Prevenção e mitigação de incêndios e participação pública

Por: Ana Delicado, Luísa Schmidt e Filipa Soares

2022 voltou a ser um ‘annus horribilis’ no que respeita aos incêndios. Até ao final de agosto, segundo o ICNF, já tinham ardido em Portugal mais de 100 mil hectares, mais de metade dos quais em povoamentos florestais. Este valor representa um aumento de 36% em relação à média anual dos 10 anos anteriores. Dos quase 10.000 incêndios rurais registados, 16 foram de grande dimensão, consumindo mais de mil hectares. Em termos de área ardida, os distritos mais afetados foram Guarda, Vila Real e Leiria (Figura 1). Um dos casos mais graves em termos de perda de biodiversidade e afetação de recursos naturais foi o incêndio no Parque Natural da Serra da Estrela, tendo consumido mais de 22 mil hectares, ou seja, cerca de 25% da sua área num único verão – o equivalente a uma área superior a duas vezes o concelho de Lisboa (que tem cerca de 10 mil hectares).

Figura 1: Distribuição das áreas ardidas em Portugal continental em 2022 (versão provisória). Fonte: ICNF, 5.º Relatório Provisório De Incêndios Rurais, 2022, p. 4

A zona do Pinhal Interior, uma das mais afetadas pelos trágicos incêndios de 2017, foi relativamente poupada este ano. Mas foi essa catástrofe que motivou a abertura pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia de concursos especiais para projetos de investigação, um dos quais o projeto Pessoas e Fogo (PCIF/AGT/0136/2017), executado em consórcio pelo ISA, IGOT e ICS.

A cerca de seis meses do encerramento do projeto, importa fazer um balanço do trabalho já desenvolvido pela equipa do ICS e refletir sobre o modo como os dados que temos vindo a recolher e analisar podem contribuir para prevenir e mitigar os incêndios florestais, num contexto de risco acrescido devido às alterações climáticas.

Primeiro, foi feito um balanço das políticas florestais das últimas décadas, já apresentado num post anterior neste blogue e alvo de um relatório detalhado (Policy Review) disponibilizado na página do projeto. Este documento elenca os principais desafios que se colocam à reforma florestal em curso desde 2017 (assente em três áreas de intervenção: gestão e ordenamento florestal, titularidade da propriedade e defesa da floresta nas vertentes de prevenção e de combate aos incêndios). Destacam-se, em particular, os atrasos na sua aplicação, as contradições com os Planos Regionais de Ordenamento Florestal em vigor, a descoordenação de políticas entre vários organismos com tutela sobre a floresta, a ausência persistente de cadastro de propriedade fundiária em todo o país, a insuficiência das novas estratégias económicas para a floresta e os problemas estruturais de ordenamento do território, entre outros.

Figura 2: A equipa ICS do projeto nos workshops de junho e julho de 2022.

A segunda tarefa desenvolvida pelo ICS consistiu na organização de workshops participativos, com o intuito de aferir as perceções sobre o impacto e a adequação das soluções políticas existentes e de conceber conjuntamente soluções e estratégias para a floresta e território. Depois de um hiato causado pela pandemia, em junho e julho de 2021 foram realizados quatro workshops online com stakeholders (administração central, regional e local, autoridades como GNR, Proteção Civil e Corporações de Bombeiros, agentes económicos, organizações da sociedade civil, instituições de ensino e de investigação, comunicação social) dos concelhos de Proença-a-Nova, Oliveira do Hospital, Figueiró dos Vinhos e Vila de Rei (Figura 2). No total, participaram 104 pessoas, representantes de 73 entidades. Estes workshops versaram sobre três temas principais: o que seria uma política de fogos bem-sucedida, a gestão de espaços florestais e a redução do risco de incêndio nos aglomerados populacionais. Deste exercício resultou um relatório alargado e um relatório síntese.

Em traços largos, os participantes enunciaram como indicadores de uma política de fogos bem-sucedida a diminuição da área ardida e do número de ignições, uma gestão florestal coletiva pautada por uma floresta ordenada e diversa, uma maior rentabilidade florestal e a diversificação das atividades económicas, o aumento e rejuvenescimento populacional, uma maior sensibilização e educação cívica e um combate e vigilância dos incêndios mais eficazes.

