Progresso moral e “o fim da história”

Por: João Graça

I fully subscribe to the judgment of those writers who maintain that of all the differences between man and the lower animals, the moral sense or conscience is by far the most important.”

Charles Darwin (1871), em The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex

No final do século passado, Francis Fukuyama, cientista político, declarou “O Fim da História e o Último Homem”. Em síntese, o autor defendia que a disseminação mundial das democracias liberais e a abertura global dos países ao mercado livre capitalista assinalavam o final dos processos de evolução sociocultural do ser humano. De acordo com esta ideia, a humanidade estaria em vias de atingir o apogeu da organização social e económica, a que correspondia o neoliberalismo. Embora os acontecimentos globais do início do séc. XXI possam colocar em causa esta perspetiva (entretanto já revista pelo próprio autor), propomos transportar para este texto a noção de “estádio último da evolução sociocultural”, e aplicá-la à ideia de progresso moral.

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“Aqueles pontos brancos são pássaros”

Por: Pedro Figueiredo Neto

“—Aqueles pontos brancos são os pássaros que aquele senhor está a tentar ouvir, mas que nós não deixamos”.
“—Ele está a gravar! Está a ouvir os pássaros! (…) — As aves migratórias…?”.
“— Está aqui o senhor a ouvir os animais e nós a fazer barulho.”

Estas e outras frases povoam a paisagem sonora acima disponibilizada, captada na ilha das Flores entre a Caldeira Rasa e a Caldeira Funda, numa manhã cinzenta de Junho do corrente ano. Estes comentários revelam o eco da minha presença naquele lugar, que na ausência de explicação — “quem será este senhor? que estará ele a gravar ali, sozinho?” —, surgiram como hipóteses a um grupo de cerca de trinta turistas, entre os 50 e os 70 anos, que giravam pela ilha distribuídos em três mini-bus. Eu não estava necessariamente a tentar captar os ditos pássaros, os tais pontos brancos, cujo nome também desconheço. Tampouco sei se as aves a que se referiram, outras ainda que não as dos pontos brancos, eram de facto aves migratórias. Essa fauna estava demasiado longe da vista e também fora do alcance imediato do meu equipamento de gravação para que os pudesse isolar. Captar esta massa humana que acabou por interromper as conversas dos pássaros foi um acaso.

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Solo municipal e o Programa de Renda Acessível de Lisboa

Por : Sónia Alves

Em muitas cidades portuguesas e europeias a escassez de terrenos urbanos para construção, isto é, de terrenos total ou parcialmente urbanizados que, como tal, estão afetos em plano de ordenamento do território à edificação, tem sido identificada como o principal obstáculo à provisão de habitação acessível às famílias de rendimentos médios e baixos.

Porque a existência destes terrenos (em vias de ou devidamente infraestruturados) a preços económicos é fundamental para a concretização de opções estratégicas dos municípios, incluindo as de provisão de habitação abaixo dos valores de mercado, muitas cidades têm optado por desenvolver políticas ou iniciativas fundiárias. Exemplos foram, em Portugal, o apoio às cooperativas de habitação (que foram, no entanto, incapazes de proteger a habitação produzida com subsídio público da especulação em vendas posteriores); ou o apoio à construção de habitação para arrendamento sem fins lucrativos, como se observa na Dinamarca. Na Alemanha, os privados recebem financiamento a fundo perdido para apoiar a construção e facilitar o arrendamento de habitação a rendas acessíveis às famílias das classes média e baixa por um determinado número de anos. Quando termina esse período a habitação entra no mercado de habitação não regulado.

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A miragem da Agenda 2030? Um enfoque a partir do ‘Africa SDG Index’

Por: João Guerra

A COVID 19 teve impactos imediatos que desembocaram numa crise humanitária e económica, mas também impactos de médio e longo prazo ainda difíceis de contabilizar. Do ponto de vista da Agenda 2030, estes impactos travam a prossecução dos dezassete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) em todo o mundo e, em particular, em contextos geográficos onde, já antes da crise pandémica, nos deparávamos com situações socioambientais particularmente pungentes. Neste panorama, a proposta, ainda em discussão, de um plano de “transição e investimento verde” entre parceiros africanos e europeus, foi apresentada pela Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, em parceria com o Banco Europeu de Investimento. A gravidade da situação, no entanto, é reconhecidamente complexa e, de longe, ultrapassa questões de cariz meramente económico. Daí que os resultados do relatório de 2020 do Africa SDG Index and Dashboards apontem para a urgência de uma rápida intervenção da comunidade global que, com recursos e abordagens transversais bottom-up, salvaguarde as hipóteses de sucesso da Agenda 2030 nos países africanos.

