“Agora tens de escrever um paper sobre isto”: produção e devolução ética de conhecimento científico

Por Susana Boletas

Quando terminei de apresentar o meu artigo, ou paper, sobre as visitas guiadas na Cova da Moura, no seminário final do projeto “Espaço Relacional e Direito à Cidade: Pesquisa Experimental na Cova da Moura”, em 30 de abril na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, e esperava pelas questões, um dos comentadores convidados pegou numa das minhas observações e dirigiu-o aos moradores do bairro presentes, em vez de o dirigir a mim. A observação era sobre a mercantilização, exotização e espetacularização da pobreza e os moradores eram os membros da associação local, a Associação Cultural Moinho da Juventude, responsável, entre muitas outras coisas, pelo projeto de visitas guiadas pelo bairro. A fundadora do Moinho da Juventude respondeu que estava lá apenas para ouvir. A questão foi-me, então, devolvida e tive de explicar o que pretendia dizer. Falei acerca das minhas preocupações e considerações sobre as possibilidades de melhorias físicas e sociais na Cova da Moura e, então, o debate alargou-se às restantes pessoas presentes. Discutiu-se a extensa produção académica sobre este bairro e as razões por que esta não se traduziu em melhoramentos das suas condições, a necessidade de se desenvolver pensamento crítico e o facto de nem toda a produção académica ser pensada para ter aplicação prática, os abusos de investigadores que constroem as suas carreiras académicas com base no conhecimento que adquiririam na Cova da Moura sem, depois, retribuir. Então, a fundadora do Moinho da Juventude sentiu a necessidade de quebrar o silêncio e explicar que já faziam visitas guiadas pontualmente nos anos 1990, mas que foi só em 2002 que começaram de forma sistemática, para combater a imagem negativa do bairro veiculada pela comunicação social. Explicou que se tinham inspirado num programa semelhante a um da Holanda e implementaram-no na Cova da Moura quando viram o bairro tornar-se alvo de discursos estigmatizantes à medida que este se ia tornando um local estratégico para a especulação imobiliária. Acrescentou, ainda, que jovens que tinham ido para fora estudar e trabalhar contactavam a Associação porque queriam voltar para o bairro, alguns já com família. Eu aproveitei a ocasião para tirar notas.

No final, uma das coordenadoras do seminário e moderadora do painel onde tinha feito a minha apresentação disse-me, divertida: “Agora tens de escrever um paper sobre isto”. Este conselho ganhou raízes, não apenas pelo anedótico da situação, mas também por ter tido a experiência de ver uma interpretação pessoal acerca do terreno ser profusamente debatida pelos meus interlocutores, o que ressoou com as minhas preocupações éticas enquanto etnógrafa. Aproveito, então, para ensaiar uma reflexão sobre produção e devolução de conhecimento.

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“Anthropology: dialogue with the other”, de Igor Cherstich (publicado com permissão do autor)

Quando partimos para o terreno é-nos dito que todas as observações são parciais e relativas, que dependem de um ponto de vista, ponto de vista esse sujeito àquilo que levamos connosco para o terreno, mas também às escolhas que fazemos nele. Muito do que trazemos do terreno depende daquilo que lemos previamente e do que vamos lendo no decorrer da pesquisa. O conhecimento que produzimos é, também, resultado do que lemos depois, o que, em si, já é influenciado pelas nossas experiências no terreno e pelos interlocutores que lá encontramos, com a dificuldade acrescida de que estes interlocutores podem ter pontos de vista e interesses diversos e até contraditórios. No entanto, tentamos que o conhecimento produzido seja de interesse público e o mais objetivo possível, o que nos traz dúvidas e ansiedades sobre a exatidão das nossas observações e o impacto que esse conhecimento terá nos interlocutores que encontrámos no terreno e em relação à sua reação quando lhes devolvemos os resultados da nossa pesquisa. Temos de ter o cuidado de não impor uma narrativa com a qual não se identificam, sem perder a capacidade crítica e analítica do nosso trabalho.

Como propõe Alfred Schutz, a interpretação do mundo baseia-se num acervo constituído por experiências anteriores, pelas nossas próprias experiências e pelas que nos são transmitidas pelos nossos pais e professores, as quais, na forma de uma espécie de “conhecimento à mão de semear”, funcionam como um código de referência. O etnógrafo não deixa de ser uma pessoa que transporta a sua subjetividade para o terreno e para a sua produção de conhecimento. O etnógrafo não deixa de ser um sujeito político, com tudo o que isso implica, desde as suas motivações na escolha do tema de investigação, do terreno de estudo, dos interlocutores e dos pontos de vista que adota, até ao produto do seu trabalho, à sua atividade e ao impacto da sua produção. É, por isso, tão importante refletir sobre o nosso lugar de fala e poder de fala e sobre a nossa subjetividade na etnografia que produzimos e nos movimentos de encontro e distanciamento que fazemos, para que a Antropologia seja, de facto, o exercício e o produto do diálogo com “o Outro”.

Acrescentaria ainda que acho importante estender esta reflexibilidade a outras áreas disciplinares e investigadores que se dediquem a estudar contextos desta natureza. Em bairros como a Cova da Moura moram pessoas a quem não é muitas vezes dada a possibilidade de falar. É, por isso, preciso saber ouvir, mesmo quando aquilo que nos é dito possa ser contraintuitivo ou deixar-nos desconfortáveis. Mas, também, saber quando falar, como falar e quando a nossa voz está a calar a deles. É preciso cuidado para não nos sobrepormos a eles. Ou, como me disse uma vez a fundadora do Moinho da Juventude, “não é só fazer doutoramentos e assistencialismo. É preciso cidadania.”


Susana Boletas é doutoranda em Antropologia no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa). susana.boletas@ics.ulisboa.pt

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