As ciências sociais como virtuosismo político e social: a epistemologia de Bent Flyvbjerg

Este é o quarto post da série “A utilidade das Ciência Sociais

Por Marco Allegra

Qual é a utilidade das ciências sociais? Qual o seu impacto na sociedade? E quais as opções (epistemológicas, metodológicas, políticas) disponíveis para o investigador maximizar este impacto – mantendo, ao mesmo tempo,  autonomia e a independência que muitos de nós associamos ao estatuto da ciência? Estas são algumas das perguntas essenciais  subjacentes ao recente post de Andy Inch neste blogue – seguido de um contributo de Simone Tulumello sobre “a ciência do possibilismo”.

Tive a oportunidade adicional de refletir sobre este tema durante o último seminário do nosso grupo de investigação. O debate que seguiu a apresentação sobre as metodologias quantitativas transformou-se, de facto, numa discussão sobre o processo de construção dos dados, a relação entre dados qualitativos e quantitativos, e as possibilidades de integração destes no desenho da pesquisa.

Neste post gostaria de continuar esta conversa encaixando-a numa perspetiva mais alargada – num discurso sobre os fundamentos epistemológicos das ciências sociais, a epistemologia sendo “o estudo do conhecimento e das crenças justificadas” e, mais em geral, “a criação e a disseminação do conhecimento em áreas de investigação específicas” (EpistemologyStanford Encyclopedia of Philosophy) – para depois voltar às questões levantadas por Andy descrevendo a proposta epistemológica de Bent Flyvbjerg sobre as ciências sociais como virtuosismo político e social.

Métodos ou metodologias?

A contraposição “métodos quantitativos vs. métodos qualitativos” representa um refrão familiar nas conversas académicas. Apesar disso, como o ultimo seminário do GI demonstrou, trata-se de uma contraposição com pouco fundamento.

Principalmente devido ao caráter complexo da realidade social, tanto a pesquisa qualitativa como a quantitativa encontram problemas semelhantes na construção e na análise dos dados. Aliás, se riscarmos a superfície aparentemente mais regular dos trabalhos quantitativos, identificamos uma dinâmica bem mais caótica, feita de limites tanto estruturais (e.g. séries históricas incompletas ou não comparáveis) quanto inerentes ao processo do desenho da pesquisa (e.g. a seleção das variáveis e a construção dos indicadores).

Por outro lado, tanto as abordagens quantitativas quanto as qualitativas adotam estratégias voltadas para a minimização deste tipo de problemas. Uma dessas estratégias consiste precisamente na abordagem da chamada mixed- ou multi-methods research, a integração de métodos diferentes na mesma investigação. De facto, existe hoje um consenso alargado sobre a necessidade duma abordagem pluralista em relação à escolha dos métodos; por outras palavras, a bondade de um método apenas pode ser avaliada em relação a um determinado desenho de pesquisa.

“There are things that you can measure…”. Fonte: The Manga Guide to Statistics, 2008, pg. 18

A situação é bem diferente quando consideramos o conceito de “metodologias”. Como observam Peregrine Schwartz-Shea e Dvora Yanow, enquanto os “métodos” são técnicas para recolher dados, uma metodologia

tem raízes… na história do pensamento político ou científico e/ou nas premissas epistemológicas e ontológicas da filosofia do ciência (social) subjacente ao processo de investigação (citado em Jackson 2006, pg. 89). 

Ou seja: enquanto existe hoje um consenso sobre o pluralismo dos métodos, a questão do pluralismo das metodologias mantém-se em aberto – na medida em que falar de metodologias implica debater as grandes alternativas epistemológicas disponíveis ao investigador e, mais em geral, o papel das ciências sociais.

Por exemplo, já no título do texto clássico Designing Social Inquiry: Scientific Inference in Qualitative Research, defende-se uma abordagem baseada na tradição epistemológica positivista, inspirada nas ciências duras: enquanto a escolha dos métodos (qualitativos e/ou quantitativos) pode depender das necessidades pontuais da investigação, o fim último da pesquisa seria a clássica “produção de inferências” da ciência positivista, ou seja, a descoberta de relações causais entre as variáveis observadas que remetem para as leis universais que regem o funcionamento das sociedades.

Ciências sociais fronêticas

Um ponto de vista radicalmente oposto é o da tradição que Bent Flyvbjerg chama “phronetic social science” – uma genealogia que inclui figuras como as de Aristóteles, Maquiavel, Nietzsche e Foucault. No seu livro mais conhecido Making Social Science Matter: Why Social Inquiry Fails and How It Can Succeed Again, Flyvbjerg apresenta uma abordagem metodológica que enfatiza a importância dos contextos nos fenómenos sociais – uma abordagem baseada nos estudos dos irmãos Hubert e Stuart Dreyfus sobre a aprendizagem e também no trabalho de Pierre Bourdieu.

