“Mãe, porque é que as pessoas não bebem leite de porca?”: da histórica invisibilização dos animais

Por: Maria Inês Antunes

Em setembro de 2024, com 3 anos, a minha filha Alice fez-me repensar todo o sistema alimentar para tentar encontrar a razão para os humanos só beberem leite de herbívoros (vaca, ovelha, cabra, burra e búfala) na cultura ocidental. A primeira razão que considerei foi o valor nutricional, mas essa explicação cai por terra quando consideramos o facto de que o leite de porca é bastante rico em gordura e proteína (mais até do que o de vaca). Um conjunto diversificado de factores podem influenciar esta decisão: as glândulas mamárias das porcas são diferentes das da vaca e isso faz com que as máquinas usadas hoje em dia para extracção do leite sejam inúteis; tirar leite manualmente às porcas seria impraticável (em pequena escala há pelo menos dois relatos de ordenha manual de porcas: um nos Países Baixos, para se tentar produzir queijo a partir do leite, e outro na China, para se tentar comprovar o valor nutricional do leite); a porca produz menos quantidade de leite em cada lactação; o porco produzido actualmente é, regra geral, para consumo de carne; o porco é um animal rejeitado para consumo em algumas religiões e grupos sociais.

O que têm estas razões em comum? Uma visão economicista e, por isso, utilitarista do porco.

Da coisificação à categorização: a invisibilização como resposta

De acordo com Cole e Stewart (2014: 16), os “animais não-humanos são primeiramente definidos e categorizados de acordo com o tipo de relação que têm com os humanos”. De uma forma simplista, podemos dizer que existem três categorias de animais de acordo com a sua utilidade para os humanos: os animais de companhia, os animais para consumo (seja como alimento, para entretenimento ou para experimentação) e os animais selvagens.

Os humanos são expostos desde a infância a imagens do porco enquanto alimento, perpetuando a coisificação do animal, a manutenção da hierarquia entre humano e porco e a categorização do porco enquanto animal para consumo.

DeMello (2012: 12) explica que, desde a revolução neolítica, os humanos trabalham com os animais. Milhares de anos após a domesticação do cão enquanto parceiro de caça, os grandes ruminantes passaram a ter um papel essencial nas sociedades humanas, enquanto fonte de trabalho, carne e leite.

Hoje em dia, o porco é dos animais mais usados em todas as áreas da sociedade, desde alimentação (humana e animal), cosmética, roupa e acessórios, cerâmica, medicina (tanto em investigação como medicação), lubrificantes e até explosivos.

Tal como acontece com muitas outras espécies, existe em todas as áreas uma invisibilidade do porco, que se torna, como disse Carol J. Adams (2010), um ‘referente ausente’ (“o ‘referente ausente’ é aquilo que separa o comedor de carne do animal e o animal do produto final”, tradução livre da autora).

Apesar de não utilizarmos em português outra palavra para o designar (como em inglês passamos de ‘pig’ para ‘pork’), muitas vezes o porco é representado por uma parte do seu corpo (‘pezinhos’ ou ‘túbaros’), por um corte ou confecção específica de uma parte do seu corpo (‘torresmo’, ‘presunto’ ou ‘toucinho’) ou por denominações puramente culinárias que retiram totalmente o animal do imaginário (‘gelatina’, ‘salsicha’ ou simplesmente ‘carne’ sem qualquer detalhe sobre a espécie animal).

Esta invisibilidade do animal é referida por alguns autores como uma contradição e é chamada “paradoxo da carne”. Aqui foi ilustrada de uma forma prática por um jornalista que decidiu dedicar alguns anos de vida a aprender a ser cozinheiro profissional:  “(…) as pessoas não querem saber exactamente o que é a carne. Para o meu vizinho (e os meus amigos, e também para mim, durante a maior parte da minha vida), a carne não é carne, mas uma abstracção. As pessoas não pensam no animal quando usam a palavra: pensam num elemento de uma refeição” (Bufford, 2012).

A carne assumiu um estatuto simbólico na cultura ocidental e, por isso, não é surpreendente a forma como as crianças vão também integrando estas invisibilidades (Policarpo et al., 2018: 207).

Cultura popular e infância: novas formas de invisibilização

Às crianças é ensinado que devem sentir empatia pelo outro, mas para isso acontecer é necessária compreensão, evitando a antropomorfização. Isso pode explicar porque é que mesmo existindo empatia da parte de quem é espectador assíduo da personagem Porquinha Peppa, seja adulto ou criança, existe uma total dissonância cognitiva criada por essa antropomorfização da porca (Figura 1).

Segundo Policarpo et al. (2018: 212, tradução livre da autora), “Uma ligação emocional próxima com os animais é encorajada em tenra idade (através de peluches fofinhos, representações engraçadas em personagens de filmes e outros elementos da cultura popular)”. No entanto, o animal continua a ser um ‘referente ausente’, na medida em que as crianças acompanham um animal antropomorfizado que se comporta como elas, como é o caso da Peppa. Dessa forma, os espectadores não precisam de fazer nenhuma associação ao comportamento natural dos porcos, porque na realidade a Peppa representa-os a eles: humanos-espectadores.

