Tempo, Imaginação e Transformação: Reflexões sobre a Naturescapes Spring School 2025

Por: Andresa Lêdo Marques

Vivemos num período marcado por crises interligadas — ambiental, climática e social — agravadas pelo facto de a mudança climática já não ser uma previsão futura, mas uma realidade que se sente no quotidiano, traduzida em eventos extremos e perda de biodiversidade. Em paralelo, instituições públicas e democráticas enfrentam ondas de deslegitimação e redução de financiamento, tornando ainda mais difícil responder de forma coordenada e justa a esses desafios. Também a academia vive a sua própria crise, com a pressão por produtividade, a cultura da competitividade e a precarização dos vínculos, que criam um ambiente cada vez menos propício à escuta, ao cuidado e à colaboração, especialmente para investigadores em início de carreira.

Foi neste cenário complexo e desafiante que co-organizei, juntamente com a Olivia Bina (ICS) e a Fiona Kinniburgh (ICS), entre os dias 8 e 10 de abril de 2025, a Naturescapes Spring School, no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa). O evento, dirigido a investigadores/as em início de carreira, reuniu 27 participantes de diversas nacionalidades e áreas de atuação, além de 16 investigadores/as seniores que participaram como comentadores, mentores e oradores. 

A escola foi organizada no âmbito do projeto Naturescapes (Horizonte Europa), e teve como tema central: Nature-Based Solutions for Just and Transformative Futures. Este tema insere-se num debate mais amplo sobre as Soluções Baseadas na Natureza (Nature-Based Solutions – NBS), que têm ganhado destaque nos últimos anos como formas de enfrentar simultaneamente desafios ecológicos, urbanos e sociais. No entanto, as NBS também se tornaram um campo de disputa política, epistemológica e cultural. Quem decide como e onde as NBS são implementadas? De quem são os futuros que se pretendem transformar? Que conflitos e possibilidades emergem quando a “natureza” entra no centro das estratégias de desenvolvimento urbano?

A Spring School foi concebida para explorar essas e outras questões, reconhecendo as NBS como ferramentas carregadas de valores, imaginários e potenciais de transformação. Procurámos criar um ambiente de partilha e escuta, onde os participantes pudessem refletir sobre os seus próprios projetos e, ao mesmo tempo, ampliar as suas referências críticas e relacionais.

Este texto tem como objetivo partilhar um pouco dessa experiência. Mais do que um relato institucional, trata-se de refletir sobre o que significa, hoje, organizar um espaço de formação em  contramão com as lógicas de reprodução da pressa, da hierarquia e do isolamento que parecem dominar os espaços académicos 

Tempo para estar, pensar e construir

A estrutura da escola foi desenhada com uma premissa simples: o tempo importa. Nesse sentido, o evento foi pensado como um espaço de pausa, de profundidade e de presença — e o tempo foi, desde o início, um dos seus eixos estruturantes.

Inspiradas pelo modelo do Workshop do Urban Transformation Hub (UTH), decidimos criar um ritmo que permitisse não apenas mostrar projetos de investigação, mas conversar sobre eles. Escutá-los e discuti-los com atenção. Cada sessão incluía no máximo duas apresentações, e todos os participantes, organizados em grupos, tiveram a oportunidade de ler os artigos com antecedência. Estes, apresentando diferentes graus de maturação e desenvolvimento, foram comentados por investigadores seniores, que, juntamente com os demais membros do grupo, ofereceram comentários e perguntas num ambiente de colaboração e troca de ideias.

Esse cuidado foi sentido por todos e muitos partilharam da opinião de como raramente têm oportunidades tão generosas para apresentar as suas investigações com tempo suficiente para pensar, discutir e refletir sobre o seu trabalho e o dos seus pares. Mas o tempo revelou-se valioso também nos intervalos. Nos almoços partilhados no terraço do ICS, nas conversas nos coffee breaks e nos encontros informais após as sessões. Num contexto universitário onde tudo é feito para caber em 10 ou 15 minutos, oferecer tempo tornou-se um gesto quase radical. E talvez seja justamente isso que mais ficou: a desaceleração como condição para a profundidade e para o vínculo.

Figura 1: Sessão paralela, Naturescapes Spring School 2025. Fotografia de Philipp Montenegro.

