Por: Pedro Figueiredo Neto
“—Aqueles pontos brancos são os pássaros que aquele senhor está a tentar ouvir, mas que nós não deixamos”.
“—Ele está a gravar! Está a ouvir os pássaros! (…) — As aves migratórias…?”.
“— Está aqui o senhor a ouvir os animais e nós a fazer barulho.”
Estas e outras frases povoam a paisagem sonora acima disponibilizada, captada na ilha das Flores entre a Caldeira Rasa e a Caldeira Funda, numa manhã cinzenta de Junho do corrente ano. Estes comentários revelam o eco da minha presença naquele lugar, que na ausência de explicação — “quem será este senhor? que estará ele a gravar ali, sozinho?” —, surgiram como hipóteses a um grupo de cerca de trinta turistas, entre os 50 e os 70 anos, que giravam pela ilha distribuídos em três mini-bus. Eu não estava necessariamente a tentar captar os ditos pássaros, os tais pontos brancos, cujo nome também desconheço. Tampouco sei se as aves a que se referiram, outras ainda que não as dos pontos brancos, eram de facto aves migratórias. Essa fauna estava demasiado longe da vista e também fora do alcance imediato do meu equipamento de gravação para que os pudesse isolar. Captar esta massa humana que acabou por interromper as conversas dos pássaros foi um acaso.
Na verdade, até à chegada do grupo de turistas, eu estava a tentar explorar a complexidade deste lugar através das suas paisagens sonoras. Desde 2009 que a ilha das Flores é integralmente considerada como Reserva da Biosfera da UNESCO, e o lugar onde me encontrava a captar som (39°24’30.8″N 31°13’18.9″W) integra a lista dos vários “monumentos naturais” da ilha. Através da ideia de paisagem sonora — que, como proposto por Murray Schafer, consiste em eventos ouvidos, e não objectos vistos —, surge a reflexão acerca do sentido, significado e mesmo a existência desta ecologia singular, localizada, nas suas várias dimensões (in)visíveis, inclusive as sociais.
Até à chegada do grupo de visitantes, vários eram os sons de pássaros, aves e outras coisas que se misturavam nesta paisagem que, apesar de verde, quase não apresenta árvores. Ouvindo com atenção, a respiração discreta do vento e a minha própria respiração, o som branco do mar a escassos quilómetros de distância, a vegetação oscilante por via dos elementos, uma ou outra gaivota, zumbidos de moscas e outros insectos, a borrasca no horizonte, uma carrinha carregada de vacas que corta este território sónico, entre tantos outros sons secretos, inaudíveis, indecifráveis, alguns pertencentes a outros mundos, constituem a composição musical macro-cósmica que se ouve nos primeiros 5-6 minutos.
Essa dá lugar a outra composição, certamente musical e macro-cósmica, certamente indissociável da ecologia acústica deste lugar, mas entretanto dominada por sons mecânicos, conversas —senão apenas frases— avulsas entre humanos, pelos clicks das suas câmaras fotográficas, e pelos passos, portas, e pacotes de plástico de bolachas de água e sal. Serão estes elementos representações estéticas de uma “ecologia sem natureza”? Terão eles e elas ido ali ouvir os pássaros que não deixaram ouvir? O que se ouve tem que ver com o que se acha que se deveria ouvir, bem como com o que pensa sobre a natureza desses sons, sejam eles vozes, pássaros e/ou aves migratórias, ou a própria “natureza” (Helmreich 2015: xx).
Sabemos que a Gabriela resistiu a sair do carro. Nunca saberemos porquê. Mas que só o fez após muita insistência dos colegas de passeio, para os quais a tal paisagem protegida valia muito a pena ser vista.

Pedro Figueiredo Neto é arquitecto, antropólogo e realizador, actualmente investigador pós-doc no ICS-ULisboa. A sua investigação explora fenómenos de deslocamento forçado por questões de conflitos, violência, desenvolvimento e alterações climáticas. Mais info: http://pedrofneto.com