Figura 1 Alice a ler um livro da Porquinha Peppa (Maio, 2023, foto da autora)

Neste episódio em particular, Peppa prepara, juntamente com o seu irmão e pai, uma gelatina para oferecer à mãe que esteve o dia todo a trabalhar. O episódio termina com a imagem da Peppa e sua família a comer a gelatina. Ao omitir-se a origem da gelatina, que é tradicionalmente de origem animal, a maior parte das vezes de porco, cria-se uma desconexão identitária: uma gelatina é “só” uma gelatina, independentemente de ser originária de um porco, isto é, a espécie destas personagens infantis. Tem lugar desta forma uma omissão intencional – a que Eisner (1985) chama “currículo nulo” – e que apresenta os alimentos no seu estado final (como vão ser consumidos), sem existir uma apresentação de como a indústria agroalimentar e todas as actividades inerentes funcionam, impedindo as crianças de aprender sobre estes temas.

Esta representação está presente tanto em desenhos animados como na literatura infantil. Cole e Stewart (2014: 21) explicam que para os leitores mais novos a incongruência não existe, pois já estão habituados a esta negação (ou omissão) e isso já decorre com naturalidade, não sendo na maioria das vezes questionada. Há, no entanto, um horizonte de esperança. Quando as crianças crescem numa cultura de empatia para com todas as espécies, começam elas mesmas a questionar. Questões essas que são muitas vezes incómodas para os adultos. Compete-nos a nós, adultos, ter a coragem de lhes dar uma resposta.

Maria Inês Antunes desenvolve iniciativas na área da sustentabilidade alimentar, através do seu projecto Kitchen Dates, e é aluna do curso de pós-graduação Animais e Sociedade do ICS-ULisboa, coordenado por Verónica Policarpo. Este texto foi produzido no âmbito do módulo Animais, Representações e Narrativas, sob a coordenação de Jussara Rowland. mipantunes@gmail.com

Renewable Energies: The challenge of sustainability in peripheral communities in Brazil

Por: Armindo Teodósio, Thiago Silva, Andressa Nunes, Melina Gomes

Several activities that make up contemporary human life, whether in central societies with concentrated wealth or in peripheral regions, are compromised without access to quality electricity. For some, it is now a matter of renewing the energy matrix that makes our societies operate, due to the enormous challenges that humanity faces in the age of climate change. For others, it is a matter of universalizing access to electricity as a central element of quality of life within the contemporary way of life that we replicate in different regions of the planet. One pursuit does not exclude the other. When they converge, we are moving towards initiatives that address climate change within what we call a just transition, climate justice and/or environmental anti-racism. Our article addresses these challenges in the Brazilian context.

Discussing energy from the Brazilian perspective, means discussing the continuity of energy services. Issues related to the availability and quality of electricity are daily concerns for the Brazilian people in different regions of the country. If, until a few years ago, the difficulty of accessing energy and the frequent interruption of its supply were a major problem for peripheral communities throughout our territory, the energy crisis is currently manifesting itself in the city with the largest GDP in the country, the city of São Paulo, which struggles with frequent and prolonged power outages due to extreme climate events. We need to advance both in the universalization of access to energy in our country and in the provision of energy security, in addition to further advancing the supply from less polluting matrices and those that generate less negative impacts on the environment.

One of the positive aspects of the Brazilian energy matrix is ​​that, when compared to other nations, it places us in a prominent position in terms of lower impacts on the environment. However, environmental complexity requires us to be increasingly critical and demanding with the solutions we seek. This is also evident in the supply of electricity. An example of this point is the debate and weighing of the Belo Monte alternative as a strategy to provide electricity to the North region and to support energy generation in the country. Even in a less polluting and degrading matrix, that derived from hydroelectric plants, when Belo Monte is brought into the debate, nothing becomes evident or clear in terms of sustainability. On the contrary, the disservice to sustainability becomes evident in a powerful way.

In the Brazilian context, discussing the quality of energy for homes and families is not a new topic. Nor is the discussion about what the future of energy will be like for transportation, for instance, which is the sector which is one of the sectors that consumes the most energy in Brazil and in the world – about 28% of all the energy we produce. What is relatively new are the forms of energy consumption that will be available in the face of population growth and consumption challenges.

An interesting point is that talking about the future of energy is not only about how large energy concessionaires will guarantee the uninterrupted supply for municipalities, but also about discussing small-scale renewable energy production that can supply rural areas. It is about treating the service provided by large distributors as complementary and not just exclusive. It is about pointing out, perceiving and following possible paths to guarantee electricity consumption for our families.

In different parts of the world, movements based on so-called Community-Based Renewable Energy, with different local governance arrangements, have emerged. These experiences seek to materialize in the daily lives of communities and cities the access to and generation of energy on a sustainable basis, transforming the general understanding of societies about strategies for a transition towards sustainable ways of life. The governance of these projects, as a rule, activates local social capital as an asset for raising awareness, engaging and acting on the part of citizens in creating local conditions for access, generation, and distribution of energy on a sustainable basis.

These experiences serve as inspiration for us to think about and fight for community and grassroots strategies to expand the  access, generation and distribution of energy on a sustainable basis  in Brazil. By studying these experiences, we can also learn and try to overcome important challenges related to cultural and social barriers, which increase when we talk about effectively building successful community-based renewable energy experiences in the country. These challenges are linked to gender, ethnic-racial issues and the vulnerability of communities located on the periphery of large centers that concentrate infrastructure, political and economic power and quality of life in the territories. Thinking about the expansion of renewable energy without considering inequalities, as well as the fallacies and myths behind some supposedly sustainable proposals for energy generation, is to build alternatives that will further restrict access to quality energy and deconstruct the foundations for a transition towards sustainability.

