Da “projetificação” ou de como o presente está a ser adiado

Este é o terceiro post da série “A utilidade das Ciência Sociais

Por Roberto Falanga

Enquanto o mundo laboral continua preso a uma lógica fundada na precariedade estrutural, oximoro que revela a força do projeto biopolítico neoliberal, muitas ou mesmo todas as esferas da vida individual e coletiva parecem ser igualmente afetadas por esta lógica.

As consequências óbvias, mas nem por isso menos perversas, da precariedade são hoje tema de debate público em Portugal. Por exemplo, a recente constituição de uma rede nacional que junta as reivindicações de investigadores em regime de bolsa ou afins conseguiu pôr em cima da mesa um debate sério e robusto sobre o futuro da investigação neste país.

A precariedade irrompe não só no mercado do trabalho, como também no quotidiano. Ela é uma força silenciosa que se apropria de tudo, engolindo o presente e deixando-nos com nostalgia de um passado que nunca tivemos e com esperança de um futuro que vislumbramos de longe.

Se a precariedade desfaz o presente é porque a “projetificação” da vida se tornou parte constitutiva de uma estratégia sociopolítica mais ampla que atua em várias vertentes, mas com especial predileção pela transformação do futuro numa eterna potencialidade, ou seja, no adiamento permanente do presente.

Do latim ‘pro’ (frente) e ‘iacère’ (deitar), o verbo ‘projetar’ fala do ato de avançar, de alongar, de estender. O ‘deitar’ para a frente uma ideia contempla ponderação e planeamento, mas também criatividade, expectativas e desiderata. Esta última palavra, do latim ‘de’ e ‘sidera’, conta-nos histórias à procura de estrelas para adivinhações exatamente sobre o futuro. Serão ainda hoje os desejos a indicarem o caminho a quem projeta o seu futuro? Se nalguns casos projetar equivale à fascinante viagem de procura e descoberta, para muitos outros projetar transformou-se num jogo perverso de fuga ao presente, onde o potencial imaginado e desconhecido se cristaliza num déjà-vu da precariedade, num silogismo mortífero.

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“Coelho Atrasado” por António Dacosta, Estação do metro Cais do Sodré, Lisboa. Fonte: Wikipédia

É desta forma perversa de projetar que quero falar neste post. A “projetificação” da vida provoca um sentimento difuso de preocupação com a escassez de tempo, mas também com a escassez de visões de conjunto e de estratégias a longo prazo. É interessante notar como o termo preocupar, derivado do latim ‘pre’ (pré) e ‘occupare’ (ocupar), volta a indicar uma ação fora do presente, desta vez preventiva. Ocupamos um lugar (ou um tempo, neste caso) antes de lá chegarmos, antes de lá ter ocorrido o que poderá existir. A preocupação projeta-nos, enfim, outra vez num futuro imaginado.

Sempre que nos candidatamos a fundos de investigação, construímos cenários futuros do que ‘poderá vir a ser’. Quando a procura de fundos se torna incessante e o tempo gasto ultrapassa o tempo para a própria investigação, até o defensor mais convicto de que precarizar incentiva as pessoas a produzir mais deverá rever os seus axiomas de referência. Um exemplo de financiamento de apoio à investigação e inovação, onde universidades e centros de investigação desempenharam (e continuam a desempenhar) um papel importante, é o programa comunitário Horizon 2020, em que, até dezembro 2014, quase 75% dos candidatos foram entidades ligadas à investigação.

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Proporção de aplicações rejeitadas ao programa Horizon 2020. Fonte: Relatório da Comissão Europeia

Estes números podem indicar um interesse genuíno em criar novo conhecimento e novas parcerias. Mas também podem sugerir que o ‘mundo das candidaturas’ transforma particularmente os setores onde o desmantelamento dos sistemas nacionais de financiamento público tem tido mais efeitos e onde, portanto, a lógica dos fundos comunitários entra com mais força. Apesar de existência de financiamento público ser uma condição sine qua non da investigação, não se trata apenas duma questão financeira. A procura continuada de financiamentos já não é uma questão de simples projetação, mas sim de “projetificação” da investigação, onde a continuidade e a segurança das carreiras são substituídas pela contratação de curto-prazo e por uma certa miopia em relação à sustentabilidade do sistema académico.

