Por : Sónia Alves
Em muitas cidades portuguesas e europeias a escassez de terrenos urbanos para construção, isto é, de terrenos total ou parcialmente urbanizados que, como tal, estão afetos em plano de ordenamento do território à edificação, tem sido identificada como o principal obstáculo à provisão de habitação acessível às famílias de rendimentos médios e baixos.
Porque a existência destes terrenos (em vias de ou devidamente infraestruturados) a preços económicos é fundamental para a concretização de opções estratégicas dos municípios, incluindo as de provisão de habitação abaixo dos valores de mercado, muitas cidades têm optado por desenvolver políticas ou iniciativas fundiárias. Exemplos foram, em Portugal, o apoio às cooperativas de habitação (que foram, no entanto, incapazes de proteger a habitação produzida com subsídio público da especulação em vendas posteriores); ou o apoio à construção de habitação para arrendamento sem fins lucrativos, como se observa na Dinamarca. Na Alemanha, os privados recebem financiamento a fundo perdido para apoiar a construção e facilitar o arrendamento de habitação a rendas acessíveis às famílias das classes média e baixa por um determinado número de anos. Quando termina esse período a habitação entra no mercado de habitação não regulado.
Na generalidade dos países desenvolvidos, os municípios não se limitam a uma política de planeamento e de licenciamento urbanístico passivo, que aguarda a iniciativa privada, mas procuram orientar e potenciar essa iniciativa. Desta forma, os municípios conseguem maximizar a utilização dos equipamentos e infraestruturas urbanas através das decisões ao nível do planeamento do território e de uma política fundiária que para além da regulação urbanística, pode ainda incluir a compra de terrenos, de forma a influenciar o volume, a localização e os valores da habitação. Por norma, à semelhança da promoção imobiliária, que opera em ciclos longos, desde a fase de idealização dos projetos à sua concretização, estes programas de iniciativa pública tendem a prolongar-se no tempo, sobretudo os que requerem o desenvolvimento de operações de loteamento e de licenciamento urbanístico para a construção ou reabilitação de habitação.
Em 2017 a Câmara Municipal de Lisboa (CML) lançou o Programa de Renda Acessível – Concessões (PRA) com o objetivo de aumentar a disponibilidade de solo urbano municipal destinado à construção de habitação de renda acessível. Segundo o seu próprio site, o programa visou a disponibilização de 867 000 m2 de terreno para a construção de 6 000 novas unidades habitacionais, em 89 edifícios. O programa baseou-se num modelo de concessão, em que os terrenos e edifícios envolvidos nas operações seriam transmitidos ao concessionário em direito de superfície pelo prazo da concessão. Recentemente foram lançados diversos concursos públicos para a seleção de parceiros privados com um possível interesse em construir e/ou reabilitar habitação de acordo com os projetos formulados pelo município que no caso deste programa é representado pela SRU Lisboa Ocidental.
Figura 1 – A cidade de Lisboa

Pelos motivos políticos que foram amplamente discutidos nos debates para as eleições autárquicas de Lisboa 2021, o Programa Renda Acessível (PRA) foi ramificado em dois subprogramas: o PRA Concessões, em que o município de Lisboa afeta património imobiliário (terrenos e edifícios) em regime de concessão e por concurso público para a promoção de arrendamento a renda acessível, retomando gestão dos imóveis no final da concessão; e o PRA Público, em que há uma promoção direta por parte do município para a construção ou reabilitação em terrenos municipais de 3.000 habitações com renda acessível. No caso do PRA Concessões os privados ficarão responsáveis por aprovar as operações urbanísticas, construir ou reabilitar, fazer a manutenção e gerir a relação com os arrendatários (incluindo a cobrança das rendas).
Por exemplo, o concurso de Benfica no âmbito do PRA concessões prevê a construção de 459 fogos a renda acessível e 229 fogos no mercado livre, distribuídos por sete edifícios, a que corresponderá a um investimento privado estimado de 106 milhões de euros. O concurso do Paço da Rainha prevê 55 fogos acessíveis e 30 a preços do mercado, seis edifícios e um investimento privado estimado de 10,5 milhões de euros.
No caso do PRA Público a execução das operações de construção ou de reabilitação ficarão a cargo da SRU Lisboa Ocidental, e a gestão da habitação de renda acessível a cargo da empresa Gebalis – Gestão do Arrendamento da Habitação Municipal de Lisboa.