In countries like Brazil, marked by the important and rich presence of black people in the social, cultural, political and economic history of the nation, but unfortunately in a condition of enslavement, exploitation, degradation, silencing and erasure of their identities and cultures, inequalities in access to energy, especially the energy produced on a sustainable basis, are abysmal. Proof of this finding is that the lack of access to quality energy in the country is marked by race, territoriality and gender: it is recurrently present in quilombola territories, indigenous territories and in urban and rural spaces with a prevalence of black communities.

Figure 1 Quilombola Territory in Brumadinho, Minas Gerais, Brazil.

Source: Authors Archive.

Figure 2 Indigenous Territory in Brumadinho, Minas Gerais, Brazil.

Homem e mulher posando para foto

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Source: Authors Archive.

Finally, in the rush to achieve energy transition, in which policies, programs and projects reorder the allocation of economic resources and generate an increase in political and social capital, especially in terms of legitimizing economic and productive initiatives, there is misinformation and ignorance about the effective contribution to sustainability in expanding, for example, the fleet of electric cars and waste incineration. There are important issues to be addressed and debates about “greenwashing” when the term energy recovery is adopted to try to give a sustainable character to large-scale waste incineration activities, which could and should be reinserted into the economy through more and better circular economy strategies. All of this affects the public debate on an effectively renewable and sustainable energy production system, making it even more complex and “swampy”.

In the Brazilian context, there is a lack of a more robust, effective and widely disseminated strategy for the design, implementation and evaluation of public energy policies based on community-based action and the effective promotion of sustainability, beyond the false, unsustainable and ecologically incorrect solutions of promoting renewable energy. There is also a lack of greater sensitivity and reorientation of the business sector towards sustainable energy. It is necessary to create space to bring together the city’s initiatives, draw the attention of city halls and state and federal governments to the issue, and invite the population to access consistent information on the contribution (or not) of the range of energies that are said to be renewable. Discussing the future of energy means thinking about equality in terms of just economic and social development. It is preparing the population for the challenges that lie ahead and that will soon have an impact  in contexts in which disasters and catastrophes tend to be more frequent due to climate change.

Armindo Teodósio (Téo), Thiago Silva, Andressa Nunes, Melina Gomes are Researchers-Extension Workers of the Knowledge and Innovations for Sustainability Extension Program (SABIÁS). They belong to the Center for Research in Ethics and Social Management (NUPEGS), of the Graduate Program in Administration, of the Pontifical Catholic University of Minas Gerais. The author Thiago Silva is a Visiting Researcher at the Institute of Social Sciences of the University of Lisbon and his research contemplates possibilities and risks in community-based renewable energies in Brazil. The authors would like to thank the research for funding and the approval of research grants from the Minas Gerais Research Foundation (FAPEMIG) and the National Council for Scientific and Technological Development (CNPq). 

E-mail: thiago.silva@academico.ufpb.br

Risco Ambiental e Relocalização: O Futuro Incerto de Duas Povoações Costeiras

Por: Michelle Dalla Fontana

Como reagiria se lhe dissessem que precisa de abandonar a sua casa devido a riscos ambientais? Esse é o dilema enfrentado pelos habitantes de Pedrinhas e Cedovém, duas pequenas povoações situadas na costa noroeste de Portugal.

Originalmente formadas como comunidades piscatórias, as duas povoações seguiram trajetórias de desenvolvimento distintas ao longo do final do século XX. Pedrinhas, que mantém os seus edifícios bem conservados, conta atualmente com cerca de 40 habitações sazonais e 7 abrigos de pescadores. Já Cedovém, localizada 300 metros mais a sul, evoluiu para uma área de construção mais densa, tornando-se um centro de pesca ativo. Hoje, abriga aproximadamente 49 habitações, predominantemente segundas residências, embora cerca de 12 famílias ainda vivam ali permanentemente. Além disso, dispõe de 7 restaurantes, 9 abrigos de pescadores, e cerca de 50 anexos.

Ambas as povoações estão localizadas na duna primária, próximo da costa, numa área sujeita a rápida erosão. Essa realidade tem sido uma crescente preocupação para as autoridades responsáveis que enfrentam o desafio de lidar com os riscos associados ao avanço do mar.

A person walking on a beach

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Figura 1: Lado norte de Cedovém, Novembro 2023, Foto do autor.

Em junho de 2023, o município de Esposende submeteu a consulta pública o “Projeto de Regeneração Ambiental e Valorização das Atividades Tradicionais de Pedrinhas e Cedovém”, propondo intervenções destinadas a garantir a gestão sustentável das zonas costeiras e a proteção das populações em risco.

Centrado na sua primeira fase em Cedovém, o projeto prevê a demolição de todas as habitações e infraestruturas. No entanto, a atividade piscatória será mantida, e os restaurantes serão relocalizados para o interior, em estruturas de madeira amovíveis. O projeto ainda inclui alimentação artificial da praia, recuperação das dunas, passadiços de madeira e a renovação da Avenida Marginal.

Contudo, o plano não esclarece o destino das famílias que ainda residem permanentemente em Cedovém. O Presidente da Câmara garantiu, em reuniões com os moradores, que ninguém ficará sem casa e que a autarquia está a adquirir terrenos para a construção de novos apartamentos. Ainda assim, a proposta gerou forte oposição de várias partes interessadas.

