50 Anos de Abril: questões ambientais, sociais e territoriais

Por: Mónica Truninger

Este é o meu último post como coordenadora do GI SHIFT. Ao longo destes cinco anos, tive o privilégio de organizar as atividades do GI, contando, numa primeira fase, com a colaboração da Olivia Bina e do João Graça, e, numa segunda e última fase, do João Mourato e João Guerra. De forma a celebrar a atividade deste grupo enérgico, dinâmico e especialista em questões ambientais, sociais e territoriais, aproveito este momento  para realçar neste texto uma obra coletiva do SHIFT, que esteve em preparação ao longo de 2024 e que está prestes a chegar às livrarias. Trata-se da obra 50 Anos de Abril: Questões Ambientais, Sociais e Territoriais, da Imprensa de Ciências Sociais. Esta obra reúne um conjunto de capítulos escritos por vários investigadores do SHIFT, refletindo o trabalho desenvolvido pelo grupo enquadrado no contexto das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974. Este marco histórico marcou a transição para a democracia em Portugal e a libertação de um regime autoritário. A Revolução dos Cravos e, a seguir a Constituição de 1976, permitiu a emergência de um novo regime democrático baseado nos princípios de liberdade, igualdade e justiça, consagrando direitos fundamentais, incluindo o direito ao ambiente e à qualidade de vida. Desde então, o país tem vivido transformações profundas em diversas áreas, mas também tem enfrentado desafios significativos, em particular nas últimas décadas, nomeadamente em relação ao ambiente, sociedade e território. 

Passadas cinco décadas, considerámos pertinente fazer uma análise crítica e reflexiva das principais transformações resultantes da instauração e consolidação da democracia: quais as expectativas cumpridas, quais as mudanças realizadas, mas também quais as promessas que ficaram por cumprir e até os retrocessos que acabaram por ocorrer. O foco dessa análise recaiu sobre as temáticas do grupo de investigação SHIFT: Ambiente, Território e Sociedade, em particular sobre as dinâmicas subjacentes aos desafios socioecológicos e territoriais da sociedade portuguesa, enquadrada não só na escala europeia, mas também na escala global. Será que o espírito de Abril se cumpriu, consolidando a transição para uma sociedade mais justa, resiliente e sustentável? E, tomando a Constituição como mote, será que foram construídos territórios mais ‘justos’ e ambientes mais ‘livres’ de diversas formas de poluição? E que capital de participação cidadã foi sendo acumulado ao longo destes 50 anos? Qual tem sido o contributo das organizações formais e informais de cidadãos para a construção de um país mais coeso, participativo e ‘fraterno’, em matéria de ambiente e território?

Tendo como mote os valores e os princípios que o 25 de abril de 1974 trouxe, e que a Constituição de 1976 consagrou, os contributos dos membros do grupo de investigação SHIFT, incluindo investigadores integrados e doutorandos, foram enquadrados por dois eixos de análise. Por um lado, os textos apresentam uma breve contextualização e trajetória históricas da temática em apreço nos últimos 50 anos, salientando os principais marcos e pontos de viragem. Por outro lado, os autores questionam até que ponto esta trajetória foi cumprida ou descontinuada, afastando-se até do espírito de Abril e fragilizando, assim, a própria democracia. 

A cover of a book

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Figura 1 – Capa do livro 50 Anos de Abril – Questões ambientais, sociais e territoriais (ICS, no prelo). 

O livro está dividido em três partes: questões ambientais, questões sociais e questões territoriais, com capítulos interligados que refletem sobre as conquistas e os desafios dos últimos 50 anos. A primeira parte, dedicada às questões ambientais, inicia-se com o capítulo de João Guerra, Luísa Schmidt e David Travassos, intitulado “Áreas Protegidas – trajetórias da conservação da natureza em Portugal”. Os autores analisam os avanços e retrocessos na política de conservação, destacando a falta de recursos para gestão e fiscalização. No capítulo seguinte, “Energia solar descentralizada: 50 anos de políticas públicas”, Sofia Ribeiro analisa os desafios energéticos em Portugal, desde a eletrificação do território após a Revolução até à promoção das energias renováveis nas últimas décadas. Complementando essa análise, Vera Ferreira, em “A energia comunitária em construção – um caso de democracia em Portugal?”, explora o papel das comunidades de energia renovável como ferramentas de participação democrática e transição energética. Por fim, Joana Sá Couto, no capítulo “A tua política é o trabalho […] O teu único jogo deve ser a pesca: o trabalho na pesca desde o Estado Novo à emergência climática”, reflete sobre as crises do setor piscatório, conectando-as às escolhas políticas e ao impacto das mudanças climáticas.

