A energia comunitária em Portugal na transição para as renováveis: uma caracterização preliminar

Por: Vera Ferreira

Em Portugal, no quadro da transição energética, as iniciativas coletivas em torno da energia, ou energia comunitária, permanecem residuais. Não obstante, os enquadramentos legislativos europeu e português encorajam o incremento da produção descentralizada de energia renovável, entendendo-a como uma condição para a participação ativa dos cidadãos no sistema energético e, consequentemente, para alcançar uma transição mais justa e democrática.

O Decreto-Lei n.º 162/2019, subsequentemente alterado pelo Decreto-Lei n.º 15/2022, estabeleceu o primeiro quadro legal que viabiliza a associação de diferentes tipos de consumidores (domésticos, industriais, grandes consumidores e pequenas e médias empresas) e de perfis distintos de atores (cidadãos, autarquias, empresas, serviços públicos e demais entidades públicas e privadas) em comunidades de energia renovável (CER) e projetos de autoconsumo coletivo (ACC), com o objetivo de produzir, consumir, armazenar, partilhar e vender energia elétrica renovável. Os participantes num ACC têm de elaborar um regulamento interno que reja o seu funcionamento e designar uma Entidade Gestora do Autoconsumo Coletivo (EGAC), a quem compete a representação do ACC e a gestão da atividade corrente. Já a CER exige a criação de uma pessoa coletiva (uma cooperativa, associação, fundação ou sociedade), que assume a gestão da comunidade e dos seus ativos.

Num momento em que dezenas de “comunidades de energia” são anunciadas na comunicação social, importa traçar um retrato preliminar e procurar antecipar o seu potencial para fomentar a energia comunitária em Portugal. Assim, no âmbito da investigação de doutoramento em curso, intitulada “A transição energética em Portugal no horizonte 2050: uma análise à luz do conceito de democracia energética”, propõem-se os seguintes critérios para caracterizar a energia comunitária no contexto nacional:

  1. Gama de atores que implementa, integra e gere as iniciativas – por exemplo, cidadãos coletivamente organizados, representantes democraticamente eleitos e pequenas e médias empresas locais;
  2. Modelo de governação que assegure a igualdade no acesso à propriedade e o controlo do projeto de energias renováveis, bem como processos de decisão democráticos;
  3. Priorização de objetivos socioeconómicos e de ação climática;
  4. Autonomia em relação aos financiadores;
  5. Envolvimento dos cidadãos e da comunidade local na conceção e gestão do projeto e contributo para a coesão social;
  6. Primazia de benefícios ambientais, sociais e económicos (em detrimento dos financeiros) e sua extensão à comunidade local.

Dada a escassez de informação pública e perante a expectável heterogeneidade e diferentes velocidades de implementação das iniciativas, considerou-se que o meio mais eficaz para construir uma base de dados que pudesse ser atualizada em permanência seria a análise de notícias. Por uma questão de exequibilidade, optou-se por cingir a pesquisa a jornais e revistas com publicações digitais e de acesso aberto. Foram selecionadas e analisadas todas as notícias que mencionavam os termos comunidade(s) de energia e/ou comunidade(s) de energia renovável, no título ou no corpo do texto, pelo menos uma vez. As notícias com informação repetida foram excluídas, sendo catalogadas apenas as notícias com a data mais antiga e provenientes de fontes consideradas idóneas e fidedignas, nomeadamente, jornais locais e nacionais e sites informativos especializados.

Assim, entre março de 2020 – data de início da investigação de doutoramento – e outubro de 2023, foram contabilizadas 89 iniciativas, que incluem parques industriais, empresariais ou tecnológicos (27 casos), instituições particulares de solidariedade social (11), complexos desportivos (10), aldeias (8), centros urbanos (6), associações de bombeiros (4), escolas privadas (3), empreendimentos imobiliários ou turísticos (3), juntas de freguesia (2), condomínios (2), igrejas (2) e uma ilha. Na sequência de uma análise mais apurada, verificou-se uma discrepância assinalável entre a denominação destas iniciativas e o seu estatuto jurídico – a maioria pertence, legalmente, à tipologia de ACC, o que parece indiciar a diluição e apropriação indevida do conceito de “comunidade de energia”.