A resistência à relocalização planeada não é incomum e, muitas vezes, está enraizada no apego das pessoas ao lugar. No entanto, cada caso apresenta circunstâncias únicas, e compreender esses fatores é fundamental para desenvolver políticas de adaptação às alterações climáticas que sejam justas e eficazes.

Para compreender essa resistência, passei seis semanas em Cedovém, alojado numa das casas previstas para demolição. Observei como a povoação é vivenciada, realizei entrevistas, identificando-me como investigador, e testemunhei os efeitos da erosão costeira, agravados por eventos extremos como as tempestades Bernard e Celine (outubro-novembro de 2023). O que encontrei foi uma interação complexa  de fatores sociais e estruturais, que leva muitas pessoas a recusarem a relocalização, indo além do simples apego ao lugar.

A house on a rocky shore

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Figura 2: Cedovém, Outubro 2023, Foto do autor.

Os habitantes de Pedrinhas e Cedovém percecionam o risco de forma diferente das autoridades. Embora reconheçam algum perigo, muitos — principalmente pessoas idosas — sentem-se seguros, confiantes na sua experiência de viver ali sem registo de incidentes graves. Essa familiaridade pode levá-los a subestimar a ameaça, acreditando que a erosão ocorre de forma lenta e previsível. Dependendo da proximidade das suas casas à linha de costa, alguns não sentem urgência em relocalizar-se ou sequer consideram essa hipótese. Em contraste, a Agência Portuguesa do Ambiente e o município avaliam o risco de forma uniforme em toda a área, considerando nos seus relatórios a possibilidade de eventos extremos capazes de causar devastação súbita. Com base nesse entendimento, defendem a necessidade de medidas radicais. Essa diferença de perspetiva cria tensão entre a experiência da comunidade e o planeamento oficial, influenciando a forma como as pessoas percecionam a relocalização.

Outro fator relevante é a idade avançada de muitos residentes. Embora reconheçam que as condições podem deteriorar-se, não veem isso como uma preocupação imediata, mas sim um desafio para as gerações futuras. Para quem tem um horizonte de vida mais curto, cenários climáticos projetados para 2050 parecem distantes ou irrelevantes. Como consequência, a relocalização preventiva pode ser percebida como desnecessária ou até absurda.

Além disso, muitos entrevistados expressaram um forte sentimento de injustiça, pois veem Pedrinhas e Cedovém desprotegidas, enquanto áreas próximas, como a Praia de Ofir, beneficiaram de medidas de proteção. Situada dois quilómetros a norte de Pedrinhas, Ofir tem moradias residenciais, três torres de apartamentos de quinze andares e um hotel. Embora esteja sobre a duna, numa zona de risco, nem o Programa da Orla Costeira nem o município preveem intervenções de relocalização. Na prática, os custos de compensação necessários para realojar ou compensar os proprietários tornariam essa medida inviável para a administração local. Há também evidências de que os esporões construídos a norte de Pedrinhas e Cedovém agravaram a erosão, interrompendo o fluxo natural de sedimentos e acelerando a degradação costeira. Isso reforça a desconfiança no governo e o sentimento de injustiça. Assim, a relocalização é entendida como uma continuação de injustiças históricas, levantando questões sobre até que ponto os erros do passado devem ser considerados na formulação de políticas de realojamento.

Figura 3: Torres de Ofir, Foto do autor.

O caso de Pedrinhas e Cedovém ensina-nos algumas lições. O desalinhamento entre a perceção de risco da comunidade e a avaliação dos peritos gera tensões. Isso não se resolve apenas com educação e informação, mas exige envolvimento ativo das comunidades no planeamento, garantindo que as suas preocupações sejam integradas. A composição demográfica, especialmente a presença de residentes mais idosos, influencia a resistência à mudança. Modelos de relocalização geracional ou parcial, que permitem uma transição gradual, podem ser uma solução viável, sobretudo em países como Portugal, onde o envelhecimento populacional é um fator relevante. Por fim, a resistência à relocalização intensifica-se em comunidades com histórico de discriminação ou cuja vulnerabilidade resulta não só de fatores ambientais, mas também de políticas falhadas de proteção costeira, urbanização e habitação. Reconhecer essas responsabilidades é fundamental para garantir que as práticas de relocalização sejam justas e equitativas.

Michele Dalla Fontana é investigador pós-doutoral MSCA (Marie Skłodowska-Curie Actions) na Wageningen University. A sua investigação recente foca-se nos processos de retirada planeada e na relação entre mobilidade humana e incêndios florestais em Portugal, contribuindo para a adaptação às alterações climáticas na Europa.

Incêndios, Sensacionalismo e Invisibilidade: como os media ignoram as causas estruturais de Pedrógão Grande

Por: João Carlos Sousa

O incêndio de Pedrógão Grande, ocorrido em junho de 2017, foi um dos mais devastadores da história recente de Portugal, resultando na morte de 66 pessoas e na destruição de milhares de hectares de floresta. A tragédia capturou a atenção dos media portugueses durante duas semanas, com uma cobertura intensa que acompanhou o desenvolvimento da crise, os esforços de combate ao fogo e as consequências humanas e materiais. No entanto, um aspeto crucial ficou à margem do debate mediático: as causas estruturais dos incêndios florestais, como as alterações climáticas (AC) e a desertificação do interior rural português.