Imaginação, transformação e agências

Outro elemento central foram as apresentações dos palestrantes convidados — momentos criados para ampliar as nossas referências e perspectivas. A Spring School abriu com a palestra de Ramon Sarró (ICS), que nos convidou a uma reflexão teórica sobre os desafios da separação entre natureza e cultura, e destacou o papel da imaginação como uma ferramenta importante para repensarmos as conexões entre as duas. Encerrámos o primeiro dia com uma palestra de Maarten Hajer (Universidade de Utrecht), realizada no Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa. Hajer defendeu a necessidade de irmos além das abordagens meramente pragmáticas em relação às NBS, em direção a uma reimaginação mais radical das relações sócio-ecológicas, e reformular os atuais discursos políticos em torno das NBS.

Figura 2: Palestra de Maarten Hajer (Universidade de Utrecht), realizada no Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa.

Tivemos ainda intervenções no segundo dia, como a palestra de Carmen Lacambra (Grupo Laera), que trouxe uma perspectiva baseada na sua vasta experiência académica e profissional na América Latina, partilhando casos concretosde integração da biodiversidade na gestão de riscos em territórios tropicais. A sua comunicação destacou a importância dos contextos sociais e culturais para a implementação das NBS, além da integração de dados científicos.

Na última apresentação de convidados externos, tivemos a palestra de. Isabel Ferreira (Universidade de Coimbra), que nos levou a pensar nas práticas participativas como práticas de transformação em si mesmas. A partir da sua ampla trajetória profissional e académica, e da atuação no projeto TRANS-lighthouses, partilhou reflexões sobre as culturas participativas, transformação e justiça, e as suas possibilidades e desafios no contexto das NBS.

Essas vozes, com as suas diferentes origens, linguagens e experiências, ajudaram a compor um mosaico crítico sobre o que transformar com e através da natureza pode significar em diversos contextos.

Considerações finais: Semear novos futuros

A experiência de co-organizar a Naturescapes Spring School foi uma tentativa deliberada de criar um espaço de trocas, crescimento e pausas. Um convite a outro ritmo e a dar corpo a um tipo de experiência que, infelizmente, raramente tem lugar num contexto académico cada vez mais competitivo. Foi um convite a uma experiência de escuta, de convivência, de cuidado.

Os três eixos temáticos da escola — governança das NBS para a justiça, significados e valores da natureza urbana, e futuros imaginados e disputados — atravessaram todas as apresentações e discussões, mas sem se tornarem caixas estanques. Pelo contrário, foram pontos de partida para que cada participante pudesse situar a sua própria investigação em relação a um campo em transformação e constante evolução.

O que fica, na perspectiva da organização, é a esperança de que a escolha do tempo como eixo estruturante tenha feito deste evento nãoa penas uma oportunidade de ampliação de conteúdo e networking, mas também a semente de uma comunidade que cultive uma cultura académica. Uma comunidade na qual o conhecimento é partilhado com honestidade, onde as diferenças são reconhecidas como potência, e onde o futuro é tratado não como um dado, mas como algo a ser construído e cuidado.

As NBS, longe de serem apenas uma técnica ou tendência, são também um campo de disputa ética, política e estética. Podemos encará-las como um convite para não tratarmos a natureza como solução rápida, mas como relação, cuidado e uma perspectiva de futuro em disputa e construção. Talvez o que fizemos nesses três dias não tenha sido responder às múltiplas crises que enfrentamos, mas sim encorajar a imaginação sobre futuros mais justos e sustentáveis — o que implica também imaginar e praticar outras formas de estar juntos — na academia, na cidade, no planeta. Num mundo em que tudo nos empurra para a velocidade e para a produtividade, criar um evento como este e com esta estrutura pode ser, paradoxalmente, um ato radical. E, quem sabe, uma semente de futuro.

Figura 3: Naturescapes Spring School 2025. Fotografia de Philipp Montenegro.

Andresa Lêdo Marques é atualmente investigadora de Pós-Doutoramento no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, integrando o projeto de investigação Naturescapes: Nature-based solutions for climate resilient, nature positive and socially just communities in diverse landscapes.