É ainda importante explicar o significado do conceito de renda acessível, do ponto de vista do cálculo das rendas e de quem tem acesso a esta habitação. De uma forma introdutória pode afirmar-se que a renda acessível é uma renda que se situa abaixo da renda de mercado, por beneficiar de um subsídio público que permite reduzir os custos de construção ou reabilitação da habitação. Pode tratar-se de um subsídio publico ao nível de terreno municipal ou edifícios públicos, isenção ou redução de taxas, (como a taxa de IVA a 6% no caso das obras de reabilitação de imóveis) para compensar o menor retorno do investimento privado.
Em termos de cálculo, enquanto o valor da renda apoiada (comumente conhecida por ‘social’) se baseia nos rendimentos das famílias e a alocação é feita com base numa lista de classificação em função da carência habitacional e socioeconómica da família; no caso da renda acessível o valor da renda é tipicamente derivado dos valores de mercado. A legislação nacional define que o preço de renda mensal de um alojamento a disponibilizar no âmbito do Programa de Arrendamento Acessível deve ser inferior ao limite específico de preço de renda aplicável a uma habitação corresponde a 80 % do valor de referência do preço de renda dessa habitação. Em Lisboa, porque os valores das rendas de mercado estão muito inflacionados, muito acima do que as famílias de rendimentos médios podem pagar, a câmara municipal de Lisboa definiu valores de renda significativamente abaixo dos valores da mediana de mercado, mais ajustado aos rendimentos médios das famílias por tipologia de habitação (veja-se o Quadro 1).
Quadro 1 – Valores de referência para as rendas acessíveis por tipologia de fogo

A alocação das famílias nesta habitação de renda acessível é feita através de sorteio público. Contudo, é preciso notar que só são elegíveis a estes sorteios as famílias de rendimentos médios, uma vez que o programa define como condição de acesso uma taxa de esforço máxima de 30%. As famílias de rendimentos médios podem concorrer a esta habitação através do portal Habitar Lisboa. As famílias com rendimentos inferiores e maiores carências económicas têm de seguir o processo de candidatura a uma habitação apoiada (leia-se social) para a qual existem, de resto, uma longa lista de espera.
Portanto, e esta é uma ideia que gostaria de sublinhar neste texto, a política de planeamento e de habitação do município de Lisboa insiste na tendência, já observada no passado, de desenho e implementação de políticas que promovem a segregação das famílias em função dos seus rendimentos e do tipo de regime de habitação a que podem ter acesso. Os riscos de marginalização e estigmatização gerados por ciclos de construção no âmbito do Programa Especial de Realojamento (1993), poderão voltar a repetir-se em 2021 no âmbito dos principais programas da Nova Geração de Políticas de Habitação – do 1º Direito (de renda apoiada) e de arrendamento acessível.
Enquanto os partidos de esquerda criticam o modelo PRA, porque só uma percentagem da habitação que irá ser construída pelos privados nos terrenos municipais será disponibilizada em renda acessível (a percentagem varia entre operações) e por um tempo limitado; e os candidatos da direita defendem que a construção e gestão do parque habitacional deve ficar em mãos dos privados; eu critico o modelo PRA porque num total de 867 000 m2 de terreno municipal que foram destinados ao programa de renda acessível não se determinou a inclusão de fogos de renda apoiada. A opção por um modelo de produção de habitação e de cidade segregado, em vez de um modelo que promove inclusão socio-espacial, só pode ser razão de preocupação e de críticas.
Agradecimento: Este trabalho foi apoiado pela FCT no âmbito do projeto SustainLis (PTDC/GESURB/28853/2017). Mais informações sobre o projeto em SustainLis project
Sónia Alves é investigadora auxiliar no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Ao longo da última década participou em vários projetos de investigação na área da geografia social, sociologia urbana, políticas urbanas e planeamento urbano. Nos últimos anos tem investigado o modo como as políticas de planeamento urbano podem contribuir para alcançar os objetivos das políticas de habitação, nomeadamente os da promoção de habitação acessível às famílias de rendimentos médios e baixos e para contrariar tendências de segregação e desigualdade socio-espacial.
sonia.alves@ics.ulisboa.pt