A Cobertura Jornalística: Emoção e Sensacionalismo

A análise de 427 notícias, publicada no artigo “Anatomia de uma Catástrofe Mediática: Pedrógão Grande e a política da invisibilidade,” revelou que a cobertura mediática seguiu um padrão trifásico. Nos primeiros dias, houve um foco intenso na descrição do desastre em si: imagens dramáticas, relatos de testemunhas e declarações de autoridades. Nos dias seguintes, a narrativa mediática deslocou-se para a identificação das vítimas e as consequências humanas, privilegiando um tom emocional e sensacionalista. Por fim, na última fase da cobertura, a atenção voltou-se para as responsabilidades políticas e jurídicas, deixando para trás qualquer aprofundamento sobre os fatores ambientais e sociais subjacentes à tragédia.

Figura 1 – Judite Sousa a realizar direto junto do corpo de uma das vítimas; Fonte: Captura de imagem do direto ocorrido no Jornal Nacional da TVI de 18 junho 2017

Este padrão de cobertura reflete um modelo de jornalismo de crise que prioriza o impacto imediato e a dramatização dos eventos, em detrimento da exploração das suas causas profundas. Como apontam estudos internacionais (cf. Houston et al, 2012; Crow et al, 2016; Lock et al., 2024), os media tendem a focar-se no que é visível e imediato, deixando de lado explicações estruturais que exigem mais contexto e análise especializada. Esta abordagem contribui para a superficialidade do debate público (Pantti e Wahl-Jorgensen, 2007) e limita a capacidade da sociedade de enfrentar desafios ambientais de longo prazo.

O Silêncio sobre as Alterações Climáticas e o Despovoamento Rural

Um dos aspetos mais preocupantes da cobertura mediática de Pedrógão Grande foi a ausência de uma discussão sobre as alterações climáticas (AC) e o despovoamento do interior rural português. Apesar do crescente reconhecimento científico de que os incêndios florestais estão a tornar-se mais frequentes e severos devido às AC, esta ligação raramente foi mencionada nas reportagens analisadas. Concomitantemente, a desertificação do interior e o abandono das práticas agrícolas tradicionais, que contribuem para o aumento da biomassa combustível, foram ignorados na narrativa mediática.

Os incêndios florestais não são apenas fenómenos naturais, mas também consequências de decisões políticas e económicas. O abandono do interior, a falta de gestão florestal e a crescente intensificação de eventos climáticos extremos criam condições ideais para a propagação de grandes incêndios. No entanto, ao concentrar-se quase exclusivamente nas consequências imediatas, a cobertura mediática negligenciou a necessidade de debater políticas públicas de prevenção e mitigação dos riscos associados aos incêndios.

Este fenómeno não é exclusivo de Portugal. Estudos sobre a cobertura de desastres naturais noutras latitudes demonstram que os media frequentemente falham em contextualizar os eventos dentro de processos mais amplos, optando por um enquadramento que privilegia o imediato e o emocional. No caso português, esta abordagem reforça uma cultura de invisibilidade das questões ambientais e territoriais, dificultando a implementação de políticas eficazes para mitigar futuros incêndios. Sem uma compreensão pública abrangente dos fatores que contribuem para os incêndios, as transformações estruturais necessárias ficam relegadas para segundo plano.

Figura 2 – Carros carbonizados apanhados pelo incêndio; Fonte: Imagem divulgada pela edição da Revista Sábado de 24 maio de 2021

Outro fator importante é o impacto económico da falta de cobertura aprofundada. O turismo e a agricultura, setores essenciais para o interior do país, sofrem diretamente com a devastação dos incêndios. A ausência de um debate mais alargado sobre políticas de reflorestação sustentável, incentivo à agricultura regenerativa e reocupação do interior rural contribui para a perpetuação de um ciclo de abandono e degradação ambiental. Sem uma abordagem mais estruturada nos media, a tomada de decisões políticas fica à mercê da pressão mediática de curto prazo, sem respostas efetivas para problemas sistémicos.

O Papel dos Media na Transformação do Debate Público

A cobertura jornalística de crises como a de Pedrógão Grande tem implicações significativas na forma como o público e os decisores políticos percebem os riscos ambientais. Se os media não abordam as causas estruturais dos incêndios florestais, torna-se mais difícil gerar um debate informado e impulsionar as mudanças políticas necessárias. O papel dos jornalistas vai além de reportar factos: é também sua responsabilidade contextualizar os acontecimentos e contribuir para uma compreensão mais aprofundada dos problemas socioambientais.

Algumas iniciativas jornalísticas internacionais têm demonstrado que é possível abordar desastres naturais de maneira mais abrangente. Projetos de jornalismo de dados, por exemplo, têm explorado a relação entre incêndios ou inundações e AC, utilizando mapas interativos e análises estatísticas para ilustrar padrões e tendências. Um bom exemplo inclui as investigações do projeto “Boomtown, Burntown” da ProPublica. Estas iniciativas demonstram que uma abordagem mais aprofundada e baseada em dados pode ajudar a compreender melhor os incêndios e a tomar medidas eficazes para preveni-los.

