Por Virgínia Henriques Calado
A criação de conselhos municipais de alimentação em Portugal é uma proposta em torno da qual se têm vindo a mobilizar diversas entidades, designadamente, a FAO-Portugal, a Rede Rural Nacional, a Rede Portuguesa pela Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (ReAlimentar) — rede da sociedade civil que «tem por objetivo principal influenciar os processos de formulação e tomada de decisão sobre políticas públicas, nacionais e internacionais, que digam respeito à Soberania e Segurança Alimentar» — e universidades portuguesas, como a Universidade Aberta e a Universidade de Lisboa, esta última através do Colégio Food, Farming and Forestry (F3). Seminários organizados, como aquele em que se discutiu o Direito humano a uma alimentação adequada através de compras públicas e cadeias curtas agroalimentares (Universidade de Lisboa, 7 de fevereiro de 2018) ou a oficina Direito humano à alimentação adequada e políticas públicas ao nível local (FAO – Portugal, Lisboa, 19 de junho de 2018), permitiram dar conta do desejo de implementação de políticas públicas nacionais e municipais que possam contribuir para uma realização progressiva do direito a uma alimentação adequada.

A discussão empreendida tem salientado, entre outros aspetos: a importância da agricultura familiar; a procura de modos de produção, distribuição e consumo sustentáveis; a valorização das redes locais de produção e consumo; a importância da participação da sociedade civil e a necessidade de familiarização com conceitos como os de alimentação adequada e de segurança alimentar e nutricional – conceitos estabelecidos pela FAO. É justamente sobre os conceitos de (in)segurança alimentar, no sentido que lhes é atribuído pela FAO que me debruçarei, sinalizando alguns eixos que me parecem relevantes no aprofundamento da discussão.
Segurança alimentar: «situação em que todas as pessoas, em qualquer momento, têm acesso físico, social e económico a alimentos suficientes, seguros e nutritivos, que permitam satisfazer as suas necessidades nutricionais e as preferências alimentares para uma vida ativa e saudável.» Insegurança alimentar: «situação em que as pessoas não têm acesso, de forma segura, a alimentos sãos, nutritivos e em quantidade suficiente para garantir o seu normal crescimento e desenvolvimento bem como uma vida ativa e saudável» FAO, IFAD, UNICEF, WFP and WHO. The state of food security and nutrition in the world 2017 :107. |
Uma primeira consideração, a propósito da segurança alimentar, tem a ver com semântica e correspondentes implicações ideológicas agregadas a esta noção. As palavras raras vezes são fruto de acaso e muito menos o são quando a partir delas se procuram definir políticas públicas. O conceito de segurança alimentar constitui uma das expressões que reportam a uma conceção específica de governo das sociedades. Trata-se de uma conceção em que a proteção, harmonização, regulação e controlo são promovidos através de políticas assentes nas noções de risco e segurança. A perspetiva de regulação social, que se revela através da segurança que se procura proporcionar aos cidadãos, não assenta tanto num discurso com pendor claramente sancionador, disciplinador e moralista, antes salientando o discurso securitário, protetor e preventivo, através do qual estados de exceção e medidas específicas, como as relativas à produção, distribuição e consumo de alimentos, podem ser implementados e legitimados. A esta visão, que se vem tornando hegemónica, importa contrapor um olhar crítico: pugnar pela segurança alimentar, e por uma alimentação adequada, pode não significar apenas uma forma de zelar pelo bem comum, remetendo, também, para uma limitação de escolhas individuais e uma restrição de direitos fundamentais, como o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, direito para o qual a Constituição da República Portuguesa remete (artº 26) e que Luísa Neto (2009) discute ao analisar a nutrição como política pública.
Uma segunda consideração prende-se com a dimensão tecnocrática que envolve o conceito de segurança alimentar. Surgido, afinado e estabelecido no quadro da FAO, este conceito foi objeto de um particular investimento a partir da década de 1970, altura em que a identificação de uma crise alimentar global conduziu a uma intensificação do debate internacional sobre a disponibilidade de alimentos básicos, como os cereais, e a sua estabilidade em termos de preços. A transformação do conceito de segurança alimentar num conceito operacional, a partir do qual se pudesse medir e apresentar de forma objetiva a insegurança alimentar, constituiu um procedimento indispensável para procurar regular a produção e distribuição de alimentos e também para definir formas de intervenção, medidas e programas de ajuda alimentar. Uma das metodologias adotadas pela FAO para avaliar a insegurança alimentar baseou-se na quantidade de calorias ingeridas per capita (discutível enquanto modo de medição), mas outros meios, mais sofisticados, foram surgindo também, nomeadamente com a complexificação de fórmulas de cálculo que confluíram para um fechamento de campo e o afastamento de não especialistas. A existência, na dependência da FAO, de um organismo como o Comité para a Segurança Alimentar Mundial (CFS) e os inúmeros relatórios e demais documentos incessantemente produzidos por esta agência, traduzem bem uma intensa atividade tecnocrática em torno desta questão. No seio da FAO, estudos de caráter mais qualitativo não abundam, e dimensões da alimentação relacionadas com a cultura, convivialidade, reciprocidade e hospitalidade são frequentemente ignoradas.
Uma terceira e última consideração prende-se com a necessidade de monitorização dos usos dos conceitos de (in)segurança alimentar. Apresentados como resultado de cálculos objetivos, frequentemente provindos de especialistas que é suposto garantirem rigor, tendem a ser apresentados como elementos neutros, que servem de justificação a políticas públicas e formas de atuação por parte do sector agroalimentar. Convém sublinhar que a noção de segurança alimentar pode facilmente ser capturada por este sector, que tanto evoca a falta de alimentos para procurar apoio para uma lógica mais produtivista, como evoca questões de segurança para justificar formas de alimentação afirmadas como mais sustentáveis, como é o caso da agricultura biológica. Também os estados podem afirmar a insegurança alimentar que os afeta, para, através da ajuda externa, procurarem diminuir os seus problemas orçamentais, como é o caso de diversos estados africanos. Por fim, há também a referir que o aumento da segurança alimentar, com maior produção e disponibilização de alimentos, é feita por vezes à custa da perda de soberania alimentar, tal como a Via Campesina, movimento que coordena organizações camponesas de pequenos e médios agricultores e trabalhadores agrícolas de todo o mundo, tem procurado denunciar, destacando que a garantia da segurança alimentar pode colocar algumas sociedades na dependência de grandes empresas tecnológicas e agroalimentares. Pelos motivos expostos, é, pois, conveniente manter a noção de segurança alimentar sob atenta vigilância.
Virgínia Henriques Calado conduz no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa o projeto “Políticas que Amassam o Pão: Cidadania e Orientações Alimentares no Âmbito das Nações Unidas”, projeto financiado pela FCT através da bolsa de investigação SFRH/BPD/97532/2013. Integra o grupo de investigação Identidades, Culturas, Vulnerabilidades e o Colégio Food, Farming and Forestry (F3). vmcalado@ics.ulisboa.pt