A miragem da Agenda 2030? Um enfoque a partir do ‘Africa SDG Index’

Por: João Guerra

A COVID 19 teve impactos imediatos que desembocaram numa crise humanitária e económica, mas também impactos de médio e longo prazo ainda difíceis de contabilizar. Do ponto de vista da Agenda 2030, estes impactos travam a prossecução dos dezassete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) em todo o mundo e, em particular, em contextos geográficos onde, já antes da crise pandémica, nos deparávamos com situações socioambientais particularmente pungentes. Neste panorama, a proposta, ainda em discussão, de um plano de “transição e investimento verde” entre parceiros africanos e europeus, foi apresentada pela Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, em parceria com o Banco Europeu de Investimento. A gravidade da situação, no entanto, é reconhecidamente complexa e, de longe, ultrapassa questões de cariz meramente económico. Daí que os resultados do relatório de 2020 do Africa SDG Index and Dashboards apontem para a urgência de uma rápida intervenção da comunidade global que, com recursos e abordagens transversais bottom-up, salvaguarde as hipóteses de sucesso da Agenda 2030 nos países africanos.

Como consequência da pandemia estima-se que, em África, cerca de sessenta milhões de pessoas venham a ser empurradas para a pobreza (ODS 1), a insegurança alimentar quase duplique (ODS 2), cerca de cento e dez milhões de crianças e jovens vejam reduzido o acesso a uma educação de qualidade (ODS 4), os sistemas de saúde colapsem e se mostrem incapazes de acudir às necessidades das populações (ODS 3), deixando de fora os mais desfavorecidos e, em particular, as mulheres (ODS 5). Poderíamos continuar a elencar a agudização de situações que, grosso modo, correspondem a ameaças a cada um dos ODS, mas talvez possamos resumir as restantes aos efeitos nas economias locais/nacionais e às suas consequências no emprego, na receita interna, nas dívidas soberanas, na redução das remessas, na assistência ao desenvolvimento e – por último, mas não em último – ao adiamento de medidas de proteção ambiental, que ameaça hipotecar ainda mais o futuro de comunidades e nações.

É certo que, de acordo com um inquérito a especialistas aplicado no âmbito do mesmo relatório, nem todos os impactos previstos serão absolutamente negativos (Quadro 1), mas a apreensão predomina sem lugar a hesitações, registando-se uma distribuição de respostas que aponta para efeitos negativos (40%) ou, quando muito, para situações ambíguas que admitem algumas consequências menos gravosas (39%).

Fonte: Elaboração própria a partir de Africa SDG Index and Dashboards

Resta saber que condições subsistem para garantir o leitmotiv da Agenda 2030: não deixar ninguém para trás. Como o próprio Secretário-Geral das Nações Unidas já sublinhou, a COVID 19 agravou as desigualdades preexistentes e, por exemplo, o acesso a vacinas confirma-o: em fevereiro de 2021, dez países tinham administrado 75% das vacinas e 130 ainda não tinham tido acesso a uma única dose. Os efeitos mais negativos da pandemia seguem o mesmo padrão de desigualdade, afetando antes de mais países e regiões onde os sistemas de saúde são mais débeis e a capacidade de resposta à correlata crise socioeconómica é diminuta. Estaremos, afinal, perante mais um falhanço que justifica críticas antigas à ideia de Desenvolvimento Sustentável?

De facto, deste cedo que académicos como Herman Daly e, posteriormente, Michael Redclift nos alertaram para o perigo de não distinguir devidamente os conceitos de desenvolvimento e de crescimento. Todavia, o seu uso indistinto permanece, transformando o conceito de desenvolvimento sustentável num oxímoro sem utilidade prática que nem mesmo o apelo do Papa na encíclica “Laudato Si” reverteu significativamente, sequer entre os seus fiéis. Neste panorama, o ODS 8 – Trabalho decente e crescimento económico, mesmo se contextualizado e defendido na ótica daqueles que ainda não terão ‘crescido’ o suficiente, não deixa de fazer disparar algumas campainhas de alarme. A pandemia e suas decorrências podem, assim, revelar-se num duro golpe, reforçando a analogia sugerida há alguns anos por Serge Latouche: o desenvolvimento sustentável  é um melro branco que nunca ninguém viu.

Ainda de acordo com o relatório do Africa SDG Index, em 2020, nenhum país alcançou um patamar aceitável em, pelo menos, 13 dos 17 ODS. A esta situação transversal, acresce o ainda insuficiente esforço de comunicação e partilha de informação que não permite ultrapassar as dificuldades de envolvimento das sociedades civis. Ora porque há muito se constatou que o mundo é profundamente desigual, mas pleno de problemas difusos e propagáveis, a proposta da Agenda 2030 procurou pensá-lo como a “casa comum da humanidade”, reforçando o lema “pensar global, agir local” e encetando uma abordagem transversal que procura a almejada transição para além do investimento/crescimento defendido a partir da Europa.

Tratar-se-á de mera utopia? Talvez, sobretudo, se tivermos em conta o que aqui se disse sobre a vacina e a sua disponibilização nos vários contextos geográficos, mas importaria não deixar cair o propósito sem resistência. Sem ignorar as críticas que globalmente se justificam, como reforçar a Agenda 2030 com propostas para manter o rumo? A Agenda 2030 não é vinculativa e, por isso, não representa o perigo de autoritarismo que muitos dos seus detratores lhe atribuem, desresponsabilizando, talvez inadvertidamente, a ação de outros intervenientes no panorama da governança internacional. Ainda assim, os ODS podem revelar-se úteis, fornecendo parâmetros universais de monitorização e avaliação de desempenhos e reforçando valores, como direitos humanos, justiça social, solidariedade inter e intrageracional, assim como a defesa dos equilíbrios ecossistémicos.

“Refugees” by climatalk (2005). Licensed with CC BY-NC 2.0

Em suma, qualquer cidadão do mundo, interessado na promoção da qualidade de vida para todos, na justiça socioambiental e na salvaguarda dos valores ecológicos, mesmo se crítico dos caminhos do desenvolvimento e das suas recorrentes insustentabilidades, deveria ter em consideração os contributos da Agenda 2030 para reforçar o foco nos problemas locais que se repercutem de forma global. A crise dos refugiados é disso o “pior” dos exemplos e, mais uma vez, parece testemunhar não só o insucesso de políticas anteriores, mas também a necessidade de prosseguir com novas medidas em áreas intrinsecamente ligadas da economia, da sociedade e da ecologia. Neste sentido, podemos e devemos apontar defeitos e debilidades à Agenda 2030, sem desaproveitar o seu impulso para enfrentar dificuldades e constrangimentos, com os ODS como guias de ação, rumo a um futuro mais sustentável. Isto é, mais justo e equilibrado.


João Guerra é sociólogo, investigador auxiliar no ICS-ULisboa e cocoordenador do Seminário de Ciências da Sustentabilidade e Alterações Climáticas no Programa Doutoral de Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável. Desde 2019, integra a equipa de coordenação da Secção Ambiente e Sociedade da Associação Portuguesa de Sociologia.

joao.guerra@ics.ulisboa.pt

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