Neste sentido, os media podem e devem desempenhar um papel educativo, informando a população sobre práticas de prevenção e adaptação às novas realidades climáticas. A comunicação de risco e a sensibilização para medidas de mitigação são fundamentais para reduzir o impacto dos incêndios. Jornalistas especializados em ambiente e ciência poderiam acrescentar valor à cobertura destes eventos, proporcionando uma análise mais informada e com menor pendor sensacionalista.

Outro aspecto relevante é o papel das redes sociais digitais na disseminação de informação. Embora os media tradicionais sejam fundamentais para a construção da agenda mediática, as redes sociais ampliam e moldam a forma como a informação circula e é percecionada pelo público. A rápida disseminação de imagens e vídeos pode reforçar a narrativa emocional e sensacionalista, mas também oferece oportunidades para um jornalismo mais colaborativo e investigativo. Projetos de fact-checking e análises aprofundadas podem contribuir para uma melhor compreensão dos fenómenos e incentivar o envolvimento cívico na mitigação dos riscos ambientais.

A tragédia de Pedrógão Grande expôs não apenas a vulnerabilidade do território português aos incêndios florestais, mas também as limitações da cobertura mediática em momentos de crise. Ao ignorar as causas estruturais do problema, os media contribuíram para a sua invisibilidade no debate público. Para que situações como esta não se repitam, é fundamental que o jornalismo adote uma abordagem mais crítica e contextualizada, ajudando a sociedade a compreender os desafios ambientais e sociais que enfrentamos. Com efeito, informar não é apenas relatar o que aconteceu, mas também explicar por que aconteceu e como podemos evitar que se volte a repetir.

A longo prazo, uma cobertura mediática mais informada pode incentivar alterações nas políticas ambientais e promover uma maior responsabilização dos governos e das empresas na gestão dos recursos naturais. Sem uma transformação na forma como os incêndios florestais são abordados pelos media, o risco de repetir tragédias como a de Pedrógão Grande continuará elevado. O jornalismo tem o poder de moldar narrativas e influenciar políticas públicas, e é crucial que esse poder seja utilizado de maneira responsável e construtiva. Só com agentes mediáticos comprometidos com a verdade e a informação objetiva poderemos evitar que a próxima tragédia se torne apenas mais uma manchete efémera.

João Carlos Sousa é doutorado em Ciências da Comunicação pelo Iscte-IUL com uma tese com o título “Sócrates e os “outros”: contributos para a compreensão do efeito mediático na confiança institucional” com bolsa individual da FCT (SFRH/BD/136605/2018). É licenciado em Sociologia (2009) e Mestre em Sociologia: exclusões e políticas sociais (2013) pela Universidade da Beira Interior. Foi bolseiro de investigação do projeto (A Matriz das) Atitudes Populistas e Negacionistas face à Ciência PTDC/CPO-CPO/4361/2021 no ICS-ULisboa. Joao.Carlos.Sousa@iscte-iul.pt

Emerging Urban Imaginaries and libertarian utopianism: The Case of Prospera in Honduras

Por: Lara Caldas

Imagine a city with completely privatized governance and rules. An environment where a single company unilaterally provides every urban and livability service in exchange for a subscription fee while preserving free market policies. This libertarian utopia became a reality in Honduras, indicating that emerging radical urban imaginations might not align with democracy’s ideals.

A drawing of a ship in the water

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Figure 1. Photo-collage by the author, using images from: https://www.goodfon.com/city/wallpaper-zaha-hadid-s-innovation-tower-zdaniia-arkhitektura-rastiteln.html and https://www.needpix.com/photo/609300/roatan-honduras-landscape-seascape-caribbean-travel-nature (both licensed as Creative Commons)

The initial idea of a private citadel traces back to Paul Romer, a renowned economist and once the World Bank’s vice president. In the early 2000s, Romer suggested that Charter Cities (CC) could serve as a developmental solution for the Global South. The colonial regime of Hong Kong inspired him to imagine exceptional territories operating under separate, improved rules than those of a “mainland.” These new cities would have their own normative apparatus – a charter –, making them partially independent of the country in which they are located. 

The goal of a CC is to establish a special economic zone with urban dimensions. Experts would design a charter to favor foreign investment and promote economic development, covering labor laws, environmental and urban planning regulations, special tax regimes, and even the justice system. The latter is crucial, as Romer believes that countries in the Global South are socially prone to having bad rules and failing to enforce contracts. Moreover, Romer proposes suspending political-democratic rights, such as direct elections. Since experts predetermine every decision, popular participation is deemed unnecessary. Hence, Romer suggested that residents should “vote with their feet,” leaving the city if the regime proves unsatisfactory, something akin to switching banks.

The obvious consequence is reducing political rights to consumer rights. However, CCs can appeal to the political class by addressing real social demands like safety, employment, and economic growth – though through an elitist framework with a homogeneous idea of development. Against accusations of neocolonialism, Romer argues that their legitimacy lies in their exceptional nature. The proposal is not to occupy entire countries nor to create these territories by force (although Romer presents a very insufficient notion of force, one that ignores countries’ power disparities and the capacity of market actors to meddle with politics). These zones are portrayed as innovation sandboxes, small special areas for investment and governance experimentation.

