Incursão livre sobre os dados do Barómetro Habitação da Fundação Francisco Manuel dos Santos

Por: Alda Botelho Azevedo

Dois dias depois da demissão do Primeiro-Ministro António Costa, no âmbito do que viria a ser conhecida como a Operação Influencer, foi publicado o Barómetro Habitação da Fundação Francisco Manuel dos Santos, em que tive o prazer de participar com o João Pereira dos Santos, do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa. Apesar da atenção mediática e da opinião pública estarem centradas sobretudo no que se passava na arena política, o Barómetro Habitação recebeu ampla cobertura dos meios de comunicação social.

Entre as paragonas dos jornais e as mensagens de rodapé nos programas noticiosos, sobressaiu uma: seis em cada dez pessoas sente pelo menos alguma dificuldade em pagar casa. Por outras palavras, mais de metade das pessoas inquiridas para o Barómetro Habitação que pagam uma prestação bancária ou uma renda da sua casa sentem, pelo menos, alguma dificuldade em pagá-la, tendo em conta o rendimento total do agregado.

Mas como diz a sabedoria popular: “pagar e morrer é a última coisa a fazer,” ou, mais coloquialmente, “a vida custa a todos”. Olhemos, portanto, para aqueles que referem sentir dificuldade ou grande dificuldade em pagar a prestação bancária ou a renda, acreditando ser uma desagregação mais minuciosa. O cenário não melhora muito: quase quatro em cada dez pessoas.

Será que se trata sobretudo de pessoas que acederam à habitação há pouco tempo, já num período de preços da habitação totalmente desfasados dos salários em Portugal? Em parte os dados sugerem que sim: metade destas pessoas residem nas suas casas há dez ou menos anos e um quarto reside há quatro ou menos anos.

Isto leva-me a outra questão: quantas destas pessoas em dificuldades são proprietárias com empréstimo e quantas são arrendatárias? Isto porque, independentemente das dificuldades mencionadas pelos inquiridos relativamente ao pagamento da casa, os arrendatários pagam, em média, quase mais 30% do que os proprietários com empréstimo (680 euros versus 525 euros, respetivamente). Sem grandes surpresas, mas também sem grandes diferenças entre regimes de ocupação, 25% dos proprietários com empréstimo referem sentir dificuldade ou muita dificuldade em pagar a prestação, enquanto nos arrendatários essa percentagem é de 31%.

Figura 1. Tendo em conta o rendimento total do seu agregado, consegue pagar despesas da casa onde reside, como a prestação bancária ou a renda, com…. Fonte: cálculos próprios a partir do Barómetro da Habitação, Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Enquanto a dificuldade no pagamento da casa foi, possivelmente, o tema mais abordado nos meios de comunicação social, um dos resultados mais interessantes foi pouco discutido, razão pela qual decidi abordá-lo aqui. Perguntámos aos inquiridos se as dificuldades no acesso à habitação já tinham condicionado as suas decisões de vida e, aos 27% que responderam afirmativamente, quais. Num leque de nove opções (às quais os inquiridos poderiam acrescentar outras), incluíam-se quatro decisões de vida relacionadas com a formação familiar e a natalidade: sair de casa dos pais, ir viver em conjugalidade, ter o primeiro filho e ter mais um filho. A inclusão destas opções de resposta justifica-se por um motivo: os grandes inquéritos nacionais de realização periódica que incluem dados sobre habitação contêm muito pouca informação sobre a natalidade e vice-versa. Dos resultados do Barómetro Habitação, merecem particular referência as seguintes mensagens:

  • Mais de um em cada quatro inquiridos já se viu condicionado pelas dificuldades no acesso à habitação, com uma média de 1,9 decisões condicionadas;
  • Dois terços adiaram a saída da casa dos pais e cerca de um quinto simplesmente desistiu;
  • Casar ou ir viver em conjugalidade foi uma decisão adiada em mais de metade das situações e antecipada numa em cada quatro;
  • Mais de dois terços adiaram ter o primeiro filho, mais de quatro em cada dez adiou ter mais um filho e quase quatro em cada dez desistiu de ter mais um filho.

Importa referir que a amostra do Barómetro inclui pessoas com 18 e mais anos. Imagine-se como seriam os resultados, caso a amostra fosse constituída apenas por pessoas entre os 18 e os 45 anos, por exemplo. No fundo, o que estes resultados mostram é uma grande necessidade de políticas de família a montante da natalidade, desde logo na emancipação residencial dos jovens e na formação familiar, em complemento às políticas de apoio à parentalidade.

Figura 2. Condicionamentos por dificuldades no acesso à habitação, por tipo (%). Nota: 293 respostas consideradas. Fonte: Azevedo e Santos (2023: 34).

Retomando como iniciei este texto, em 7 de novembro de 2023, Costa demitiu-se e o governo caiu. O resultado das eleições legislativas, entretanto agendadas para 10 de março de 2024, irá ditar quem sucederá. Ao novo governo caberá definir como atender a uma das principais preocupações das famílias em Portugal – o tema é incontornável e não se resolverá sem uma intervenção mais ativa do Estado.


Alda Botelho Azevedo é investigadora auxiliar no Instituto de Ciências Sociais (ICS), coordenadora pelo ICS do doutoramento em Population Sciences da Universidade de Lisboa e professora auxiliar convidada no ISCSP. A sua investigação centra-se sobretudo nas áreas da demografia da habitação e do envelhecimento da população. alda.azevedo@ics.ulisboa.pt

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