No total, 70 iniciativas (ACC) estão a ser implementadas por empresas privadas, 9 por autarquias, 5 por coletividades locais e grupos de cidadãos, 4 por associações e fundações e uma resulta da parceria entre uma universidade e a comunidade local. Foram identificadas apenas quatro CER, em diferentes fases de desenvolvimento: a CER de Vila Boa do Bispo, a Associação da CER da Batalha, a CER de Telheiras e a CER da Ilha da Culatra.

Embora as iniciativas identificadas reclamem o título de “comunidade de energia (renovável)”, nem todas constituem, automaticamente, expressões de energia comunitária. Com efeito, as CER e os ACC mapeados apresentam diferenças substanciais ao nível dos atores que implementam e financiam o projeto de energia renovável, do modelo de governação – mais concretamente, a propriedade e o controlo – e do envolvimento dos cidadãos e da comunidade local.

Figura 1. Central fotovoltaica do projeto de ACC de Soutelinho da Raia, 8 de agosto de 2023. Autoria: Vera Ferreira.

Nos ACC implementados por empresas privadas, estes atores, ao assumirem o papel de EGAC, removem todos os encargos financeiros e burocráticos (asseguram o investimento inicial, a instalação da central fotovoltaica e encarregam-se do processo de licenciamento), mas também o espaço para a organização coletiva. Este tipo de ACC assenta numa relação meramente comercial entre uma empresa privada e um cliente final, pelo que os cidadãos permanecem apenas consumidores – não detêm a infraestrutura, nem a energia renovável produzida. Deste modo, embora sejam projetos coletivos, porque podem reunir diversos produtores e consumidores, não são enquadráveis na categoria de energia comunitária.

As CER estariam, por princípio, mais próximas da ideia de energia comunitária, já que a sua criação implica a mobilização de participantes que partilhem motivações semelhantes e que assumam o compromisso de investir no projeto (seja no pagamento de quotas ou na aquisição da Unidade de Produção para Autoconsumo), bem como processos deliberativos regulares (desde logo, para elaborar os estatutos e eleger os órgãos sociais e, mais tarde, para assegurar a sua gestão corrente) – no fundo, a democracia participativa em ação. No entanto, dada a sua escassez, só será possível comprovar o contributo das CER para o robustecimento da energia comunitária em Portugal quando estiverem em pleno funcionamento.

Não obstante, já sobressaem as diferenças entre as CER de Telheiras e da Ilha da Culatra – as mais consolidadas até ao momento – e os projetos de ACC das empresas privadas: são implementadas por associações locais em parceria com autarquias, instituições de ensino superior, associações e, no caso de Telheiras, também com a cooperativa de energias renováveis Coopérnico, que presta apoio técnico e jurídico; os painéis fotovoltaicos são detidos pela entidade jurídica que enquadra a CER (em Telheiras é uma associação e na Ilha da Culatra uma cooperativa); o financiamento é assegurado pelos participantes e não por terceiros; as comunidades locais foram envolvidas desde o início; os membros têm o poder de decidir o futuro da CER.

Figura 2. Instalação fotovoltaica da Escola Básica da Ilha da Culatra, 19 de julho de 2023. Autoria: Vera Ferreira.

Em suma, perante a mobilização indiscriminada e equivocada do conceito de “comunidade de energia (renovável)”, revela-se fundamental aprofundar a análise da relação entre projetos de energia renovável descentralizados, organização coletiva e democratização. Torna-se pertinente avaliar, por exemplo, se a preponderância das empresas privadas na implementação de projetos de ACC – apresentados como mais convenientes e flexíveis – pode retirar espaço para o florescimento da energia comunitária.


Vera Ferreira é doutoranda em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, onde integra o SHIFT – Grupo de Investigação Ambiente, Território e Sociedade. O seu projeto de tese intitula-se “A transição energética em Portugal no horizonte 2050: uma análise à luz do conceito de democracia energética” e os seus atuais interesses de investigação incluem a democracia energética e as transições energéticas justas. Email: vera.ferreira@ics.ulisboa.pt

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