Pacote de Habitação: o helicopter money tem onde aterrar?

Por: Ricardo Moreira

A crise da habitação em Portugal ganhou uma visibilidade enorme nos últimos meses, muito embora não seja um problema novo. Com efeito, já em 2019, João Seixas avisava que a taxa de esforço na Área Metropolitana de Lisboa estava muito elevada: 28% na compra e 46% no arrendamento. Depois da pandemia a situação piorou muito. No último trimestre de 2022, o preço das casas na Zona Euro subiu 6,8%, mas em Portugal subiu o dobro, ficando acima dos 13%. As rendas têm subido a um ritmo médio de 9,7% ao ano desde 2017, sendo esta subida ainda mais acentuada nas cidades. A taxa de juro dos novos créditos à habitação quadruplicou no último ano e a Euribor está no seu valor máximo desde 2008.

A situação na habitação é tão grave que um conhecido humorista relatou histórias sem piada que lhe chegaram via redes sociais e o descontentamento social está a levar as pessoas a manifestarem-se por soluções.

A tempestade perfeita da crise da habitação

Portugal tem apenas 2% de habitação pública, o que compara mal com vários países europeus, como os Países Baixos, Áustria e França, onde o stock habitacional público supera os 30% entre os programas sociais (classes mais baixas) e os programas de arrendamento acessível (classes médias). Pelo contrário, o Estado social português fechou a porta às políticas de habitação. Com efeito, o mercado de arrendamento português encontrava-se estagnado até que, em 2012, Assunção Cristas – então Ministra da Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento do Território – prometeu revitalizá-lo com uma nova Lei das Rendas. A flexibilização do mercado de arrendamento, com contratos de muito curta duração, a subida das rendas antigas e os despejos mais fáceis ajudaram a liberalizar o mercado. Mas, se houve momentos em que o número de imóveis para arrendar aumentou, no último trimestre de 2022 desapareceram do mercado 40% das casas para arrendamento nas principais cidades.

A este quadro, somaram-se as políticas que visavam acelerar o mercado de habitação, como os Vistos Gold, o regime de benefícios fiscais para residentes não habituais, os estímulos aos nómadas digitais ou o alojamento local (AL) sem controlo (há uma freguesia de Lisboa com mais de 61% das casas em regime de AL). Recentemente, o Supremo Tribunal de Justiça veio dizer uma coisa aparentemente simples que, de alguma forma, pôs em causa a utilização do edificado habitacional para AL: uma casa é uma casa e não um negócio e tem uma função social. Nesta mesma linha, a nova Lei de Bases de Habitação de 2019 parecia trilhar um novo caminho, reconhecendo o direito a uma habitação condigna e adequada, tentando proteger os grupos mais vulneráveis, como idosos, pessoas com deficiência, famílias numerosas e famílias em situação de carência económica. Mas depois da sua entrada em vigor, tal como com a Nova Geração de Políticas de Habitação, não se viram avanços significativos nesse sentido.

A crise da habitação que estamos a viver não parece, por isso, ser um azar ou uma fatalidade, mas sim resultado de políticas que visaram a liberalização do mercado de habitação.

Propostas do governo: é o pacote que faltava?

Apesar de muito esperado, o pacote de medidas sobre habitação aprovado no Conselho de Ministros de 16 de fevereiro recebeu críticas de vários setores da sociedade. Na verdade, pareceu não agradar a ninguém, o que não ajuda a compreender a sua verdadeira utilidade prática. Olhemos então para cada proposta e depois para o que não foi proposto. O governo parece acreditar que o grande problema é o mercado, ou melhor, a falta de oferta de casas para habitação para o mercado. Foi, pelo menos, esse o primeiro objetivo que apresentou.

Para aumentar o número de casas propõe converter o uso de comércio ou serviços para habitação, medida que pode ser interessante por ser fácil e rápida, mas que pode criar problemas numa cidade que se quer densa, complexa e multifuncional. Há, depois, a disponibilização dos imóveis do Estado através de Contratos de Desenvolvimento para Habitação. Ou seja, para habitação a custos controlados, o que, decididamente, pode resultar numa opção importante para aumentar o parque público.

Outra proposta é a simplificação dos processos de licenciamento, substituindo os vistos prévios das entidades públicas por declarações de honra dos projetistas e obrigando a parte pública ao pagamento de juros de mora se se atrasarem nos pareceres. É uma via verde para a nova construção, aceitando a narrativa de falta de oferta. Por outro lado, a mais recente proposta de o Estado arrendar para subarrendar é uma repetição de uma medida da Câmara Municipal de Lisboa – o Programa Renda Segura – que devia ter disponibilizado 1.000 casas, mas não alcançou mais do que 183. Ainda na tentativa de aumentar a confiança dos senhorios, o Estado passa a garantir o pagamento das rendas aos senhorios se houver incumprimento dos inquilinos, usando a máquina administrativa para a cobrança das rendas. Depois há medidas para aumentar o arrendamento acessível, com isenção de mais-valias a quem venda ao Estado, financiamento de obras coercivas às autarquias e isenções fiscais.

Estranhamente, todas estas medidas são direcionadas ao mercado de arrendamento, quando apenas 23% das pessoas arrendam casa e 77% têm créditos à habitação. Infelizmente, para a maioria das pessoas, este pacote não tem nenhuma medida, exceto uma redução de 70€ acima do teste máximo de stress.

Finalmente, as medidas consideradas mais fortes – i.e., o fim dos vistos gold, a limitação de novas licenças do alojamento local e o arrendamento compulsivo das casas devolutas – foram criticadas por proprietários e empresários, por limitarem o seu direito à propriedade, não reconhecendo o papel social do edificado habitacional, nem o direito à habitação e à cidade.

Onde aterra o helicóptero de dinheiro?

Com este pacote de habitação, o governo abriu os cordões à bolsa: são 900 milhões de euros; parece ser um helicóptero de dinheiro em medidas fiscais ou de subsídios às rendas. Os Vistos Gold, na verdade, já tinham terminado nas cidades para cidadãos não nacionais, mas não para os fundos de investimento, ou seja, os Vistos Gold talvez se mantenham. Da mesma forma, mantém-se o regime do residente não habitual e os estímulos para nómadas digitais. São criados novos benefícios fiscais em sede de IRS ou mais-valias e são criados subsídios ao arrendamento. O travão ao aumento das rendas é muito limitado, deixando as novas rendas sem travão e não impondo um teto máximo.

A maioria destas medidas não segue a lógica de construção pública para aproximar o stock de arrendamento público (apoiado ou acessível) aos níveis europeus, deixando de fora ferramentas como uma quota de arrendamento acessível em nova construção privada, ou mais construção pública. Também ficam de fora políticas para a maioria das pessoas que comprou casa e que está em dificuldades para acompanhar as subidas da Euribor.

Em suma, é pouco claro se este pacote pode ter um impacto na crise da habitação, visto que a maioria das medidas são estímulos fiscais não estruturais. Parece ser um pacote muito dependente do ciclo político, quando todas as medidas podem ser removidas, sem deixarem as fundações de um stock público de habitação, que parece ser a chave do sucesso de outros países.

Figura 1. A tragédia do incêndio da R. do Terreirinho pôs a nu o problema da sobrelotação em Lisboa. Fonte: autor.

Ricardo Moreira estudou Engenharia Florestal (ISA) e mais tarde Economia (ISEG). Os seus interesses foram mudando do mundo natural para os temas do trabalho, desigualdade, pobreza, segurança social e Estado Providência. Agora tenta juntar os dois mundos.

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