Por Luís Balula
Alguns dias após a eleição presidencial norte-americana de 8 de Novembro de 2016, o Oxford Dictionaries elegeu ‘pós-verdade’—post-truth—como a palavra do ano. Devo dizer que foi a primeira vez que ouvi a palavra; a primeira vez que me confrontei com o conceito. No entanto, ele existe há pelo menos 25 anos, tendo sido usado originalmente em referência à manipulação da cobertura mediática do escândalo Irão-Contra—administração Reagan—e da primeira guerra do Golfo—administração George Bush—e, mais tarde, em referência às declarações enganosas que levaram à invasão do Iraque—administração George W. Bush.
Actualmente, o conceito ganhou particular relevância, tendo-se tornado de uso corrente no contexto das recentes eleições norte-americanas, que elevaram a fasquia do abuso da verdade a novos limites. Curiosamente, ou talvez não, também no quadro de mais uma administração republicana.

De acordo com a definição do Oxford Dictionaries, ‘pós-verdade’ é um adjectivo que “qualifica as circunstâncias em que os factos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que o apelo à emoção e às crenças pessoais“. Frequentemente associado ao substantivo ‘política’ na expressão ‘política pós-verdade’—post-truth politics—, ele é usado para exprimir a condição de um momento histórico—que é o nosso—em que a opinião pessoal e o facto científico se confundem, não só na formação de atitudes individuais e comportamentos sociais, como também na tomada de decisão sobre orientações políticas.
A origem epistemológica da noção de ‘pós-verdade’—hoje associada a um tipo de política capaz de rejeitar evidências científicas quando estas contradizem dogmas sectários—radica-se na corrente intelectual que exprime e define a condição relativizante do pós-modernismo, em que “tudo é relevante” e em que “Shakespeare e o Pato Donald têm igual valor“. Efectivamente, no actual universo mediático e nas redes sociais tudo é relativo e igualmente “i-relevante”—há histórias a ser fabricadas a todo o momento, há factos e evidências para todos os gostos—e não existe uma verdade estável, a não ser aquela que cada pessoa constrói a partir do mosaico de informação a que acede e do ecosistema mediático que escolhe habitar. Como Barack Obama afirmou recentemente numa entrevista à revista New Yorker, no novo universo mediático dominado pelas redes sociais,
tudo é verdade e nada é verdade (…). Numa página do Facebook a explicação das alterações climáticas de um prémio Nobel surge exatamente igual à negação das alterações climáticas de alguém pago pelos irmãos Koch. E a capacidade de disseminar a desinformação [e] teorias de conspiração delirantes (…) acelerou de tal forma que não só polarizou extremamente o eleitorado como chega até a tornar difícil manter uma conversa normal.
Na tradição iluminista, de que somos herdeiros, a esfera pública—ou, se quisermos, o lugar onde a opinião pública se torna, potencialmente, ação política—constitui um dos elementos essenciais da democracia participativa tal como hoje a entendemos. O filósofo e sociólogo alemão Jurgen Habermas, que desenvolveu o conceito, sugeriu que os meios de comunicação de massas têm particular importância na formação e manutenção da esfera pública. No entanto, advertiu que constituem também um veículo privilegiado de controlo dos fluxos de informação—por exemplo, ao seleccionar aquilo que constitui, ou não, notícia—e podem facilmente ser usados para manipular a opinião pública e alterar comportamentos sociais.
Em 1992, Habermas referia-se à imprensa escrita e televisiva, produzida por jornalistas e profissionais da comunicação ainda relativamente enquadrados por uma ética reguladora do meio profissional. Hoje, no universo mediático online das redes sociais, a fronteira entre cobertura jornalística profissional e conteúdos gerados por utilizadores já quase não existe. E se por um lado esta grande abertura pode significar uma esfera pública mais democrática, de livre acesso a um leque mais amplo de pontos de vista e de fontes de informação, permitindo a criação de comunidades de interesses e alianças estratégicas, por outro lado a esfera pública virtual está igualmente a contribuir para uma cultura em que factos e ficções, evidências e opiniões, se combinam em formações variáveis e aleatórias.
Neste novo ambiente cultural, mediado pelos fluxos de comunicação da chamada web 2.0, falta-nos sobretudo uma base de certezas estáveis—um “patamar de factos”—capaz de constituir um referencial comum para uma acção efectiva em questões fundamentais. Ainda nas palavras de Obama, na mesma entrevista:
Idealmente, em democracia, todos concordariam que as alterações climáticas são consequência do comportamento humano, já que é isso que 99% dos cientistas nos dizem. E então teríamos um debate sobre os meios para resolver o problema. Foi assim que nos anos setenta, oitenta e noventa, os Republicanos apoiaram o Clean Air Act e avançaram com uma solução de mercado para a chuva ácida, em vez de prosseguirem uma abordagem de comando e controlo. Discutiam-se os meios, mas havia um patamar de factos a partir do qual se podia trabalhar. Agora, muito simplesmente, isso não existe.
A opinião pública é hoje alimentada por múltiplas narrativas sobre os mesmos factos mas dirigidas a públicos diferenciados, muitas delas contraditórias e competindo pelo estatuto de autenticidade. As redes sociais são verdadeiras “câmaras de eco” destas narrativas, ampliando o impacto na esfera pública quer de informação fidedigna, quer de desinformação e propaganda facciosa.