Os fenómenos sociais são essencialmente condicionados pelo seu contexto, diz Flyvbjerg; por isso, o cientista social nunca conseguirá produzir teorias gerais de tipo positivista, i.e. independentes do contexto, baseadas em regras gerais, explanatórias e preditivas. A impossibilidade de excluir o contexto da análise dos fenómenos sociais cria um paradoxo aparente:

O contexto não pode ser excluído porque, como Bourdieu demonstrou, o contexto define os fenómenos sobre os quais a teoria se aplica. Contudo, uma teoria deve ser necessariamente ‘context-free’, caso contrário não representa uma teoria geral (Flyvbjerg 2001, pg. 47).

Flyvbjerg indica uma saída para este paradoxo: em vez de tentar emular as ciências duras, as ciências sociais devem focar-se na virtude aristotélica da frônese, ou seja, a capacidade de fazer escolhas inteligentes em circunstâncias pontuais:

A frônese ultrapassa tanto o conhecimento analítico-científico (episteme) quanto o conhecimento técnico ou know how (techne) e implica juízos e decisões tomadas ao estilo de um ator social e político virtuoso… O papel das ciências sociais fronêticas é clarificar e apoiar a deliberação sobre problemas e riscos que a sociedade está a enfrentar, e delinear o que pode ser feito duma maneira diferente – com a plena consciência de que nunca poderemos encontrar respostas definitivas a estas perguntas e nem sequer concordar com uma qualquer versão destas perguntas (Flyvbjerg 2001, pg. 140).

A utilidade das ciências sociais

Se aceitarmos a proposta de Flyvbjerg, podemos sintetizar algumas diretrizes fundamentais para responder às questões colocadas por Andy Inch no seu post.

– As ciências sociais devem aceitar serem normativas: a frônese é virtude ativa, focada nas questões políticas e de valores – O que está a acontecer? Quais as consequências? O que podemos fazer? Neste sentido, as inquietações dos investigadores têm de ter raízes em problemas reais (e não serem simplesmente “theory-driven”) em relação aos quais a investigação pode fornecer um contributo concreto – este é o antídoto de Flyvbjerg aos chamados “‘so-what results” nas ciências sociais. Por outro lado, isto não significa renunciar às ambições teóricas das ciências sociais, mas sim adotar um modelo semelhante ao da grounded theory, em que o aparato teórico não é pré-existente ao trabalho de campo, mas emerge gradualmente no decurso da investigação.

– O investigador tem de manter a máxima proximidade entre si e o objeto de investigação, porque o verdadeiro conhecimento surge principalmente da prática quotidiana – por isso Flyvbjerg indica os estudos de caso como um método particularmente apropriado, por representar a investigação do contexto par excellence. Esta proximidade tem de ser mantida constante durante todas as fases da pesquisa, com o objetivo de receber um feedback contínuo sobre os resultados do trabalho, e de maximizar o impacto da investigação na comunidade interessada. Citando o escritor americano Henry Miller, Flyvbjerg compara o trabalho de investigação a um “terrain of which I have made a thorough, geodetic survey, not from a desk with pen and ruler, but by touch, by getting down on all fours, on my stomach, and crawling over the ground inch by inch, and this over an endless period of time in all conditions of weather” (Flyvbjerg 2001, pg.133).

– O objetivo da investigação deve ser transcender o dualismo macro/micro e ator/estrutura; os produtos da investigação devem necessariamente representar uma “polifonia de vozes”, ou seja, um diálogo entre todos os sujeitos envolvidos, em que a voz do investigador é um input, mas não reivindica uma autoridade especial: a objetividade, diz Flyvbjerg, não é “contemplação sem interesse” mas sim a apresentação de uma “variedade de perspetivas e de interpretações afetivas ao serviço do conhecimento” (Flyvbjerg 2001, p. 139). A Actor Network Theory partilha a mesma ambição; aqui e aqui Tommaso Venturini apresenta a proposta metodológica da chamada “cartografia das controvérsias”.

Respostas parciais, claro. Fica em aberto, por exemplo, a outra grande questão: como é que este tipo de abordagem epistemológica (e a sua enfâse num caráter quase artesanal do trabalho científico) se concilia com as práticas prevalecentes na investigação científica – com a cultura do “publish or perish” e o uso extensivo de indicadores bibliométricos; com a precariedade nas universidades e a projetificação do trabalho científico; com a ênfase nas “evidence-based policies”? A proposta das “ciências sociais fronêticas” de Flyvbjerg indica uma direção diferente em relação a estas práticas – o futuro dirá se esta diversidade representa a sua força ou a sua maior fraqueza.


Marco Allegra é investigador de pós-doutoramento no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Este artigo faz parte da Série “A utilidade das ciências sociais”

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