Nordeste brasileiro: diferentes narrativas sobre desenvolvimento e transição energética

Por: José Gomes Ferreira

O Nordeste brasileiro é constituído por nove estados, que ocupam 1.558.000 km². Segundo o Censo 2022 residem na região cerca de 55 milhões de habitantes. Dado o atraso no desenvolvimento económico, a possibilidade das energias renováveis integrarem os investimentos fez parte, em 1959, das prioridades do documento Uma política de desenvolvimento econômico para o Nordeste, coordenado por Celso Furtado, que deu origem à Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE).

Arranque

Foi a partir do apagão no fornecimento de eletricidade, ocorrido em 2001 e resultante da seca que afetou o Brasil, que a produção de energias renováveis foi desenvolvida. Ainda nesse ano, o Governo Federal avançou com o Programa Emergencial de Energia Eólica (PROEÓLICA), substituído no ano seguinte pelo Programa de Incentivo às Fontes Alternativas (PROINFA). Data também de 2001 o primeiro Atlas de Potencial Eólico Brasileiro, que mostrou que o Nordeste tem os ventos mais favoráveis à produção eólica. Em 2006, foi publicado o Atlas Brasileiro de Energia Solar, destacando igualmente o potencial produtivo do Nordeste. A implementação de empreendimentos eólicos tem sido muito rápida, enquanto que a produção de energia solar está ainda em fase de expansão.

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Sessões Prospetivas ODSlocal: Pensar o Futuro, Agir no Presente em Contextos Fronteiriços

Por: Luísa Schmidt, João Guerra, Leonor Prata e David Travassos

A territorialização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) constitui um dos principais desafios da Agenda 2030 aprovada em 2015. Em Portugal, a Plataforma Municipal dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSlocal) assume, desde 2020, a promoção desse processo, através de um dinâmico portal online e de uma estratégia proativa de mobilização participativa no terreno. A disponibilização e disseminação de informação surge como um dos objetivos centrais deste projeto, que tem promovido workshops locais, conferências anuais (por exemplo, a edição de 2022), relatórios e documentos de reflexão (por exemplo, as “Iniciativas em prol dos ODS em Portugal”) ou, ainda, protocolos e parcerias com outras entidades. Neste último caso, refiram-se os exemplos já em vigor do Programa Bairros Saudáveis, a parceria com a Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, ou os acordos de âmbito regional e/ou supramunicipal (por exemplo, a Associação de Municípios da Região Autónoma dos Açores).

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Inovações Democráticas: Apontamentos históricos e implicações presentes

Por: José Duarte Ribeiro, João Moniz e Roberto Falanga

A democracia é, essencialmente, sobre a voz dos cidadãos. No entanto, à medida que as sociedades e estruturas políticas evoluem, surge também a necessidade de refinar os mecanismos pelos quais estas vozes são ouvidas e representadas. Nas democracias representativas contemporâneas, essa necessidade advém do acentuado problema da malaise na democracia, que pode ser simplesmente descrito como “um momento em que o ideal de democracia é amplamente amado, mas suas práticas são amplamente criticadas”. É precisamente na abordagem a esta crítica que o termo inovações democráticas surge, mais amplamente conhecido após a definição proposta por Graham Smith.

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Sangram as águas, celebra o povo. Fé e festa no transbordar da barragem de Pau dos Ferros, Rio Grande do Norte

Por: José Gomes Ferreira e Bertulino José de Souza

Na abordagem que temos feito sobre o valor eco-social da água, trazemos para análise A água e os sonhos, de Gaston Bachelard, e a proposta de Francisco Javier Martinez-Gil sobre os conceitos de fluviofelicidade e fluvioterapia. Relembramos, em Portugal, a centralidade da partilha da água na interação social gerada entre os habitantes de comunidades rurais e como primeiro instrumento de governança local. Outro exemplo é o das socialidades resultantes da ida à fonte, configurando-se como ponto de encontro da juventude em décadas anteriores. 

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A Educação Ambiental na Comunidade de Países de Língua Portuguesa: Colaboração Multilateral, entre Política e Sociedade Civil

Por: Leonor Prata, Luísa Schmidt e João Guerra

Desde a Conferência de Estocolmo das Nações Unidas (ONU), em 1972, reconhece-se a urgência de medidas políticas e diplomáticas ambientais eficazes e transparentes, que capacitem os cidadãos a agir em prol do bem comum. Neste desiderato, surgiram marcos como a Agenda 21, na Cimeira do Rio (1992), e a Agenda 2030, na COP 21 em Paris (2015), que articulam níveis de governança (nacionais, regionais e locais) e participação pública.

