Por: José Duarte Ribeiro, Roberto Falanga e João Moniz
A crise climática colocou em xeque a eficácia das instituições democráticas tal como as conhecemos. A incapacidade para responder de forma célere e justa a desafios ecológicos complexos tem alimentado o apelo por novas formas de governança que combinem democracia e sustentabilidade. Neste contexto, as chamadas inovações democráticas (IDs) – como orçamentos participativos, mini-públicos e modelos colaborativos e participativos de governança – têm sido promovidas como instituições e processos promissores para reimaginar o papel dos cidadãos na formulação de políticas públicas ambientais.
Mas será que estas experiências têm realmente contribuído para uma transição ecológica justa e eficaz?
Essa foi a pergunta central de um artigo científico publicado recentemente por nós, na revista Sustainable Development, no âmbito do projeto europeu INCITE-DEM. Através de uma revisão sistemática da literatura focada no contexto europeu, os autores mapearam a relação entre diferentes tipos de IDs e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), procurando compreender o seu real impacto nas políticas e práticas de sustentabilidade ambiental.
De promessas a resultados: o que diz a literatura?
A análise sistemática identificou 129 estudos focados em experiências europeias de participação cidadã com relevância para a sustentabilidade ambiental. Os resultados confirmam que, embora as IDs não sejam uma panaceia, podem desempenhar um papel significativo na aproximação entre cidadania ativa e governança ambiental.
Muitos dos estudos demonstram que as IDs contribuem para a sensibilização dos cidadãos, para o fortalecimento do capital social e para a formulação de políticas públicas mais alinhadas com as preocupações ecológicas locais. O envolvimento dos cidadãos em decisões sobre recursos hídricos (ODS 6), energia limpa (ODS 7), consumo sustentável (ODS 12) e ação climática (ODS 13) tem permitido integrar saberes locais e promover soluções contextualizadas. Contudo, a literatura revela também limites importantes: muitas destas iniciativas são episódicas, dependentes de vontades políticas locais, e raramente produzem mudanças estruturais. O impacto real sobre as decisões políticas e os processos institucionais tende a ser frágil, especialmente quando não existem mecanismos de acompanhamento, de responsabilização ou de integração dos resultados na administração pública.
Mini-públicos, orçamentos participativos e governança colaborativa: diferentes caminhos, desafios semelhantes
As três principais formas de inovação democrática analisadas – mini-públicos (como assembleias de cidadãos), orçamentos participativos (OP) e modelos de governança participativa e colaborativa – oferecem diferentes respostas ao desafio de envolver os cidadãos na governação ecológica.
Os mini-públicos têm ganho protagonismo, especialmente na forma de assembleias climáticas nacionais ou municipais. Estas iniciativas, como se viu na Irlanda, França ou Reino Unido, procuram informar e deliberar sobre temas complexos com cidadãos selecionados aleatoriamente. No entanto, enfrentam dois desafios críticos: a falta de poder vinculativo e a ausência de mecanismos para garantir que as suas recomendações sejam incorporadas em políticas concretas. O estudo aponta que o entusiasmo inicial destas assembleias pode ser minado pela perceção de que “nada muda”, o que compromete a confiança pública a longo prazo.
Já os OPs demonstraram versatilidade na incorporação de preocupações ambientais, indo além da sua origem voltada para a justiça social. Em várias cidades europeias, o OP tem sido usado para financiar projetos de agricultura urbana, eficiência energética, mobilidade sustentável ou regeneração de espaços verdes. Ainda assim, subsiste a crítica de que muitas vezes estas escolhas estão limitadas a envelopes orçamentais reduzidos e a ciclos curtos, o que dificulta a sua capacidade para enfrentar os desafios estruturais das transições ecológicas.
No caso da governança participativa e colaborativa, a literatura destaca o seu potencial para envolver múltiplos atores – como comunidades locais, autoridades públicas, investigadores e ONGs – em processos de gestão de recursos naturais, planeamento territorial ou conservação da biodiversidade. No entanto, a complexidade dos arranjos institucionais e as barreiras de confiança entre atores frequentemente impedem a sua eficácia. A falta de clareza sobre competências e responsabilidades, associada à fragmentação das políticas ambientais, continua a dificultar a adoção de soluções sustentáveis integradas.