A segunda parte do livro foca-se nas questões sociais. Ricardo Moreira, em “O Estado Social que a Constituição abriu e as sementes do Estado Ambiental que ainda esconde”, discute como a Revolução impulsionou o Estado Social em Portugal, destacando os avanços em direitos sociais e as limitações na integração de políticas ambientais. Simone Tulumello e Luisa Rossini, no capítulo “A paz, o pão, …, saúde educação: a habitação, a grande ausência do Estado social democrático”, analisam as políticas habitacionais desde 1974, enfatizando as tensões entre as promessas da Revolução e os problemas habitacionais que persistem atualmente. Ana Delicado e Jussara Rowland, em “50 anos de construção de uma democracia participativa em matérias ambientais”, exploram a evolução da participação cidadã em questões ambientais, desde mobilizações espontâneas até a institucionalização de audiências públicas e o papel das ONG de ambiente. Por sua vez, Roberto Falanga, José Ribeiro e João Moniz, no capítulo “Cidadania e participação nos últimos 50 anos em Portugal: a consolidação democrática entre urnas e ruas”, examinam práticas emergentes de diálogo entre cidadãos e instituições, como o Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) e os orçamentos participativos.

Na terceira parte, dedicada às questões territoriais, João Mourato, Inês Gusman e André Pereira, em “50 anos de (in)definição regional: convergências e conflitos de governança territorial em Portugal”, analisam a complexidade da governança regional, destacando os paradoxos e conflitos na organização territorial após o 25 de Abril. Kaya Schwemmlein, no capítulo “Variadas crises do sistema agrícola alentejano”, reflete sobre a evolução dos sistemas agrícolas no Alentejo, abordando questões relacionadas com o uso da terra, posse e sustentabilidade. Encerrando o volume, Rosário Oliveira, em “Alimentar as cidades de modo sustentável e saudável é preciso: das hortas urbanas ao sistema alimentar metropolitano”, descreve a transformação das hortas urbanas espontâneas em sistemas alimentares metropolitanos, propondo estratégias para o planeamento alimentar que sejam simultaneamente sustentáveis e saudáveis.

Esta obra apresenta, assim, um cenário misto, composto por avanços e desafios. Se, por um lado, foram alcançados progressos significativos em setores como a educação, a saúde, a segurança social, o abastecimento de água e o saneamento, a legislação sobre ambiente e natureza, o desenvolvimento da rede viária, a democratização das instituições e o aumento da participação cívica; por outro lado, persistem muitas questões por resolver. Entre estas, destacam-se-se as desigualdades sociais e socioterritoriais, os avanços e recuos nos debates sobre a regionalização, o difícil acesso à habitação, a gestão ineficiente da conservação da natureza, as limitações na adoção das energias renováveis, a crise no setor das pescas e os efeitos nocivos da agricultura intensiva para o ambiente e para a saúde humana. Todos estes desafios representam obstáculos à implementação de transições justas, especialmente face aos impactos crescentes das alterações climáticas no nosso país. 

Numa época marcada pelas comemorações dos 50 anos da Revolução, o livro do GI SHIFT oferece, assim, uma reflexão crítica sobre os avanços e retrocessos das últimas cinco décadas, propondo caminhos para uma sociedade mais justa, sustentável e democrática, em consonância com os ideais do 25 de Abril. 

Figura 2,3,4: Desfile comemorativo dos 50 anos do 25 de Abril de 1974 (Avenida da Liberdade, Lisboa, Portugal a 25 de Abril de 2024)Fonte: figuras 3 e 4 fotos de Luisa Rossini; figura 2 RitaFMatos (https://commons.m.wikimedia.org/wiki/File:25_de_Abril_de_2024_08.jpg).

Mónica Truninger é socióloga e coordenadora (em final de mandato) do SHIFT: Grupo de Investigação Ambiente, Território e Sociedade do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. monica.truninger@ics.ulisboa.pt

Agriculture in Europe: Power and Marginalization Dynamics

By: Kaya Schwemmlein

() there is no relationship of power without its corresponding constitution of a field of knowledge, no relationship of knowledge that doesn’t imply and constitute at the same time relationships of power” (Foucault, 1978)

Agriculture in Europe, as a practice and a field of knowledge, has been inextricably linked to the concept of development used in Western society since the Industrial Revolution (late 18th and 19th centuries). Historically speaking, the process of development has its roots in a patriarchal project that claims to satisfy society’s needs and achieve constant progress by commodification of commons, by accumulation of capital and by increase of private ownership, profits and Gross Domestic Product (GDP) (e.g., Watson, 2004; Shiva, 1988). Development in the agricultural sector, then, translates into a constant demand for space, resources and capital for a steady production and accumulation of food that systematically demands the privatization of a vast number of common resources (i.e., seeds and water) and demands a constant flow of cheap labor and “available” land (e.g., Nolte et al., 2016, Holt-Giménez, 2017).

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Co-Produção: A Inteligência Humana ao Serviço das Nossas Cidades

Por: Diogo Martins

Estamos sempre a falar em cidades mais inteligentes, com sensores, inteligência artificial, com software que irá gerir tudo ao pormenor, com tecnologia que nós, hoje, não conhecemos. Mas em que medida toda esta tecnologia traz benefícios às pessoas que habitam e frequentam as cidades? E estaremos a tirar partido da inteligência dessas pessoas para melhorar as nossas cidades?

