Por: Alexandre Silva e Mónica Truninger
Uma das dificuldades na abordagem ao tema da segurança dos alimentos, do ponto de vista das práticas dos consumidores, consiste na adequação das medidas de prevenção ao carácter multifacetado e até mesmo contraditório do consumo alimentar. Os consumidores parecem por vezes preocupar-se com o risco alimentar, outras vezes parecem não estar nada preocupados com os perigos de contaminação microbiológica dos alimentos e as doenças que pode causar.
Este problema torna-se especialmente difícil de explicar a partir de perspetivas que entendem o consumidor como uma unidade isolada, seja enquanto agente clarividente e calculista ou como uma mera máquina estímulo-resposta, incapaz de refletir e decidir sobre as suas práticas. Mas há um vasto leque de fatores que têm sido realçados no quadro da investigação sobre práticas de consumo, que ajudam a entender o consumidor ao nível meso, isto é, situando-se num emaranhado de influências quer de teor micro – as minudências da vida quotidiana como os tempos, rotinas, sincronização de agendas e espaços, – quer de teor mais macro e estrutural – tipo de comércio e produtos à venda, tipo de família, níveis de educação e escolaridade, níveis de rendimento, modas de consumo, publicidade e media.

Figura 1. Preparação de um prato de frango e salada. Fonte: autores.
O nível meso das práticas contribui não só para compreender o caráter contraditório das opções alimentares dos consumidores, como também demonstra que essas contradições não são um defeito dos consumidores. Pelo contrário, estas resultam dos efeitos plurais e multifacetados que enquadram os contextos das práticas de consumo. Assim, as práticas relativas à segurança dos alimentos entrosadas com aspetos como os contextos sociais de manuseamento dos alimentos, as infraestruturas sociotécnicas (incluindo cozinhas e utensílios), as influências das redes de sociabilidade, as influências dos sistemas de provisão e características dos sistemas de produção alimentar, as dinâmicas espaciais, as influências dos media, as memórias e experiências passadas no manuseamento de determinados alimentos, o conhecimento local e expertise (incluindo educação científica e convenções sobre a relação entre humanos e micróbios), as experiências de doença de origem alimentar, as experiências e sensações associadas aos sabores e cheiros dos alimentos ou as experiências de trajeto de vida (como a gravidez e o aumento de atenção a questões de segurança e higiene alimentar).
Em posts anteriores deste blogue (aqui e aqui) referimos o projeto SafeConsume, cujo trabalho empírico foi realizado em 2017 e 2018, no qual se acompanharam 15 famílias residentes no distrito do Porto, nas suas compras, transporte, armazenamento e preparação de uma refeição constituída por frango e salada. As entrevistas aos participantes no estudo são elucidativas das várias contradições presentes no manuseamento dos alimentos, as quais incluem formas diversificadas de relação entre humanos e micróbios.

Figura 2. Desinfeção de salada. Fonte: autores.
Referimos no início a aparente despreocupação com os riscos de contaminação microbiológica. Alguns entrevistados de facto procuram desvalorizar a importância de certos riscos alimentares, mas isso não significa uma total ausência de preocupação a esse nível e em todas as dimensões das suas práticas. Essa desvalorização justifica-se, por vezes, com o recurso à experiência pessoal ou de familiares e sugere um certo ethos de moderação que permite aos entrevistados afastarem-se do que consideram excesso de preocupação, recorrendo a exemplos próximos, tais como: “a minha mãe dizia, oh filha mais vale comermos os bichos do que os bichos nos comerem a nós” ou “no tempo dela não se fazia nada disso e nunca ninguém morreu”. Esta desdramatização do risco no quotidiano, que pode coexistir com ideias sobre a perigosidade de determinados micróbios em particular(o risco de toxoplasmose no caso de grávidas, por exemplo), é comprovada no dia-a-dia pela ausência de recordações de se ter ficado doente ou por não se ter conhecimento da ligação entre sintomas de doença alimentar e a ingestão de determinados micróbios. No quotidiano os micróbios só se tornam visíveis pelos seus efeitos, e é talvez por isso que são referidos por vezes a partir de um modelo zoomórfico, fazendo referência aos micróbios enquanto “bichos”, ou ao seu movimento (“a bactéria salta”, “mexe com a bactéria”).
As ideias sobre o que é comestível ou perigoso, além de incluírem o risco microbiológico referem-se também à prevenção de maus sabores, remoção de químicos indesejáveis e de vários tipos de sujidades, que por vezes podem estar em contradição entre si. Uma das entrevistadas refere lavar a carne de porco por considerá-la especialmente “sujeita a bactérias”, mas outros lavam apenas a carne de frango para retirar pequenos pedaços de gordura ou osso, demonstrando que as ideias sobre limpeza incluem diferentes escalas e prioridades de preocupação. Passar milho enlatado por água para retirar os conservantes ou lavar a salada pré-embalada porque “passa por tantos processos, que não sei até que ponto é que é suficiente” são também exemplos de como nem sempre os produtos são considerados prontos a consumir, seja do ponto de vista da segurança, como do seu sabor. Outros exemplos desta associação entre os riscos microbiológicos e outras preocupações na preparação de alimentos são a preferência, em determinados casos, pela utilização de produtos como o vinagre, o limão, ou a aguardente, em funções de desinfeção de alimentos, em especial quando consumidos crus, ou a identificação da deterioração dos alimentos pelo seu odor, por exemplo: “Eu, pelo cheiro, noto logo se as coisas estão boas ou não.”

Figura 3. Cultura de Campylobacter. Fonte: autores.
Uma leitura destes exemplos das entrevistas é que a relação entre humanos e micróbios nem sempre pode ser subsumida numa única categoria, seja de oposição, indiferença ou colaboração. Se a relação entre humanos e micróbios foi, ao longo do século XX, marcada por um modelo em que os micróbios eram entendidos como elementos a eliminar (designado por modelo pasteuriano), mais recentemente têm sido documentadas relações colaborativas entre humanos e micróbios, levando alguns autores a argumentar que estamos perante uma transição de modelo de governação das relações humanos-micróbios caracterizado por ser pós-pasteuriano. É possível que as práticas de consumo alimentar destes entrevistados possam ser caracterizadas, por vezes, como pasteurianas, outras como pós-pasteurianas, mas importa realçar como as práticas parecem fugir à classificação nestes modelos. No domínio das práticas de consumo alimentar, a separação entre humanos e micróbios poderá nunca ter sido absoluta e talvez seja caso para perguntar: será que na verdade nunca fomos Pasteurianos?
Alexandre Silva, Sociólogo. Investigador convidado no projeto SafeConsume.
Email: alexandre.silva@ics.ulisboa.pt
Webpage: https://www.ics.ulisboa.pt/pessoa/alexandre-silva
Mónica Truninger, Socióloga e coordenadora do Grupo de Investigação Ambiente, Território e Sociedade do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Coordenadora da equipa do projeto SafeConsume no ICS-ULisboa.
Email: monica.truninger@ics.ulisboa.pt
Webpage: https://www.ics.ulisboa.pt/pessoa/monica-truninger