“A minha opinião vale mais que os factos!” parece ser o mote da nova realpolitik—e basta possuir um telemóvel, uma doutrina musculada e uma conta no Twitter para conseguir propagá-la. A partir daí é uma questão de números, a quantidade de “seguidores” determina o grau de factualidade da opinião. Tal como nas crenças das religiões dogmáticas, quantos mais são os fiéis, mais a fé na verdade da crença é confirmada pelos grandes números. E quando os números são suficientemente grandes, opiniões e crenças transformam-se, efectivamente, em factos alternativos que justificam decisões e orientações políticas.
De acordo com o académico britânico Jayson Harsin, a emergência deste novo “regime pós-verdade” deve-se à convergência de uma série de factores. São eles:
- A fragmentação dos meios de comunicação de massa centralizados da era moderna, que tendiam a difundir o mesmo leque de notícias, repetindo-se uns aos outros;
- A proliferação de conteúdos gerados por utilizadores e a escassez de autoridades fidedignas em que todos confiem, capazes de descriminar o que é verdade e o que é mentira;
- Um novo tipo de comunicação de massas profissional informada pela ciência cognitiva, que procura influenciar a percepção de determinados grupos populacionais—microtargeting—, inclusivamente através do uso estratégico de rumores e falsidades;
- Os algoritmos que governam o que aparece nos motores de busca de cada utilizador, baseados nas preferências individuais e não necessariamente no que é factual;
- A sobrecarga de informação—information overload—que leva as pessoas a ignorar notícias importantes mas que não lhes dizem directamente respeito;
- Um ambiente político e social inquinado por escândalos e suspeitas de corrupção e fraude, que leva ao descrédito das instituições; e ainda
- Um jornalismo que tende cada vez mais para a difusão de notícias e reportagens sensacionalistas estilo tablóide e/ou de pura propaganda sectária.
Tudo isto são más notícias para a esfera pública. O projecto iluminista possibilitou a transição de um sistema de valores baseado na fé religiosa e no direito divino para um outro sistema baseado na razão e na universalidade da objectividade científica. Ao mesmo tempo, atribuiu ao indivíduo a responsabilidade de pensar e julgar por si próprio acerca de factos empíricos e valores morais.
Por outro lado, a crítica pós-estruturalista e pós-moderna dos últimos trinta anos é unânime ao considerar que o iluminismo introduziu diversas formas de “imperialismo cultural“, ao substituir uma crença religiosa por uma nova crença, também ela essencialista e dogmática, na objectividade científica e no progresso tecnológico. O “relativismo cultural” da pós-modernidade, no entanto, apesar de procurar acomodar os diversos posicionamentos identitários da sociedade contemporânea—ou precisamente por causa disso—, determina uma hiper-fragmentação do corpo político-social e, consequentemente, da esfera pública. E, neste aspecto, chegámos a um impasse difícil de ultrapassar.
Contrariando este relativismo fragmentador, as recentes formações de poder ditas “populistas”, e que têm vindo a ocupar o lugar das reivindicações de classe deixado vazio pela esquerda clássica, encontraram, entretanto, o seu tema unificador na globalização. Questões como a emigração e os tratados de comércio entre grandes blocos económicos constituem um referencial comum—um “patamar de factos”—capaz de mobilizar o descontentamento não apenas de chauvinistas e fanáticos mas também de largos sectores da classe média das democracias ocidentais que vêem na globalização uma ameaça à soberania das nações, à diversidade das culturas locais, às oportunidades de trabalho e aos direitos sociais conquistados desde o pós-guerra.
A impensável vitória de Trump, o inesperado Brexit, o crescente poder da oligarquia de Putin e a ascensão da direita radical na Europa são, no entanto, fenómenos indissociáveis dos novos regimes de pós-verdade, que se infiltraram na democracia e que parecem anunciar o advento de uma nova era anti-iluminista e pós-democrática. São também fenómenos que nos levam a interrogar o que leva um número significativo de pessoas, supostamente cultas e inteligentes, a rejeitar factos acerca dos quais há um alargado consenso científico.
Procurando explicar esta questão, sociólogos americanos têm vindo a conduzir estudos que permitem concluir que as pessoas seleccionam as notícias que confirmam aquilo em que já acreditam e consideram mais relevantes os fatos que corroboram as suas opiniões. Quando os fatos contrariam as suas opiniões, elas não negam necessariamente os fatos, mas tendem a minimizá-los, dizendo que são menos relevantes.
Dada a actual profusão de comunicações científicas, muitas delas contraditórias, os factos da ciência são hoje usados num confronto pela supremacia cultural, que passa pela manipulação e controlo da opinião na esfera pública. Determinadas conclusões científicas—por exemplo sobre alterações climáticas, direitos humanos ou segurança nuclear—estão cada vez mais associadas a afiliações políticas ou sociais. No entanto, estas são matérias demasiado importantes para estarem sujeitas a critérios de opinião ou preferências partidárias. Quando o que está em causa é a possibilidade ou não de um futuro viável para a humanidade e para o planeta, há factos e verdades que são universais e incontornáveis.
Para refutar a deriva totalitária dos regimes da pós-verdade, cumpre a investigadore/as e cientistas, mas também a jornalistas e repórteres, encontrar formas de veicular mais efetivamente essa mensagem.
Luís Balula é arquitecto, urbanista e investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
E x c e l e n t e !!!
Bem isso mesmo
GostarGostar