In 2009, shortly after the coup d’état, Juan Orlando Hernández, President of the National Congress of Honduras, and Porfirio Lobo, then-President, invited Paul Romer to lead a Charter City project. In February 2011, the Honduran Congress passed a constitutional amendment to enable Charter Cities in Honduras, initially called Regiones Especiales de Desarrollo (REDs). In July, the governance statute for REDs was approved. According to this document, REDs were designed as special zones with broad administrative, fiscal, legal, and regulatory autonomy, provided with a transparency commission appointed and overseen by the President. In 2012, the Honduran government entered into an agreement with MGK Group (a company associated with Michael Strong, a well-known libertarian activist) to develop the first RED. This agreement was made without Romer’s knowledge or the involvement of the transparency commission, leading to Romer’s abandonment of the project.

In October, the Honduran Supreme Court declared the REDs unconstitutional, stating that the law violated Honduras’ territorial integrity, sovereignty, and independence. Shortly after, in December, Congress removed four Supreme Court judges who had voted against the REDs. The President of Congress then appointed replacements aligned with the government’s plan, a move criticized as illegal by commentators. Less than a month later, amid fierce opposition from Indigenous islander communities and without consultation or social participation, a new constitutional amendment was approved, establishing the Zonas de Empleo y Desarrollo Económico (ZEDEs).

Figure 2: The Garifuna people protesting the RED project in Tegucigalpa, 2012. Photo by: Honduras Delegation, on flickr.

Prospera is the first ZEDE in Honduras, established in 2017 by the company Prospera LLC, based in Delaware, a well-known tax haven in the United States. Its main investor was NeWay Capital, a financial group based in Washington, DC. This company is linked to the Tipolis Inc. group, led by Titus Gebel, a German economist and founder of the non-profit organization Free Private Cities. Gabel is also the author of a homonymous book that promotes private cities as a solution for those dissatisfied with the rules of nation-states. The project attracted entrepreneurs associated with neoliberal and libertarian activists, including the then-president of the Hayek Institute and prominent figures from the cryptocurrency sector. The ZEDE was implemented on indigenous lands without prior consultation (despite legal prerogatives) and faced widespread opposition.

Figure 3: Prospera is located on the island of Roatan, Honduras. (Google maps with author’s edition).

Prospera embodies many of Romer’s ideals. The new city is an autonomous zone, both financially and administratively, managed by a non-elected council. It has its own governance and justice systems, operating under rules distinct from the national legal framework. Prospera’s court functions through an app developed by an investor and advisory board member of the same company that manages the ZEDE.

Legal experts say that constitutional protections have been weakened, including guarantees of free speech, protections against forced labor, safeguards against discrimination based on gender and race, and even the right to Habeas Corpus. Land ownership rights are among the most undermined, as the regulatory decree stipulates that no precautionary measure shall be implemented to prevent or delay land expropriation. While compensation for expropriations is required, it is only provided in cases where formal ownership titles exist, something that many traditional indigenous populations lack. Luxury condominiums designed by international “starchitect” Zaha Hadid are replacing traditional fishing communities. Prospera is a new city, but more importantly, it is a normative innovation, semiautonomous from Honduras and oriented towards the interests of a transnational class of investors.Prospera falls under the Honduras-United States bilateral agreement (CAFTA-DR), which protects U.S.-origin investments. Therefore, although Honduras elected the socialist Xiomara Castro in 2022, who managed to repeal the ZEDE law, the national government cannot unilaterally terminate the agreement with NeWay Capital without facing indemnity proceedings. Additionally, ZEDEs have vested rights under the Honduran Constitution. Even with the repeal of the legislation, all concessions will remain in effect for at least 10 years. While this process is lengthy and cumbersome, Prospera remains a concrete example of corporations’ power in the South and their capacity to shape urban futures according to their interests.

Lara Caldas is a postdoc fellow in Political Science at the University of Brasilia. She is a researcher at Observatório das Metrópoles and a member of the research group Geopolitics and Urbanization. Her research interests lie in the intersection of urbanization and democracy. Contact: lara.cfsilveira@gmail.com

Segurança alimentar e políticas públicas sobre alimentação

Por Virgínia Henriques Calado

A criação de conselhos municipais de alimentação em Portugal é uma proposta em torno da qual se têm vindo a mobilizar diversas entidades, designadamente, a FAO-Portugal, a Rede Rural Nacional, a Rede Portuguesa pela Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (ReAlimentar) — rede da sociedade civil que «tem por objetivo principal influenciar os processos de formulação e tomada de decisão sobre políticas públicas, nacionais e internacionais, que digam respeito à Soberania e Segurança Alimentar» — e universidades portuguesas, como a Universidade Aberta e a Universidade de Lisboa, esta última através do Colégio Food, Farming and Forestry (F3). Seminários organizados, como aquele em que se discutiu o Direito humano a uma alimentação adequada através de compras públicas e cadeias curtas agroalimentares (Universidade de Lisboa, 7 de fevereiro de 2018) ou a oficina Direito humano à alimentação adequada e políticas públicas ao nível local (FAO – Portugal, Lisboa, 19 de junho de 2018), permitiram dar conta do desejo de implementação de políticas públicas nacionais e municipais que possam contribuir para uma realização progressiva do direito a uma alimentação adequada.

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El Cambio Climático en los hombros de las Ciencias Sociales

Por Mercedes Pardo-Buendía

Las evidencias del Cambio Climático no dan lugar a duda: 1) el aumento de la temperatura media de la superficie del planeta desde la industrialización en alrededor de 0,85ºC; 2) la disminución del hielo en el Ártico (3,5-4,1% por década en el periodo 1979 a 2012 e importantes cambios en la Antártida): 3) la subida del nivel del mar (0,11°C por década hasta los 70 metros de profundidad, en el periodo 1971-2010).