No entanto, análises retrospetivas deste meio século revelam um fraco desempenho internacional na concretização destas medidas e concretamente no que diz respeito à Educação Ambiental e para o Desenvolvimento Sustentável (EA). Tal desenlace deve-se, por um lado, à sua falta de integração sistémica, resultando em medidas desarticuladas que reforçam entraves institucionais, técnicos e financeiros, e, por outro lado, à prevalência de curricula que visam inculcar conhecimentos e atitudes, mas carecem de abordagens propiciadoras de sentido crítico, significativas e interventivas no ambiente natural e sociocultural, ao longo da vida.

Esta reflexão centra-se na cooperação lusófona no campo da EA, a partir de um estudo desenvolvido no âmbito do Observatório de Ambiente, Território e Sociedade (OBSERVA/ICS-ULisboa).

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Participação na cadeia de valor do café: Uma investigação antropológica para apontar as assimetrias de poder

Por: Marie Sigrist

Já parou para pensar de onde vem esse café que você tomou hoje de manhã? Pois, então, pode ter sido cultivado no Brasil. De fato, mais de um terço do café exportado no mundo é produzido no Brasil. E, se o seu café é brasileiro, é bem provável que venha do Estado de Minas Gerais, que forneceu 22 milhões de sacas em 2022, ou seja, mais de 40% da produção do café brasileiro. Mais especificamente, o sul de Minas Gerais é apropriado para cafeicultura devido às suas cadeias de montanhas, temperaturas médias de 20 graus por ano e à sua latitude. Aliás, a região assumiu a liderança na produção nacional há cerca de 50 anos.

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Regeneração Urbana: Ontem, Hoje e Amanhã

Por: Mafalda Nunes

A regeneração urbana tornou-se um conceito popular nas políticas urbanas a nível global, como forma de responder aos desafios e ‘crises’ urbanas que vão sendo identificados nas cidades contemporâneas. Das questões espaciais (qualidade do edificado e espaços públicos), às sociais (níveis de educação, emprego, coesão social), económicas (oportunidades para o comércio, negócios, turismo) e ambientais (qualidade do ar e dos espaços verdes), surgem várias estratégias com enfoques distintos sob o ‘chapéu’ comum da regeneração urbana.

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COP 27 – premência, apreensão e esperança

Por: João Guerra

Talvez mais do que qualquer outra convenção, tratado, ou programa de governança global, desde que foi proposta e aprovada na Conferência da Terra (Rio 92), a UNFCCC (Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas) conseguiu uma adesão quase-universal, envolvendo atualmente 198 signatários. A razão deste aparente sucesso resulta da apreensão que as alterações climáticas têm vindo a suscitar de norte a sul, bem como a premência de minorar os seus impactos a partir da origem. Ou seja, estabilizar as concentrações de gases com efeito de estufa na atmosfera, a um nível que evite consequências indesejáveis para o sistema climático. No entanto, como se pode deduzir dos resultados alcançados ao longo destas três décadas, mereceram menos concordância as formas e os meios para alcançar tal objetivo. Neste panorama, desde 1995, ano em que decorreu a primeira, em Berlim, têm vindo a ser promovidas as anuais “Conferências das Partes (COP)” que funcionam como espaços de discussão e elaboração de propostas práticas para implementar a convenção.

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Co-Produção: A Inteligência Humana ao Serviço das Nossas Cidades

Por: Diogo Martins

Estamos sempre a falar em cidades mais inteligentes, com sensores, inteligência artificial, com software que irá gerir tudo ao pormenor, com tecnologia que nós, hoje, não conhecemos. Mas em que medida toda esta tecnologia traz benefícios às pessoas que habitam e frequentam as cidades? E estaremos a tirar partido da inteligência dessas pessoas para melhorar as nossas cidades?

A minha proposta é explorarmos formas de voltar às pessoas, sem deixarmos de evoluir e usar tecnologia. A co-produção é ainda pouco utilizada no nosso dia-a-dia e por isso não vemos efeitos práticos disso nas nossas cidades com a frequência que é desejável.

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