atribuem à cultura enquanto dimensão relevante na segurança alimentar e nutricional. O efeito de ausência é mais acentuado se tivermos em conta que as referências aos aspetos focados têm, nomeadamente no âmbito da antropologia, um vasto recorte temporal, bastando pensar no trabalho de Audrey Richards (anos 1930) na antiga Rodésia do Norte. De igual forma, e no mesmo âmbito disciplinar, encontramos trabalhos sobre o clima e seus efeitos sociais que poderiam contribuir para um olhar mais abrangente sobre o tema em questão. Como exemplo, considerem-se as relações entre seca, fome, doenças e revoltas analisadas de forma surpreendente por Jill Dias num artigo de 1981: Famine and Disease in the History of Angola c. 1830-1930. Embora os temas que aí se abordam sejam matéria dos relatórios que venho referindo, a forma como são olhados acrescenta-lhes algo decisivo: a densidade do humano, tantas vezes excluída dos modelos de análise mais quantitativos.


Virgínia Henriques Calado é antropóloga, investigadora auxiliar no ICS-UL, com apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (DL 57/2016/CP1441/CT0004).

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