Por Luís Junqueira, Alexandre Silva, Mónica Truninger
O SafeConsume é um projeto internacional, financiado pela União Europeia através do programa Horizon 2020 (grant agreement Nº 727580), que junta 32 parceiros de 14 países. O seu objetivo é conhecer as práticas de segurança alimentar em contexto doméstico e procurar soluções para reduzir os surtos de toxinfecção na Europa, concentrando-se nos cinco principais agentes patogénicos de origem alimentar: Campylobacter jejuni; Toxoplasma gondii; Salmonella enterica; Norovirus; Listeria monocytogenes. Ainda que o seu impacto seja pouco discutido, estima-se que estes e outros micróbios transmitidos pelos alimentos que ingerimos sejam responsáveis por 23 milhões de casos de doença e 5000 mortes por ano em toda a Europa.
O SafeConsume é também um projeto interdisciplinar que assenta num enquadramento que combina a avaliação de risco microbiológico, seguindo uma metodologia de controlo de pontos críticos ao longo da cadeia alimentar (HACCP – Hazard Analysis and Critical Control Point ou Análise de Perigos e Controlo de Pontos Críticos), com uma componente sociológica assente nos métodos qualitativos e informada pela perspetiva da teoria da prática. A teoria da prática tem emergido ao longo das últimas três décadas como alternativa a enquadramentos mais individualistas da ação humana dominantes nas perspetivas mais ortodoxas da psicologia e da economia, as quais assumem que os indivíduos se comportam exclusivamente como agentes racionais. Por seu turno, e embora a teoria da prática seja composta por várias versões, estas tendem a consensualizar que a forma como agimos no nosso quotidiano é mais prática do que reflexiva, guiada por conhecimento tácito (saber-fazendo) e reforçada pela rotina. O foco analítico é transferido dos indivíduos para a prática em si, estando amplamente ligada aos contextos sociais, culturais e materiais onde se inserem os indivíduos. Nas versões mais radicais desta transferência de lente analítica, os indivíduos ‘carregam’ as práticas no seu dia-a-dia, em vez de serem as práticas que dependem da ação individual e voluntária das pessoas. Neste sentido, as práticas quase ganham vida própria, correndo o risco de se antropomorfizarem, um ponto disputado pelas várias correntes desta perspetiva teórica, já que há controvérsia sobre o papel do indivíduo na prática.
Neste projeto não nos prendemos tanto às disputas teóricas, mas procurámos ir além da ideia de que o risco de segurança alimentar nas cozinhas dos cidadãos europeus deriva de uma falta de conhecimento técnico-científico adequado que, sendo colmatada, os levaria a adotar comportamentos mais seguros. Assim, focámos a nossa observação não só nas perceções e conhecimentos sobre segurança alimentar – que doenças podem transmitir os alimentos, que ações aumentam o risco de contaminação, como pode o risco ser mitigado -, mas também nas dimensões sociomateriais da compra, transporte, armazenamento e preparação dos alimentos – onde são comprados, como está organizada a loja, como são transportados, que condições tem a cozinha, quem está presente na cozinha (crianças, animais, adultos) – e nas competências envolvidas – critérios de seleção dos alimentos, leitura de rótulos alimentares, formas de armazenamento dos alimentos, manuseamento dos utensílios de cozinha.
A equipa do projeto visitou 75 famílias em 5 países (Portugal, Roménia, França, Reino Unido e Noruega), divididas entre 3 grupos considerados de maior risco em termos de higiene e segurança alimentar: homens jovens solteiros, casais jovens com filhos pequenos/mães grávidas e famílias de idosos. Durante as visitas, os investigadores acompanharam os participantes ao longo de toda a cadeia de abastecimento alimentar doméstico, tendo-lhes sido pedido que tentassem recriar uma visita normal ao supermercado. As visitas iniciaram-se nos locais de compra habituais dos participantes, e estes foram acompanhados durante o transporte dos alimentos até casa, durante o processo de arrumação e armazenamento dos alimentos, e ainda na preparação de um prato à base de frango acompanhado por salada na sua própria cozinha.

