O valor da vida urbana: reflexões sobre habitabilidade, normatividade e exclusão

Por: Elizabeth Dessie; Tradução de André Pereira

**A versão original deste post pode ser consultada aqui.

O que faz com que a vida urbana valha a pena ser vivida? Com cidades em todo o mundo que consubstanciam os motores económicos de desenvolvimento e transformação, o valor do urbano tem sido geralmente conceptualizado em termos monetários. Mas como é que a habitabilidade interage com as necessidades e experiências subjetivas dos habitantes da cidade, e até que ponto a exclusão é uma parte integrante da patologia urbana sob efeito do capitalismo global? O que seriam as cidades se abandonássemos o capital como qualificador monetário de valor? E que descobertas faremos se integrarmos história e relacionalidade no entendimento do que são as cidades e do que é urbano? Este post pondera estas perguntas em relação às apresentações, discussões e interações que ocorreram no workshop “What makes urban life worth living? (Re)evaluating the value of urban life”, que decorreu em Lisboa, em maio de 2023, acolhido pelo Dinamia’CET (ISCTE-IUL) e pelo Urban Transitions Hub (ICS-ULisboa).

A metafísica das cidades

Reunindo investigadores de ciências sociais e não só, a primeira parte do workshop foi estruturada em torno das apresentações dos participantes e keynotes, atravessando vários temas e geografias. As comunicações consistiram na apresentação de trabalhos mais exploratórios, mas também de ideias e projetos e mais desenvolvidos. As sessões exploraram a teoria urbana com base em perspectivas críticas, discussões em torno das lutas urbanas pela sobrevivência, da transformação e da cultura urbana, pensando o espaço público como local de contestação e conflito.

No centro destas discussões esteve o interesse em investigar a dimensão metafísica das cidades, começando com um mergulho profundo nos fundamentos filosóficos dos aglomerados humanos, intrinsecamente ligados à atividade e troca económica. As discussões que se seguiram giraram em torno da importância de entender os espaços urbanos através de uma lente sociológica, política e económica, para problematizar a governança urbana em relação ao Estado e ao policiamento, à centralidade das cidades nos sistemas de mercado, assim como à importância de examinar criticamente como o exercício do nosso direito inerente à cidade está frequentemente ligado ao consumismo como uma parte imparcial da vida urbana.

Algumas das principais questões levantadas durante as sessões incluíram também o papel do ambiente construído na produção do espaço público, explorações conceptuais em torno de valores morais, economias morais, estudando as áreas urbanas como locais de tédio, habitabilidade sob condições de austeridade, a relação entre cidades e áreas rurais e o papel da arte como fonte de afinidade e expressão cultural entre as comunidades urbanas.

Bairros, surrounds e futuros derivativos

No segundo dia, o micro-workshop, conduzido por Irene Peano, mergulhou nos muitos temas abordados nas discussões do primeiro dia, estruturadas em torno de questões relacionadas com a habitação, os mercados e o estado. Partindo de uma exploração teórica do conceito de surrounds de Abdoumaliq Simone – definidos como “espaços urbanos além do controlo e captura que existem como um locus de rebelião e invenção” – Irene Peano perguntou como podem as extensions ser desafiadas e recriadas através da investigação nas cidades. Explorou como esse processo perturba as ideias de valor em relação às áreas urbanas, repensando as noções de “maiorias urbanas” e “infraestruturas” de vitalidade e resiliência. Destacando a importância da experimentação conceptual, a palestra de Peano baseou-se em exemplos do Sul e Norte globais – incluindo a sua própria investigação sobre vidas migrantes em Itália – para enfatizar como as identidades são habitadas por indivíduos e comunidades nos seus esforços para desafiar estruturas opressoras de género, seuxalidade e de racialização.

