Saúde e sustentabilidade numa calha comum: o caso do Programa Bairros Saudáveis

Por: João Guerra e Paulo Miguel Madeira

A saúde humana pode ser encarada de muitas formas e a partir de muitas frentes. Se o objetivo for resolver um problema pessoal e específico, uma abordagem mais incisiva recai num conjunto reduzido de fatores associado diretamente a uma enfermidade. Desse ponto de vista redutor, a avaliação da saúde baseia-se numa análise de cariz tendencialmente descontextualizada e reducionista, focada em processos individuais, físicos, observáveis e mensuráveis. No entanto, no campo mais alargado da saúde comunitária, esta abordagem mostra-se claramente insuficiente, já que, nesses contextos, social e ambiental, individual e coletivo, mesclam-se de forma intricada, funcionando como um ecossistema que determina as condições de existência.

Figura 1. Problemas de saúde pública mais preocupantes em Portugal. Fonte: Estado da Saúde na UE: Portugal – Perfil de saúde do país 2021.

Nesse sentido, uma saúde comunitária apropriada exige que os residentes olhem para além de si próprios e assumam uma responsabilidade coletiva, centrada na promoção geral de estilos de vida saudáveis para, globalmente, proteger a comunidade, num diálogo profícuo entre perspetivas naturalista e holística. O mais importante, afinal, é não ignorar o crucial jogo de interações – i.e., de fatores múltiplos que se prendem com comportamentos e estilos de vida e, portanto, com uma realidade vivida –, onde, como se procura ilustrar na Figura 1, as práticas quotidianas assumem um papel modelador.

Numa esteira alargada de aproximações ideológicas e tradições disciplinares, a saúde das comunidades locais – em especial as constituídas por grupos sociais vulneráveis e/ou mais estigmatizados – depende, portanto, da inclusão de condicionalismos e contextos sociais e da cadeia de efeitos e contra-efeitos que decorrem da sua condição sistémica.

Figura 2. Perspetiva holística da saúde. Elaboração própria a partir de “What Is Holistic Health?”.

Aliás, dando conta dessa complexidade e da necessidade de a abarcar, já em 1946, no primeiro dos princípios defendidos no preâmbulo do documento de constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), se defendia que “a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. Esta visão alargada e não fragmentada da saúde – saúde holística – assenta em, pelo menos, 6 dimensões interligadas, como se procura ilustrar na Figura 2: corpo, mente, espírito, pessoas, cultura e ambiente.

Nesta ótica, os processos locais – impulsionados por condições ambientais e socioeconómicas específicas – podem desempenhar um papel crucial na promoção da qualidade de vida e da saúde das populações e, em particular, dos grupos menos aptos a lidar com as novidades, os riscos e a complexidade da modernidade. Assume-se que, nas comunidades, uma abordagem para a saúde não fragmentada resultará melhor para a sua promoção, porque permitirá dar atenção não apenas ao específico e ao contingente, mas também ao geral e ao relacional.

Figura 3. Logótipo do Programa Bairros Saudáveis.

O Programa Bairros Saudáveis (PBS), agora em fase de finalização, procurou responder aos reptos holísticos da saúde, numa perspetiva que se aproxima da mesma ideia presente na Agenda 2030. Promovendo o desenvolvimento de pequenos projetos de cariz local, o PBS apostou na melhoria das condições de saúde com uma estratégia inclusiva que compreendeu a promoção do bem-estar social em territórios social e economicamente vulneráveis. Desenvolvidos por associações, ONG, movimentos cívicos e organizações de moradores, estes projetos visaram dar algum poder, no sentido de “poder fazer”, a comunidades, residentes e organizações intervenientes nesses territórios.

Com o objetivo de conseguir uma avaliação externa e independente, o PBS celebrou um protocolo de colaboração com o ICS-ULisboa (em representação da Plataforma ODSlocal) que, nomeadamente, estipulou a sua avaliação, medindo, entre outros parâmetros, contributos e impactos locais para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Apresentamos, de seguida, alguns dos resultados mais ilustrativos de um inquérito, aplicado aos promotores dos projetos PBS, que alcançou uma taxa de resposta de quase 80% dos projetos apoiados e promovidos por associações locais (54%), IPSS (27%), ONG (11%) e, ainda, fundações, cooperativas, instituições de ensino privado, etc..

De acordo com os dados expostos na Figura 4, a predominância dos valores sociais (“Dimensão Pessoas” na linguagem da Agenda 2030) é inquestionável, destacando-se, de entre eles – e como seria de esperar, dado o propósito mais imediato do PBS –, a saúde com mais de 90% de projetos a referi-la. No entanto, outras dimensões não são ignoradas. Pelo contrário, as dimensões instrumentais do Desenvolvimento Sustentável (Paz e Parcerias) rivalizam pelos lugares de liderança, assim como o ODS 11 – Cidades e Comunidades Sustentáveis e outros ODS ligados a questões socioeconómicas.

Aparentemente, entre os promotores destes projetos, a ideia de uma sustentabilidade justa, holística e transversal não é algo que ignorem. Assumem-na claramente, parecendo existir uma espécie de “efeito de osmose” entre dois conceitos – saúde e sustentabilidade – que se aproximam na complexidade que envolvem e a partir dela. Ou seja, a ideia de holismo tende a reforçar-se numa tendência criativa e multiplicadora em que o ponto de chegada (depois da ligação entre os dois conceitos ter sido desencadeada) está incomparavelmente acima do ponto de partida.

No entanto, ao olhar para os ODS mais impactados e, por conseguinte, onde os promotores destes projetos julgam ter alcançado melhores resultados (Figura 5), o âmbito tende a restringir-se, destacando-se o ODS 10 – Reduzir as desigualdades e o ODS 3 – Saúde de qualidade, seguidos do ODS 4 – Educação de qualidade e do ODS 11 – Cidades e comunidades sustentáveis. De acordo com as perceções destes promotores da saúde comunitária que, aparentemente, se assumem como potenciadores da sustentabilidade local, se a sua ação for alargada aos dezassete ODS, os resultados mais positivos centraram-se, antes de mais, nas áreas mais determinantes para o ecossistema territorial de que falámos antes: a vida e o contexto urbano, a redução de desigualdades, a educação potenciadora de mudança e, claro, a saúde que se entrelaça e depende das anteriores. Em suma, esta análise de contributos e impactos aponta para um alinhamento dos diferentes projetos PBS com os objetivos do programa, mas também com os ODS.


João Guerra é sociólogo, investigador no ICS-ULisboa e docente no Programa Doutoral de Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável (ICS-ULisboa), no Mestrado de Design para a Sustentabilidade (FBA e ICS-ULisboa) e na Licenciatura de Sociologia (ISCTE-IUL). Desde 2019, cocoordena a Secção Ambiente e Sociedade da Associação Portuguesa de Sociologia. joao.guerra@ics.ulisboa.pt

Paulo Miguel Madeira é doutorado em Geografia pela Universidade de Lisboa e investigador no ICS-ULisboa, onde integra a equipa do projeto ODSlocal. É um dos coordenadores da Secção de Economia Política do Território da Associação Portuguesa de Economia Política. paulo.madeira@ics.ulisboa.pt

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