Este trabalho fez amplo uso de suportes visuais. Embora o diálogo com os participantes ao longo de toda a visita tenha sido gravado e seja uma componente importante da nossa análise, este não captura as dimensões materiais e sensoriais, nem tão pouco os gestos e ações rotineiras que constituem as práticas associadas ao aprovisionamento e preparação dos alimentos. A fotografia foi usada de modo a complementar o diálogo sobre a escolha dos alimentos na visita ao supermercado e como forma de documentar a componente material das cozinhas – a organização do espaço e os utensílios disponíveis, assim como as formas de armazenamento dos alimentos nos frigoríficos, armários e dispensas. Mas foi sobretudo importante documentar o próprio processo de confeção da refeição através de vídeo, tendo o cuidado de centrar a gravação nas mãos dos participantes, não apenas por razões de privacidade e proteção de dados, mas também porque é nas mãos (e no corpo) que se concretizam muitas das práticas de preparação dos alimentos (práticas corporificadas). Toda esta documentação permitiu-nos construir um retrato muito rico da complexidade das práticas de higiene e segurança alimentar em contexto doméstico que pode ser consultado em maior detalhe no relatório recentemente publicado pela equipa do projeto.

Seria possível partir em muitas direções para falar dos nossos resultados: como as práticas de higiene e segurança alimentar dos 3 grupos de participantes são condicionadas pelo percurso de vida em que se encontram (estudantes, constituição de família com crianças, gravidez, envelhecimento) ou como as responsabilidades sobre a segurança alimentar tendem a refletir papéis de género tradicionais, ou até como a cultura de diferentes países se reflete em práticas aparentemente tão simples como a higienização (lavagem) da carne de frango para consumo. Por exemplo, só em Portugal e na Roménia é que observámos uma maior frequência de pessoas a lavar o frango cru antes de o preparar. No Reino Unido esta prática foi alvo de uma campanha a desaconselhar a lavagem do frango por causa do risco de contaminação cruzada através de gotículas de água com vírus e bactérias que se espalhassem pelas superfícies, utensílios e alimentos na proximidade. No entanto, uma das observações mais significativas que fizemos é o quanto as práticas na cozinha são influenciadas pelo que acontece ao longo de toda a cadeia de produção e distribuição dos alimentos.

Por exemplo, em todos os países notou-se uma preferência pela compra de peças de frango cortadas e embaladas, o que vai influenciar todo o processo de preparação. Se por um lado, o frango já cortado e embalado pode trazer menor risco de contaminação, ao reduzir o contacto direto com o animal nas fases de abate, depenagem e evisceração, por outro lado traz também novas oportunidades de aumentar ou reduzir o risco de contaminação dependendo de como o frango é retirado da embalagem e transferido para a panela, travessa ou tábua de cortar. A forma como os participantes realizam estas ações vai depender de como o frango é embalado em diferentes lojas (ex. plástico e cuvetes de esferovite nas prateleiras do supermercado vs. plástico e papel no talho), da preparação antes da venda (o frango está disponível em formas que servem as preferências dos consumidores?), dos utensílios disponíveis na cozinha e também das convenções culturais em torno de como se deve manusear carne crua (ex. os participantes em Portugal e na Roménia tiveram mais tendência a manipular o frango com as mãos pois lavavam, cortavam e temperavam a carne antes de a cozinhar).
É importante informar os consumidores sobre as medidas recomendadas pelos especialistas em higiene alimentar e que podem contribuir para reduzir o risco de contaminação durante a preparação de alimentos em casa: a lavagem da carne de frango deve ser evitada, as mãos e utensílios de cozinha devem ser higienizados após o manuseio de carne e os alimentos que serão comidos crus devem ser preparados antes da carne. Contudo, os nossos resultados sugerem que a mudança para práticas alimentares mais seguras não pode ser deixada unicamente sobre os ombros e responsabilidade dos consumidores, mas antes deve ser encarada como um processo de reorganização social do consumo alimentar que tem necessariamente de incluir o alinhamento de todos os agentes públicos e privados envolvidos na produção, distribuição, marketing e fiscalização dos produtos alimentares. Entre algumas medidas que poderiam ser tomadas, seria importante encorajar a utilização de formatos de corte e embalagem que sejam mais consistentes com as práticas de cozinha dos consumidores de forma a minimizar a necessidade de contacto com a carne e riscos associados, ou alterar as práticas de manuseio da carne nos talhos e supermercados de forma a reduzir as preocupações com a higiene por parte dos consumidores.
A equipa do projeto SafeConsume no ICS-ULisboa é atualmente constituída por Mónica Truninger (coordenação), Luís Junqueira e Alexandre Silva. Os dados referidos neste post reportam-se à recolha realizada no WP1, liderado por Silje Skuland (Universidade de Oslo). Agradece-se à equipa portuguesa responsável pela realização do trabalho de campo no WP1 (Ver: SafeConsume – Timeline).
2 thoughts on “SafeConsume – um olhar sociológico sobre a segurança alimentar”