Hub Criativo do Beato: Uma infraestrutura inacabada e ativada

Por: João Felipe P. Brito

Desde o final de 2021, quando comecei a etnografar o Hub Criativo do Beato (HCB), equipamento anunciado há seis anos pelo Governo de Portugal e pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) como o mais importante para o desenvolvimento de inovação tecnológica nesta cidade, o “Sónar Lisboa” (abril de 2022) foi o evento que melhor se apropriou dos seus diferentes edifícios e ambientes. Sua organização está diretamente relacionada com os investimentos simbólicos e com as estratégias de promoção internacional que buscam reposicionar Lisboa como capital da inovação e da tecnologia. A escolha do HCB como casa do Sónar, evento de “música, criatividade e tecnologia”, expressa a sua importância nestes investimentos e estratégias, públicos e privados.

Etnografando o hub: o Sónar Lisboa

Durante a realização do Sónar, interagi com frequentadores que caminhavam curiosos entre os edifícios e por dentro deles, descobrindo-os. Por vezes, parecia um labirinto, com inúmeras escadas, corredores e salas sucessivas, pouco iluminadas e com acessos improvisados com corrimãos de madeiras e grossas fitas plásticas. Percebi que havia entre os frequentadores um encantamento com o patrimônio industrial expresso na arquitetura e no maquinário ali expostos. Pelas grandes e envelhecidas janelas, as pessoas fotografavam os silos, as paredes de tijolos manchesterianos, a proximidade do edifício com o rio Tejo, a diferença de escala entre o corpo humano (primeiro plano) e aquelas estruturas (fundo). Eram dias frios, chovia casualmente. Ainda assim, havia centenas de pessoas nas ruas internas, edifícios e instalações do hub. Grande era a presença de público e a participação nas talks, outros passavam longos momentos a beber cervejas na área externa, a observar os passantes e a materialidade circundante. Apropriavam-se da infraestrutura como um aprazível “ambiente de interações”.

No edifício da antiga moagem, com quatro pisos repletos de máquinas obsoletas mas bem preservadas, a instalação que ali havia combinava música experimental, jogos de luzes e uma espécie de neblina, por vezes muito densa, que pairava sobre o maquinário e ganhava corredores, salas e acessos. Esses elementos deixavam o ambiente confuso, enigmático, realçando a estranheza diante daquele mundo industrial de outrora, com azulejos envelhecidos, escadarias empoeiradas, janelas com vidros foscos, estruturas metálicas enferrujadas, pinturas a descascar. Poltronas e almofadas espalhadas pelo cenário estavam sempre ocupadas, eram disputadas: as pessoas não fugiam dali, elas estavam satisfeitas com aquelas sensações.


Imagem 1: Circulações pelas ruas internas do HCB durante o Sónar. Acervo da investigação, 2022.

O que tudo isso nos leva a pensar sobre essa infraestrutura, supostamente disfuncional mas em pleno uso? O fato dela ser pós-industrial, improdutiva, em parte preservada e em parte deteriorada, é fascinante e atrativo, e isso diz muito sobre os interesses daquele público: não se buscava no HCB a eficiência técnica do seu plano original. A bricolagem entre elementos de épocas, formas e materiais diferentes encontrava respaldo no ethos daqueles apreciadores artísticos. A realização do Sónar revelou também a capacidade do HCB de atrair “vanguardas sociotécnicas” e os que nelas confiam ou se identificam. Mesmo sem as empresas, espaços de coworking e de coliving, o lugar traz satisfação a quem o visita nesses tantos eventos culturais que lá vêm sendo realizados.

Seguindo a etnografia: o tour da Made of Lisboa

“Made of Lisboa” (MOL) é uma das iniciativas da CML para apresentar, promover e animar a cena lisboeta inovadora a potenciais talentos, empreendedores e investidores através de masterclasses, workshops e tours. Durante a “11ª Semana do Empreendedorismo de Lisboa” (maio de 2022), pude acompanhar um tour com a StartUp Lisboa (a administradora do HCB). A guia fez suas explanações em inglês para um público de duas dezenas de pessoas e majoritariamente estrangeiro, mas também respondeu em português para uma minoria. Falou-nos que o hub tem o intuito de “produzir os benefícios da Web Summit durante todo o ano” e que trará “comércio, novos empregos e desenvolvimento urbano para Beato e Marvila”. Disse que a intenção é trazer “companhias globais” para o lugar, além das “indústrias criativas”, citando “web design” e “gaming”, e que o HCB será importante para criação de “inovação em rede”.

Sob o sol da manhã, a guia demonstrou constrangimento ao explicar o atraso das obras. Disse-nos: “Mesmo em construção, o hub é um lugar vibrante que cria good vibes para a cidade”. Explicou que cada prédio tem um projeto e um ritmo específicos e que por isso não há previsão de abertura completa do hub. Questionada sobre os boatos de desistência de empresas parceiras, ela esquivou-se. Esclareceu que, durante a fase mais dura da pandemia de COVID-19, a empresa responsável pelas obras da Factory Lisbon abriu falência, atrasando o cronograma. Indicou todos os projetos com otimismo, afirmando o que cada edifício será, terá e fará. Os visitantes até demonstravam curiosidade, mas percebiam que o HCB está muito longe da concretização daquelas ideias e projetos.


Imagem 2: Tour da Made of Lisboa pelo HCB. Ao fundo, a antiga fábrica de pão da Manutenção Militar, hoje sob os cuidados da StartUp Lisboa. Acervo da investigação, 2022.

Diferentemente do Sónar, os visitantes do tour pareciam focados nas reais possibilidades de usufruto técnico e empresarial da infraestrutura. Por isso, demonstravam alguma frustração com o estado das obras, embora absorvessem ao máximo as informações. Este público era distinto: incluindo alguns idosos, as pessoas aparentavam ser empreendedores e investidores pragmáticos, e não os techies entusiasmados do Sónar.

O HCB demonstra uma dualidade interessante. Durante os eventos e tours lá realizados, por um lado ele é apreciado como patrimônio industrial de encontro e de celebrações estéticas e, por outro, lamenta-se o fato de que ele ainda não é, nem tão cedo será, um centro produtivo para inovação empresarial. Ele encontra-se num dilema espaciotemporal: a velocidade de sua plena constituição material é inferior àquela de sua constituição simbólica. O hub cria expectativas emergentes, mas ainda não oferece as respectivas soluções tangíveis.

Com pretensão de vincular o local ao global, o físico ao digital, o passado ao futuro, gerando representações positivas de uma Lisboa propícia a vivências e a negócios tecnológicos e inovadores, o HCB também é âncora para investimentos imobiliários que encarecem este último trecho em reabilitação na zona ribeirinha oriental. Esta infraestrutura, devir da cidade inovadora pretendida, ainda é ineficaz na produção das espacialidades necessárias para este projeto de cidade. Entretanto, para os que já vivem sob o efeito do ecossistema inovador na zona oriental (moradores, empreendedores ou visitantes), o hub é agente rotineiro na criação de expectativas e na antecipação de futuros – bons ou maus, tranquilos ou ansiosos, de insistência ou de desistência.


João Felipe P. Brito é investigador de cidades há doze anos. Fora da vida acadêmica, tem experiência no sistema ONU, Estado, sociedade civil organizada e consultorias privadas. Mora e trabalha em Lisboa sem antecipar futuros. Este texto é um fragmento do artigo apresentado na 33ª RBA, Brasil, 2022.

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