Como consequência da pandemia estima-se que, em África, cerca de sessenta milhões de pessoas venham a ser empurradas para a pobreza (ODS 1), a insegurança alimentar quase duplique (ODS 2), cerca de cento e dez milhões de crianças e jovens vejam reduzido o acesso a uma educação de qualidade (ODS 4), os sistemas de saúde colapsem e se mostrem incapazes de acudir às necessidades das populações (ODS 3), deixando de fora os mais desfavorecidos e, em particular, as mulheres (ODS 5). Poderíamos continuar a elencar a agudização de situações que, grosso modo, correspondem a ameaças a cada um dos ODS, mas talvez possamos resumir as restantes aos efeitos nas economias locais/nacionais e às suas consequências no emprego, na receita interna, nas dívidas soberanas, na redução das remessas, na assistência ao desenvolvimento e – por último, mas não em último – ao adiamento de medidas de proteção ambiental, que ameaça hipotecar ainda mais o futuro de comunidades e nações.

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Covid 19: Is sustainability gaining importance despite increasing poverty?

By: Alexandra Bussler

Worldwide, the COVID pandemic has unleashed a new poverty wave affecting millions of people. In Portugal alone, in 2020 more than 900 000 job losses were recorded and 37% more people are searching for employment than in 2019. People with jobs that otherwise secured a reasonable living standard are now unable to make ends meet. The reliance on food aid raised by 15% and food banks are overflown by people. Many that had never imagined to have to resort to food aid are reluctant to admit this new situation of poverty, suggesting that the actual poverty crisis is even more dramatic than what these numbers show.

However, there seems to be a positive development that can be observed during the Covid pandemic. The uncertainty about the future and the loss of control that many are experiencing in these times of crisis can create conditions for change and transformation. In fact, sustainability concerns and community-based initiatives are gaining importance and attention in midst of this hardship. In Portugal, the demand for food baskets and local food providers has been increasing steadily since the onset of the pandemic. These times of uncertainty are also windows of opportunity for new pathways. Therefore, we have to take this situation seriously in order to bring the sustainability transition forward, and to make our food systems healthier, more just, more resilient and more sustainable.

This trend has also been observed in an online survey made to the consumers of the Fruta Feia food cooperative in Lisbon in October 2020. Fruta Feia is a 2013-born initiative aiming to reduce the food waste problem in Portuguese cities in collaboration with about 250 local smallholder farmers, many of them organic farming producers. Today, Fruta Feia brings ‘ugly’ fruits and veggies at social prices to the tables of 6.600 families and already saved 2.760 tons of food from the bins while creating sustainable jobs in their 12 delegations all over Portugal. The establishment of these alternative and sustainable markets even yielded them the 2020 European LIFE prize for the Environment.

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A TRANSIÇÃO ALIMENTAR NA ÁREA METROPOLITANA DE LISBOA

Por: Rosário Oliveira e Mónica Truninger
ICS Food Hub

No contexto das mudanças globais e da recuperação pós-pandemia, o suprimento alimentar das cidades com produtos frescos e seguros é um dos tópicos fundamentais a ser levado em consideração em todo o mundo. Através do planeamento alimentar é possível responder a diversos objetivos europeus como os do Pacto Ecológico Europeu, da Estratégia do Prado ao Prato e da Estratégia Biodiversidade 2030, ou nacionais como os da Agenda de Inovação Territorial 2030.

Os Parques Agroalimentares constituem-se como oportunidades de operacionalização de estratégias alimentares de base territorial, numa estreita relação com o ordenamento do território regional e local, com impacto positivo na criação de dinâmicas urbano-rurais de proximidade, podendo integrar diferentes componentes do sistema alimentar e fornecer serviços multifuncionais de forma inovadora.

O ICS-ULisboa, através do Gi Ambiente, Território e Sociedade e do ICS Food Hub, apresenta um ciclo de três webinars dedicado à Transição Alimentar com o objetivo de juntar pessoas, refinar conceitos, partilhar experiências e promover o debate sobre a relevância de uma Rede de Agroparques na Área Metropolitana de Lisboa (AML) que cumpra metas ecológicas, económicas, inclusivas, de saúde e de bem-estar para a população metropolitana.

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Mulheres camponesas no Sul do Brasil: transições agroecológicas mudando vidas

Por: Siomara Marques

Os movimentos de mulheres rurais no Brasil tiveram origem nos anos 1980, período de “reabertura” à democracia, e momento pelo qual o país passava por intensa mobilização social e retorno dos movimentos civis, entre eles o feminista, o sindical e mais tarde o ecológico. Organizadas em movimentos específicos como no Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) ou nos movimentos mistos como Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), as mulheres trabalhadoras rurais no Sul do Brasil, influenciadas pelo feminismo, mas também pelo movimento sindical, iniciam sua trajetória reivindicando reconhecimento profissional como trabalhadoras rurais e não mais como “do lar”, bem como o direito à previdência social (aposentadoria). A partir daí, através da sua mobilização, as mulheres rurais brasileiras foram obtendo outros direitos, como a titularidade conjunta da terra ou a licença de maternidade. Na atualidade, somam-se às lutas feministas as lutas de enfrentamento ao racismo e à violência contra a mulher. Na agricultura, elas estão incorporando a prática agroecológica de produção de alimentos e de preservação do meio ambiente.