A ideia da cidade como local de luta foi também central para a palestra de Simone Frangella. Explorando a territorialidade da pertença, Frangella levou os participantes do workshop numa jornada teórica através da pós-colonialidade em relação à produção cultural de alguns bairros na região de Lisboa. Discutiu a sua investigação sobre mobilidade intergeracional, os repatriamentos para Portugal após a independência das colónias e como esses movimentos no espaço e no tempo produziram padrões residenciais e narrativas culturais específicas. Apresentando o conceito de homing como uma ferramenta útil para entender o convívio em relação à história do ambiente construído nas cidades, Frangella explorou o simbolismo do lugar e da memória para entender a história – e o presente – dos bairros marginalizados.

Com base nas noções de opressão e produção cultural, Ana Rita Alves ofereceu um olhar aprofundado sobre a sua investigação em torno das formas de governamentalidade económica e racialmente orientadas impostas pelo Estado português. Descreveu como as táticas que legitimam os despejos estão intimamente ligadas à violência e vigilância do Estado,discutindo iniciativas de realojamento que levam a perdas extremas de rendimento e capital social. Alves destacou ainda a insegurança habitacional como uma experiência profundamente racializada da cidade – resultando em realidades vividas que contrastam com a noção de habitação como um direito humano básico, através da segregação residencial e de padrões geracionais de desapropriação.

Figura 1. Ana Rita Alves durante a apresentação de uma curta-metragem exibida como parte da sua comunicação. Autora: Lavínia Pereira.

A sessão de encerramento, liderada por Erik Bordeleau, abordou a rede de inteligência artificial e produtos financeiros. Com base na sua investigação, Bordeleau enfatizou o papel da tecnologia financeira na redefinição do valor como moeda e liquidez. Destacou novas intervenções tecnológicas e as formas como a Fintech está a redesenhar a forma como as cidades operam como nó financeiro do sistema capitalista global.

Urbanidade como (não) normatividade

Ao abordar a questão central deste workshop, muitas outras foram levantadas, abrindo novas janelas de inquirição sobre o valor da vida urbana, sobre cidades e sobre aqueles cujas vidas e experiências de urbanidade “contam”. No último dia do workshop, durante uma caminhada por Lisboa – que incluiu visitas a bairros com défice de serviços e historicamente marginalizados, tanto no centro da cidade como na sua periferia – foram partilhados pensamentos sobre as linhas difusas entre ilegalidade e informalidade. Isso levou a uma reflexão sobre a permanência da incerteza, sobre o modo como ficar preso nos espaços de transição pode transformar-se num legado geracional; sobre as relações temporais e espaciais entre as intervenções urbanas, destinadas a renovar e revitalizar áreas urbanas e a precariedade e marginalização.

Figura 2. Participantes do workshop no Bairro Carlos Botelho, Beato. Autora: Lavínia Pereira.

Ao desmonetizar, em vez de se desvalorizar, o “valor” como conceito, permitimos um entendimento da cidade fora dos processos extrativos ligados ao uso da terra, do tempo e do trabalho. Em vez disso, observamos o urbano como um ecossistema que experiencia os seus próprios ciclos de desintegração e renovação. Este workshop permitiu que os participantes explorassem até que ponto a normatividade está enraizada nos nossos entendimentos sobre o que a cidade é e o que deveria ser – aumentando a nossa compreensão da desigualdade e exclusão como manifestações inerentes de ser urbano no contexto de uma estrutura global capitalista.

Não há resposta definitiva para a pergunta sobre o que faz a vida urbana valer a pena ser vivida. Contudo, através das nuances das diversas perspectivas disciplinares, podemos entender melhor a produção e a reprodução da vida urbana como um recurso obtido e reivindicado coletivamente, que é (re)feito através das práticas quotidianas dos seus habitantes – incluindo aqueles que são estruturalmente marginalizados.

Figura 3. Andrea Pavoni e os participantes junto a um memorial na Penha de França. Autora: Elizabeth Dessie.

Elizabeth Dessie is a Postdoctoral Fellow at the African Cities Research Consortium (ACRC) at the University of Manchester. Her research explores the gendered livelihood strategies of rural migrant youth in Addis Ababa, Ethiopia.

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