A este respeito concordo só parcialmente com o meu colega Simone Tulumello quando, neste blogue, defendeu a falta de debate sobre o futuro da academia por causa da obsessão com o presente. Na minha opinião, o sistema de medição da produção científica que tem vindo a intensificar-se no presente não obscurece o futuro. Mas quando a medição faz parte de um quadro de precariedade, concorre para a dilatação e cristalização de um futuro procurado na investigação que, porém, em raros casos parece realizar-se.

O que temos criado com a “projetificação” da investigação? Nas ciências sociais ganhamos e terminamos muitos projetos, alguns bem-sucedidos, outros menos, alguns que contribuem para produzir novo conhecimento, outros menos novo, e em todo o caso constrangidos numa gaiola de regras que o meu colega Andy Inch descreveu eficazmente neste blogue.

E como gerimos o tempo pós-projeto? Alguns deixam rastos positivos, outros nem tanto, e por vezes ainda se levantam questões éticas quando não se cumprem as expectativas das comunidades envolvidas, devido, por exemplo, ao esgotamento dos financiamentos à investigação. E como aproveitamos a informação recolhida e elaborada? Nalguns casos sabemos como utilizá-la melhor (em outras candidaturas, por exemplo), noutros casos não temos verba suficiente para manter a base de dados ou o website abertos e acessíveis. E assim por diante. Esta forma de se projetar não representa uma oportunidade concreta para o futuro, mas sim a apologia de um presente que se adia ad infinitum.

A “projetificação” também entrou massivamente na lógica de governação. Muitas autarquias têm vindo a intervir na malha urbana recorrendo a fundos internacionais para compensar, em muitos casos, a escassez de recursos financeiros para intervenções de mais longo prazo. A galáxia destes financiamentos é ampla e com uma longa história.

À escala europeia, o Programa Urban Innovative Actions – UIA é um dos recém-chegados e, na sua primeira edição decorrida em 2016, financiou um total de 18 projetos sobre temas como pobreza urbana, integração de imigrantes e refugiados, emprego e transição energética. As ideias tinham de ser efetivamente inovadoras e as experiências-piloto financiadas deverão ter, espera-se, algum futuro. Trata-se, portanto, duma tentativa de iniciar políticas públicas a nível urbano sobre questões de importância crucial, pelo menos segundo as agendas externas, neste caso da União Europeia, que disponibilizam os fundos. Mas existirá um aproveitamento real das experiências-piloto que os fundos internacionais ajudam a implementar? Como garantir continuidade a longo prazo, caso esse seja um dos objetivos definidos?

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Número de candidaturas aos fundos da primeira edição do Programa UIA por país. Fonte: Programa UIA

Este gráfico mostra os países que recorreram aos fundos da primeira edição do Programa UIA. De que modo devemos ler estes dados? Como reflexo de uma nova energia direcionada para a inovação dos modelos de governação urbana ou antes como um “mapa do desespero” onde a falta de estado social é compensada através da “projetificação” (até) das políticas públicas?

Nas cidades, assim como na investigação e em outros inúmeros âmbitos das nossas vidas, o problema não são os projetos. O problema é a penúria, ou a falta de todo o resto. É um pouco como ter à disposição quadros de grande valor numa casa sem paredes onde os pendurar. Para dar sentido à “projetificação” como estratégia sociopolítica (certamente a ação a longo prazo mais bem-sucedida das últimas décadas), precisamos de suspender o mantra do futurível, que de facto esvazia de substância o futuro, e voltar a debater as condições do presente. Seria saudável, enfim, que da (pre)ocupação do futuro possamos transitar quanto antes para a ocupação do presente, dos nossos espaços, dos nossos direitos.


Roberto Falanga é investigador de pós-doutoramento no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Este artigo faz parte da Série “A utilidade das ciências sociais”

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