Uma análise crítica da inovação na Agricultura 4.0

Por: Lanka Horstink

A inovação tecnológica tem ganho preponderância enquanto solução principal para os problemas da sustentabilidade da agricultura. O conceito “Agricultura 4.0” reúne abordagens como a agricultura de precisão, agricultura inteligente, agricultura digital, agricultura vertical, e bioeconomia sustentadas em tecnologias recentes como a robótica, inteligência artificial, blockchain, internet das coisas, edição genética, proteínas sintéticas e nanotecnologia.

A Agricultura 4.0, enquanto expoente de uma 4ª revolução industrial, pretende uma “fusão de tecnologias que esbate as linhas entre as esferas física, digital e biológica.” São exemplos desta fusão, a biologia sintética que faz crescer carne a partir das células estaminais extraídas dos fetos de vacas e os organismos geneticamente modificados pela tecnologia CRISPR/Cas, que promete rapidez, facilidade e custos reduzidos na eliminação/alteração de genes indesejados. Estas tecnologias só foram possíveis graças aos avanços na computação que permitem, por exemplo, descodificar e digitalizar genomas inteiros numa questão de dias.

Foto de James Baltz no site Unsplash

O conceito por detrás da inovação Agricultura 4.0 é, em si próprio, pouco inovador. Desde que se consagrou no direito internacional a premissa da sustentabilidade, a agro-indústria tem mantido que “precisamos” de extrair mais com menos para “alimentar o mundo” de forma sustentável. Esta visão radica nas questões do crescimento populacional e nos impactos das alterações climáticas, e tem merecido o apoio de organizações supranacionais como o Banco Mundial e a FAO.

A narrativa da inovação que postula soluções propostas pelas próprias empresas do sector tem tido pouca atenção crítica, merecendo ser desmontada a partir de uma análise da economia política. A economia política, perante os graves problemas que a produção alimentar enfrenta, questiona onde reside o controlo destes sistemas, bem como das tecnologias propostas, quem beneficia com a manutenção do status quo, quem perde, quais os riscos e quais os obstáculos à mudança.

Vejamos então a economia política das inovações propostas pela Agricultura 4.0. Elas são quase todas de propriedade exclusiva ou em vias de o ser, visam a comercialização em grande escala, e são alinhadas com o regime agroalimentar dominante, baseado em industrialização, extractivismo e comodificação. São disruptivas a nível do potencial lucro maior que podem proporcionar, da fusão de disciplinas e da incerteza dos seus riscos, mas não são disruptivas do modelo industrializado instalado.

Adicionalmente, grande parte das tecnologias propostas reforçam a tendência do modelo actual ao procurar economias de escala, concentração dos mercados e a sua verticalização. Os dois exemplos seguintes ajudam a demonstrar esta afirmação.

Tractores com sensores que recolhem dados sobre as condições do solo e culturas: o software usado é de propriedade exclusiva, bem como o são os dados recolhidos. O/a agricultor/a terá de pagar pontualmente para aceder aos seus dados enquanto a empresa que vende o tractor inteligente se reserva o direito de os usar como bem entender. É o modelo de negócio ‘Google’ aplicado à agricultura.

Plantas e animais modificados com a tecnologia molecular CRISPR/Cas: não só a tecnologia como os organismos resultantes são patenteados, com um alcance que retira variedades inteiras do espólio público, e se estende a todos os produtos resultantes ao longo da cadeia alimentar. Adicionalmente, apesar das promessas da indústria para encontrar soluções para os efeitos das alterações climáticas e da fome, os produtos da edição genética respondem sobretudo às necessidades da própria agro-indústria: soja com teor oleico mais alto, soja e outras culturas de valor resistentes a herbicidas e plantas que não oxidem. Na realidade, os problemas fundamentais da primeira geração de OGM não são abordados – o desenvolvimento de resistência a pestes e o aumento exponencial do uso de pesticidas – enquanto surgem evidências alarmantes de que acarretam efeitos imprevisíveis e nocivos.

O discurso da inovação foi cuidadosamente construído para fazer crer que podemos solucionar a insustentabilidade dos sistemas actuais garantindo prosperidade económica e crescimento. Esta versão optimista do futuro agro-alimentar deixa de parte os problemas estruturais do actual modelo. Entre os mais gritantes, o facto da agricultura moderna ser um dos maiores contribuidores para o aquecimento global, o maior gastador de água e a principal responsável pela erosão dos solos e pela perda de agro-biodiversidade.

Em vez de abordar a regeneração dos solos, água, florestas, variedades de plantas e mercados locais, a missão principal da Agricultura 4.0 é aumentar a produtividade agrícola e o crescimento, preservando os modos actuais de produção, comercialização e consumo de alimentos. Esta missão está habilmente embrulhada num discurso de desenvolvimento sustentável com foco nas questões que preocupam os governos, tal como a segurança alimentar. Ficam assim de fora da análise questões como o acesso à terra e à comida, a definição do preço, o acesso ao crédito e o (des)equilíbrio de poderes nas cadeias agro-alimentares.

Na realidade, a agro-indústria está num caminho que protela soluções propostas para problemas que ela própria criou, sem nunca ir verdadeiramente ao cerne da questão. O sucesso do modelo agro-alimentar dominante assenta no uso da monocultura, num número reduzido de culturas de elevado valor acrescentado, em cadeias alimentares globais e na promoção de insumos externos às terras agrícolas. Práticas que causam grandes problemas ambientais e sociais, mas cujo custo a agro-indústria, e aparentemente as instituições, não estão dispostas a assumir.

Ir ao cerne da questão é o que propõe a Agroecologia, uma ciência e prática que se constrói a partir das técnicas de agricultura sustentável de agricultores/as tradicionais, desenvolvendo vínculos com movimentos sociais pela soberania alimentar. Afirmando que os sistemas de inovação não são neutros, a Agroecologia sustenta a reconexão com os agro-ecossistemas, enfatizando os benefícios a longo prazo.

‘Peneirar sementes’ Foto de Pepa Bernardes

Ao analisar uma proposta de tecnologia, a Agricultura 4.0 pergunta apenas ‘Para que serve?’ enquanto a Agroecologia questiona ‘Quem serve?’, ‘Quem não serve?’, ‘Que consequências pode ter?’, ‘Que alternativas existem?’.

As indústrias da bioeconomia (biotecnologia, agro-químicos e farmacêutica) propuseram com sucesso um ‘princípio da inovação’ à Comissão Europeia, que se arrisca a entrar em conflito com o princípio da precaução, ao qual estas indústrias são avessas. A forte promoção da inovação monopoliza os investimentos em Investigação & Desenvolvimento, em detrimento da acessibilidade e fácil replicação da tecnologia, praticando uma “retro-inovação”, a fusão de conhecimentos tradicionais com novas ideias.

Embora a Agroecologia esteja cada vez mais presente no discurso das instituições locais e transnacionais, ela já viu o seu propósito diluído, tendo-se inclusive sugerido que seria compatível com o uso de biotecnologia. Se não estivermos atentos/as como investigadores/as e como cidadãos/ãs, vamos ver a agroecologia absorvida pelo regime agro-alimentar actual, o que não augura nada de bom para o futuro.

Por opção da autora, este texto não foi escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.


Lanka Horstink é socióloga afiliada ao ICS-ULisboa. Trabalha nas áreas da economia política e ecologia política dos sistemas agro-alimentares, com ênfase na qualidade ecológico-democrática. Entre os seus projectos actuais estão o desenvolvimento de um curso em agroecologia para agricultores e um Diagnóstico Rural Participativo na região de Odemira.

lanka.horstink@ics.ulisboa.pt

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