Entre o ideal participativo e os limites institucionais
Um dos objetivos do estudo é evidenciar que o potencial transformador das IDs depende menos do seu desenho formal e mais das condições institucionais em que são implementadas. Sem enquadramento político, apoio institucional e mecanismos que garantam continuidade, estas iniciativas correm o risco de se tornarem exercícios simbólicos, com pouco efeito prático.
Este diagnóstico é particularmente relevante quando se pensa na urgência e complexidade da crise climática. A literatura analisada pelos autores mostra que a maior parte das IDs continua a operar numa lógica de incrementalismo – promovendo ajustes em vez de rupturas – e raramente desafia os interesses estabelecidos ou os paradigmas dominantes de crescimento económico. Como sublinham os próprios autores, o ideal democrático de co-criação de políticas públicas enfrenta limites reais num sistema ainda marcado por desigualdades, resistências burocráticas e prioridades políticas de curto prazo.
O estudo conclui com um apelo a um duplo aprofundamento: da democracia e da sustentabilidade. Isso significa não apenas multiplicar espaços participativos, mas sobretudo garantir que esses espaços tenham impacto efetivo. Implica também alinhar os mecanismos participativos com objetivos de longo prazo e com compromissos ecológicos claros.
Mais do que uma agenda de inovação institucional, trata-se de uma reconfiguração das prioridades do próprio sistema político. A governança sustentável exige uma democracia que não se limite a escutar os cidadãos, mas que os envolva desde o diagnóstico até à implementação e monitorização das soluções. E isso só será possível com estruturas que transcendam a lógica eleitoral imediatista e permitam decisões informadas, equitativas e com visão de futuro.
Em última instância, este artigo oferece uma mensagem clara: não há sustentabilidade sem democracia, mas também não há democracia ecológica possível sem transformação institucional. As IDs são apenas tão eficazes quanto as instituições que as acolhem permitem que sejam. E por isso, o desafio é político, e não apenas metodológico.
Figura 1 – Ilustração utilizada na campanha “El Saler per al poble”
El saler al poble, [detalhes de um poster]1974, Asociación Española de Ordenación del Medio Ambiente
Este é um dos casos históricos de participação cidadã recolhidos na pesquisa de arquivo do projecto INCITE-DEM. É um exemplo, entre vários, de conflitos ambientais no período pós-ditadura franquista em Espanha: El Saler, Valência (1973 – 1986). Durante o verão de 1974, foi lançada uma campanha cidadã sob o lema “El Saler per al poble”, através de uma recolha de assinaturas, que levou a Câmara Municipal de Valência a recuar e, em dezembro desse ano, a aprovar uma remodelação do Plano de Ordenamento que iria afectar o bosque, junto ao mar, da Devesa de El Saler. Esta decisão implicou o cancelamento de 23 torres de apartamentos, a recuperação de 70 hectares da zona arenosa e a transferência da parte edificável para outra zona.
José Duarte Ribeiro concluiu recentemente o seu doutoramento em Sociologia na Middle East Technical University (METU), em Ancara, Turquia. Conta com investigação em Portugal e na Turquia na área da sociologia rural e movimentos sociais. É investigador de pós-doutoramento no ICS no projecto europeu INCITE-Dem. É também membro da equipa editorial deste blogue.
Roberto Falanga é Investigador auxiliar no ICS, trabalha sobre processos participativos e deliberativos nas políticas públicas. É coordenador no ICS dos projetos europeus Incite-Dem, Infrablue e INSPIRE.
João Moniz concluiu recentemente o seu doutoramento em ciência política pela Universidade de Aveiro e o seu percurso profissional conta com várias participações em projetos de investigação, tanto a nível nacional como internacional. É investigador de pós-doutoramento no ICS no projecto europeu Incite-Dem.