Las consecuencias de esas evidencias abarcan asuntos tan graves como el aumento de fenómenos climáticos extremos, como son las olas de calor que, con muy alta probabilidad, serán más frecuentes y durarán más tiempo, tormentas y huracanes, entre otros. Dentro de estos fenómenos no lineales – lo cual añade mayor riesgo – tenemos la reaparición del fenómeno de El Niño.

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Os veículos elétricos de baixa velocidade estão a influenciar a urbanização de alta velocidade na China

Por Dennis Zuev

Enquanto por todo o mundo os países tentam limitar o aumento da temperatura da Terra, a China fez da transição para o transporte de baixas emissões de carbono uma prioridade. Como parte do esforço para desenvolver veículos de baixas emissões (low-carbon), os fabricantes nacionais de automóveis elétricos beneficiaram de um apoio significativo por parte do governo chinês. As suas vendas, no entanto, têm sido prejudicadas por um concorrente de reduzida dimensão: o veículo elétrico de baixa velocidade (disuche).

Apesar do nome, os veículos elétricos de baixa velocidade (LSEV) não são assim tão lentos. Com uma velocidade máxima de 60 km/h, eles são suficientemente rápidos para se deslocarem em cidades grandes e fortemente congestionadas, podendo mesmo atingir 100 km/h se forem alvo de uma “intervenção manual”. A maioria dos modelos é compacta, assemelhando-se a veículos utilitários de três rodas ou a buggies de golfe – uma solução prática para a falta de espaço de estacionamento que se tornou um problema significativo à medida que cada vez mais pessoas conduzem na China.

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Que se precisa, pois? – Depois dos fogos, uma pergunta com 202 anos

Por Pedro Almeida Vieira

José Bonifácio de Andrada e Silva, antes de se tornar o Patriarca do Brasil, publicou em 1815 um livro intitulado Memória sobre a Necessidade e Utilidade do Plantio de Novos Bosques em Portugal. Preconizava ele o plantio de pinheiro no litoral, mas sobretudo uma boa gestão, algo que então não vislumbrava. As suas críticas, a um país que se achava com vocação florestal, mas não passava de um país de charnecas, mostravam-se demolidoras.

Atente-se a este trecho:

«Que se precisa, pois? Precisa-se quanto antes de uma boa Administração, única e enérgica; precisa-se de novos Regulamentos, assim gerais como particulares, acomodados às circunstâncias do Estado e às localidades particulares de cada distrito, em que se aproveitem as boas ideias antigas, e se corrijam as más por outras melhores, fundadas em princípios científicos e na experiência dos Séculos, cuja execução seja cometida somente a uma Directoria única e poderosa, que dirija e vigie com a mais sisuda atenção sobre os Administradores particulares, que se devam conservar, e sobre os novos que de sevam criar. Só assim se realizarão os magnânimos desejos de nossos Príncipes, sem desgraçados empates, rivalidades e oposições; só assim haverá economia e responsabilidade; só assim, com o andar do tempo, haverá Oficiais instruídos e capazes, que obrando debaixo de princípios certos e harmónicos hajam de tirar ramos tão importantes do abatimento e miséria em que ora jazem, e de os aproximar gradualmente ao Ideal de perfeição que devem ter. Permita o Céu que o bom Príncipe, que como Pai nos governa, livre dos cuidados da Guerra, possa dar a este mal o remédio que tanto precisa.»

2017_Capa_Livro_Blogue ATS

Hoje, no ano em que arderam mais de meio milhão de hectares e morreram 110 pessoas vítimas de incêndios inclementes, poucos podem acreditar que, de facto, somos um país de vocação florestal. De facto, pode custar, mas temos de nos consciencializar que só com muito trabalho e uma boa organização, como defendia há dois séculos Andrada e Silva, podemos almejar uma floresta economicamente sustentável. Infelizmente, estamos longe; temos estado mais próximos de uma pira de lenha letal: desde o início do século arderam cumulativamente mais de 2,5 milhões de hectares, isto é, quase 30% do território nacional. E o saldo de vidas humanas ronda quase 200.

2017_Imagem_Fogo_Blogue
Autor: Steve McCaig (licença Creative Commons)

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Políticas públicas de regadios no Nordeste do Brasil

Por Gleydson Pinheiro Albano

O Nordeste do território brasileiro, principalmente sua região semiárida, atravessou os últimos séculos sendo lembrado dentro e fora do país como uma região atrasada, muito em função da pobreza da sua população, da desigualdade de acesso a terra e da ocorrência de secas, que fizeram uma multidão de nordestinos migrar para outras áreas do país, como o Sudeste e a região Amazônica.

No início do século XX, com a ocorrência de mais uma grande seca nessa região do país, o governo brasileiro resolveu criar um órgão para enfrentar as secas dessa região e assim nasce no ano de 1909 a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS) (hoje, Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS).

Durante toda a primeira metade do século XX esse órgão iria ser responsável por políticas de construção de açudes com o objetivo de fornecer água para matar a sede do nordestino. Inclusive é pela criação e área de delimitação do órgão (área de ocorrência de secas) que o termo Nordeste é popularizado e institucionalizado no país, entrando posteriormente na cartografia como uma das regiões brasileiras. Continuar a ler