Por: João Felipe P. Brito
Há doze anos, no Rio de Janeiro, enquanto eu iniciava uma investigação sobre a criação de um novo bairro nos arredores do maior complexo penitenciário da América Latina, não imaginava que a vontade de compreender os porquês daquele processo me traria, um dia, a Lisboa. Aquela inquietação intelectual diante das desigualdades das cidades brasileiras e da mudança social em ambiente urbano resultou em uma dissertação de mestrado sobre estratégias políticas e econômicas que buscavam ressignificar e revalorizar um tradicional e decadente bairro industrial carioca, Bangu, lugar onde nasci e onde primeiro vi o mundo.
Naquela altura, a obra “Sociedade de Bairro”, de António Firmino da Costa (ISCTE-IUL), e a Alfama ali descrita muito me ajudaram na formulação de hipóteses e no aperfeiçoamento da análise. Trouxe dali a ideia um tanto bourdieusiana de uma articulação entre “investimentos materiais” e “investimentos simbólicos” na (re)construção dos lugares urbanos. O interacionismo de Goffman, especialmente na obra “Estigma”, aliado a inúmeros textos de uma geografia humana influenciada por Milton Santos foram, também, fundamentais para meu despertar teórico-metodológico no estudo das cidades e das pessoas, das instituições e das relações que as fazem.
Em 2015, no terceiro ano dos estudos doutorais, vim a Lisboa para um intercâmbio científico de seis meses com o professor António Firmino da Costa, no ISCTE. O bairro Madureira, uma centralidade comercial, de transportes e de culturas afro-cariocas era, então, o meu objeto e campo etnográfico. O conflituoso processo de renovação urbana que atravessava Madureira naquele Rio de Janeiro dos megaeventos internacionais era o meu maior interesse. Refinei o uso de alguns autores e conceitos que trazia do mestrado e, combinando-os com alguns outros, prossegui com o método de olhar para um bairro no intuito de entender a cidade e, por que não, a contemporaneidade.
Para esta tese de doutoramento, significativas contribuições vieram dos estudos sobre “empreendedorismo urbano” e suas estratégias culturais (David Harvey, Carlos Vainer, Otília Arantes), no Brasil e no mundo. Também foi norteadora a ideia de “essencialismo estratégico”, que me chegou através de Gayatri Spivak e Stuart Hall. Ressalto ainda os insistentes debates sobre “desterritorialização”, sobre a construção de “âncoras” (parques, museus, estádios etc.) para valorização do solo urbano e, ainda, sobre as relações possíveis entre Estado, causas e efeitos da violência urbana, temática indispensável para qualquer investigação centrada no Rio.
Após alguns anos de trabalho numa ONG, cujo trabalho maior era a valorização das vidas e a expansão de direitos de pessoas de favelas e periferias, e, em seguida, com a experiência de dois anos como professor de sociologia numa universidade do interior brasileiro, recuperei o interesse pela investigação científica em ambiente acadêmico. Para esta retomada, Lisboa seria a minha casa. As atuais transformações urbanísticas e simbólicas de Beato e Marvila (Hub Criativo do Beato, Parque Ribeirinho do Oriente, novos negócios da economia criativa e vultuosos empreendimentos imobiliários) trouxeram-me novas hipóteses sobre o mover das cidades. Novamente, trabalho com a escala do bairro em primeiro lugar para, a partir daí, buscar algumas respostas sobre civitas e urbs, sobre vizinhança e o mundo.

O meu atual projeto In²Lisbon – Innovative and Inclusive Lisbon foi construído a partir das seguintes questões: a) “Quais são as motivações, as estratégias e os efeitos das políticas públicas para o impulsionamento de inovação e tecnologia em lugares urbanos?”; b) “Quais são as relações possíveis entre estas políticas e a inclusão social de grupos subalternizados?”. De maneira simplificada, o projeto se estrutura em três eixos de análise:
- Representações. Percebo um constante uso pelos agentes públicos portugueses de dispositivos e gramáticas de representação (discursos, grandes eventos, memórias e esquecimentos, exposições artísticas, festividades, patrimônios etc.) que visam à ressignificação do imaginário sobre a identidade e as potencialidades da sociedade portuguesa. Tal fenômeno é enfatizado em relação à cidade capital e, de maneira mais explícita, à zona de Beato e Marvila, de recente esvaziamento pós-industrial e, agora, anunciada como “criativa e empreendedora”, futuro “hub de inovação” para essa Lisboa propensa à economia digital e às chamadas “indústrias 4.0”.
- Inovação – Na atual competição interurbana global por atração de investimentos e de agentes econômicos (investidores, trabalhadores altamente qualificados, turistas), Lisboa esforça-se na construção de um “ecossistema empreendedor, inovador e tecnológico”, estruturado em incubadoras de startups, scaleups, espaços de coworking, fundos de investimento, eventos (como a WebSummit), equipamentos (como o MAAT e o HCB) e indivíduos propensos a esse conjunto de coisas: nômades digitais, criativos, techies ou city users (João Seixas). Há uma clara preocupação dos gestores públicos em segurar no país “a geração mais bem formada da história” a partir de empregos mais bem remunerados e estimulantes, além de atrair jovens globais com recursos para impulsionar essa nova economia.
- Urbanidades – Todo este contexto cria significativos impactos nos lugares urbanos. O enfoque sobre Beato e Marvila não exclui, contudo, a possibilidade de fenômenos similares ocorrerem noutros cantos da cidade e do país. Meu interesse sobre esse trecho da frente ribeirinha oriental é justificado pelas importantes intervenções que ali estão a ocorrer e sobre as expectativas que elas vêm gerando na população local e nos outsiders que lá pretendem investir ou morar. Mudanças para quem e como? Valorização da vida citadina de forma inclusiva também para mulheres, minorias étnicas, pobres urbanos e idosos ou não?


Partindo de insights e dados do ROCK Project, que há pouco encerrou seus trabalhos investigativos em Beato e Marvila, e de outros tantos investigadores dos estudos urbanos, Lisboa Inovadora e Inclusiva acaba de cumprir o seu primeiro quarto de execução. Muitas descobertas, reflexões e debates serão ainda necessários para que estas primeiras impressões aqui descritas tenham robustez ou sejam modificadas. Convido toda a comunidade do SHIFT, e aquelas e aqueles que aqui me leem e que possuem alguma curiosidade ou ímpeto científico sobre essas temáticas e problemas, para trocas profícuas que, nos próximos meses, nos permitam melhores elaborações sobre a vida humana que se apropria do urbano e que, nele, ergue seus anseios e significados.
Biografia: João Felipe P. Brito é carioca, sociólogo e otimista. Fez graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ-PPGSA), mestrado em Sociologia e Antropologia e doutorado em Sociologia pela mesma instituição. Acredita piamente que gente é feita pra brilhar, não pra morrer de fome.
Contato: brito.jfp@gmail.com
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