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O Papel da Sociologia no Nosso Futuro Comum

Por: Susana Fonseca

Existimos num planeta como não há outro (que seja do nosso conhecimento), que nos proporciona condições extraordinárias para sermos quem somos e podermos explorar todo o nosso potencial. Contudo, a relação que estabelecemos com a base que permite a nossa existência é tudo menos a que deveria ser. Usamos e abusamos da generosidade inerente ao planeta em que vivemos, sem respeitarmos os limites que nos surgem de forma cada vez mais evidente. Arrogantemente avançamos numa lógica de conquista e exploração, perseguindo objetivos de acumulação numa visão muito estreita de crescimento económico, pouco inclusivo e tendente à acumulação em determinadas franjas da sociedade.

Não haverá sociedades, nem economia, se não existirem os recursos naturais e os serviços ambientais generosamente fornecidos pelo único planeta conhecido em todo o universo como tendo condições para albergar vida. Nenhum de nós pode existir se não houver ar para respirar, água para beber, solo para cultivar os alimentos, entre muitos outros “recursos” de que dependemos totalmente. É importante não esquecer que o Planeta Terra vive bem sem a espécie humana, mas já o contrário…

É tempo de questionar a necessidade, a pertinência, a sustentabilidade das nossas opções e não apenas se elas são mais eficientes. Estamos perante uma mudança civilizacional, uma nova era. Mas como é que podemos dar passos firmes rumo a essa nova era, como podemos impulsionar a mudança necessária e construir uma sociedade do bem-estar, dentro dos limites do planeta?

Recentemente fui desafiada a pensar sobre a forma com a Sociologia e a Ecologia se interligam e podem ser aliadas na construção do caminho identificado no parágrafo anterior. Muito embora há muitos anos me divida entre a Sociologia e o ambientalismo, sempre procurei diferenciar estas duas áreas, distanciando-as na procura de evitar “contaminações”, em particular da última para a primeira.

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From Fixing to Healing: A Traditional Medicine approach to Climate Change

By: Fronika de Witt

“A daunting task lies ahead for scientists and engineers to guide society towards environmentally sustainable management during the era of the Anthropocene. This will require appropriate human behaviour at all scales, and may well involve internationally accepted, large-scale geo-engineering projects, for instance to “optimize ” climate.”

Paul Crutzen, “Geology of Mankind”, 2002

“Being an Onanya is not only about healing: it is about treating well our territory, love for our family, for the forest, plants and biodiversity.”

First Shipibo Konibo, Xetebo’ Traditional Medicine Convention, 2018

The citations above highlight tensions in dealing with current planetary challenges, such as climate change, deforestation, and biodiversity loss. The first epigraph comes from a highly cited article in the scientific journal Nature by the Dutch scientist Paul Crutzen, who coined the term ‘the Anthropocene’: our current geological epoch with significant human impact on the environment.

The second epigraph are words from a Shipibo shaman, an indigenous people that lives alongside the Ucayali river in the Peruvian Amazon. In 2018, I spent three months in the Peruvian department of Ucayali to conduct fieldwork for my doctoral research on Amazon climate governance and indigenous knowledge. In general, my fieldwork was a very enriching experience, but the “cherry on the pie”, in terms of indigenous perspectives on climate change, was an invitation for the first “‘Shipibo Konibo, Xetebo’ Traditional Medicine Convention”, where I heard the above words.

In this post, I depict some of the Convention’s main insights. However, first I elaborate more on the tension between the two epigraphs, or, as the Colombian-American anthropologist Arturo Escobar puts it: the tension between modernist and ontological politics.

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Covid-19: uma tempestade perfeita, incluindo para os processos participativos

Por: Roberto Falanga

A pandemia da covid-19 pode ser definida como uma “tempestade perfeita” que, juntamente com a crise sanitária global, alterou velhos hábitos e trouxe novos (des)equilíbrios sociais, económicos, políticos e emocionais.

Apesar de várias entidades e redes internacionais terem lançado sinais de alarme sobre os riscos iminentes de epidemias e pandemias, esta tempestade perfeita encontrou-nos impreparados e mostrou a profunda vulnerabilidade do sistema em que vivemos.

Se o distanciamento social e o uso de máscaras e álcool gel se tornaram a nossa salvaguarda no dia-a-dia, a médio e longo prazo teremos de enfrentar desafios que precisam de mais empenho político e da colaboração do tecido económico e social. Em particular, as crises alastradas pelo escasso empenho no combate às alterações climáticas representam uma ameaça incontornável para o debate público sobre o nosso futuro neste planeta.

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