No que respeita à gestão de espaços florestais, as discussões incidiram sobre a gestão dos baldios, os benefícios e desafios das Zonas de Intervenção Florestal (ZIF), o alargamento da rede primária de faixas de gestão de combustível e as indemnizações por expropriação, a necessidade de medidas de compensação pelos custos da gestão de combustíveis (centrais de biomassa, remuneração dos serviços de ecossistemas, benefícios fiscais, outros incentivos) e o Programa de Transformação da Paisagem.

Sobre a redução do risco de incêndio nos aglomerados populacionais, os participantes começaram por identificar os principais fatores de risco de incêndio: decréscimo e envelhecimento populacional, a falta de gestão florestal, a ocupação por espécies não nativas, as condições atmosféricas e do território (geomorfologia e topografia) e os comportamentos de risco. Em seguida, foram discutidas e avaliadas as medidas implementadas por diferentes atores após os incêndios de 2017. Por fim, foram apresentadas várias propostas para solucionar a falta de gestão de combustíveis por parte dos proprietários privados (Figura 3) e os principais fatores de risco e respetivas propostas para os mitigar (Figura 4).

Figura 3: Fatores críticos para a gestão de combustíveis na rede secundária. Fonte: Relatório Síntese dos Workshops Participativos, 2021, p. 8.

Figura 4: Principais fatores de risco identificados pelos participantes, intensidade de referências aos mesmos e propostas. (Intensidade de referências: • (pouca); •• (média); ••• (alta)). Fonte: Relatório dos Workshops Participativos, 2021, p. 33.

Estes workshops proporcionaram informação relevante para a preparação dos inquéritos aos proprietários florestais com base em experiências de escolha (executado pelo ISA) e aos residentes sobre perceção do perigo e práticas de adaptação (a cargo do IGOT). Estes inquéritos, por sua vez, servirão de base a simulações de gestão florestal através de opções políticas alternativas e ao desenho de estratégias de adaptação desenhadas à medida das necessidades e capacidades das pessoas, respetivamente. Os resultados obtidos nestas tarefas serão então discutidos com os stakeholders locais nos workshops finais do projeto (fevereiro de 2023).

Apesar de não estar previsto na proposta inicial do projeto, a equipa do ICS realizou ainda, em julho de 2020, um inquérito telefónico ou online aos 121 presidentes das Juntas de Freguesia dos concelhos do Pinhal Interior, tendo obtido uma taxa de resposta muito elevada (96%). Este inquérito teve por objetivo identificar as ações oficiais de sensibilização e de prevenção e mitigação do risco (ex.: programa Operação Floresta Segura da GNR, Programa Aldeia Segura, Pessoas Seguras da ANEPC, Planos Municipais de Defesa da Floresta Contra Incêndios), bem como as iniciativas de mobilização comunitária levadas a cabo desde os incêndios de 2017. Tendo sido identificadas 10 destas iniciativas que mereciam um estudo mais apurado, foram realizados uma recolha e análise documental e um conjunto de entrevistas com os seus responsáveis (em março e abril de 2021). Pretendeu-se examinar as motivações e ações levadas a cabo nos dez casos selecionados, bem como os fatores que potenciaram a sua implementação e/ou manutenção e os principais obstáculos com que se deparam. Os resultados desta análise serão publicados em breve, salientando-se as respostas e estratégias transformadoras de recuperação e redução do risco para que possam ser replicadas noutras comunidades.

Em suma, apesar de ainda ser um “trabalho em progresso”, o projeto Pessoas e Fogo já produziu resultados interessantes e úteis, que podem resultar num contributo relevante para a formulação de novas políticas, para medidas de prevenção e mitigação mais eficazes e para uma efetiva participação das comunidades na tomada de decisões que as afetam.


Ana Delicado é socióloga e investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. ana.delicado@ics.ulisboa.pt

Luísa Schmidt é investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e coordenadora do Observa – Observatórios de Ambiente, Território e Sociedade. mlschmidt@ics.ulisboa.pt

Filipa Soares é antropóloga e doutorada em geografia ambiental pela Universidade de Oxford. Tem trabalhado em diversos projetos sobre a dimensão social e política da conservação da natureza e gestão florestal e sobre a relação entre humanos e não-humanos. Foi bolseira de investigação no projeto Pessoas e Fogo. filipafs@gmail.com

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