A minha proposta é explorarmos formas de voltar às pessoas, sem deixarmos de evoluir e usar tecnologia. A co-produção é ainda pouco utilizada no nosso dia-a-dia e por isso não vemos efeitos práticos disso nas nossas cidades com a frequência que é desejável.

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Energias renováveis, paisagens e inovação social: o projeto PEARLS

Por: Ana Delicado e Mónica Truninger

É já longa a tradição de investigação sobre questões energéticas no GI SHIFT. Da história da energia nuclear ao futuro da energia da fusão, da pobreza energética às práticas de consumo dos jovens, têm sido múltiplos os projetos envolvendo investigadores do GI. Sobre energias renováveis houve já um projeto financiado pela FCT e está agora em curso outro financiado pela Comissão Europeia. É deste último que vos vamos falar.

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Participatory Rural Appraisal for the municipality of Odemira – The characterisation of a rural environment

Por: Kaya Schwemmlein , Lanka Horstink & Miguel Encarnação

Source: Project logo.

Drawing upon the challenge of creating inclusive, regenerative, and sustainable food systems, it is very important to address not only questions related to sustainable agricultural practices, but also issues regarding power asymmetries that can be found along the supply chain.

The European Union (EU), in its “Farm to Fork Strategy”, maintains that it is vital to “preserve affordability of food while generating fairer economic returns, fostering competitiveness of the EU supply sector and promoting fair trade”. Nonetheless, several studies, journalistic pieces and other EU documents (such as the EU´s Inception Impact Assessment) have already clearly acknowledged the existing challenge of imperfect competition : one that creates disparities in market power across the entire food chain, from production to retail.

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Planeamento Territorial no Quadro de Financiamento PT2020 – algumas reflexões

Por: André Pereira

O projeto SOFTPLAN tem como objectivo analisar a evolução de práticas de soft planning (paralelas e complementares ao sistema de gestão territorial português),  particularmente a partir da forma como a União Europeia, através da Política de Coesão e dos Fundos Estruturais de Investimento, tem vindo a fomentar a implementação destas práticas.

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PilotSTRATEGY Captura e Armazenamento de Carbono em Portugal

Por: Jussara Rowland, Ana Delicado, Luísa Schmidt

As alterações climáticas são um problema “malvado” (wicked, na terminologia inglesa). Complexo, de difícil resolução, não há uma “bala mágica” que o consiga travar. Da mudança de comportamentos individuais à transformação dos sistemas de produção e consumo globais, muitas são as propostas para prevenir um aumento catastrófico da temperatura no planeta, como múltiplas são as respostas tecnológicas que podem contribuir para isso. Segundo o IPCC e a Comissão Europeia, a captura e armazenamento geológico de carbono é uma das respostas possíveis,  particularmente relevante para mitigar as emissões carbónicas de algumas indústrias cujos processos industriais implicam a produção de CO2. O CO2 é capturado nas grandes fontes emissoras industriais ou de produção de energia, comprimido em estado líquido e transportado por gasoduto, navio ou comboio para ser injetado no subsolo, geralmente a profundidades superiores a 1 km. O armazenamento é feito em formações geológicas como aquíferos salinos profundos, reservatórios esgotados de petróleo ou gás, ou em camadas de carvão não-exploráveis.

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O Perigo da História Única das Alterações Climáticas

Por: Fronika de Witt

Quando rejeitamos a história única, quando percebemos que nunca há uma história única sobre qualquer lugar, recuperamos uma espécie de paraíso.

Chimamanda Adichie: O perigo de uma história única. TED Talk 2009.

A escritora e contadora de histórias nigeriana Chimamanda Adichieto tem vindo a alertar para o perigo das histórias únicas. As histórias únicas, segundo ela, são as perceções excessivamente simplistas e, por vezes, falsas que formamos sobre pessoas e lugares. Estas dependem da perspetiva do narrador e criam estereótipos e imagens incompletas. Outro problema das histórias únicas é onde começam; começar antes ou depois do processo de colonização, por exemplo, muda completamente uma história e a sua dinâmica de poder.

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Dilemas climáticos: o caso da exploração de petróleo, gás e lítio em Portugal

Por Madalena Duque dos Santos

Entre 2007 e 2015 o estado português celebrou uma série de contratos de concessão para a prospeção, pesquisa, desenvolvimento e exploração de hidrocarbonetos no mar e território português, ao abrigo de legislação desatualizada, cuja revisão só se verificou em 2017. Este período foi igualmente marcado por ambiciosos compromissos climáticos nacionais, europeus e internacionais, que culminaram na promessa do cumprimento da neutralidade carbónica em Portugal em 2050.

Para a controvérsia em torno da atribuição destes contratos de concessão contribuiu o modo obscuro e pouco democrático que caracterizou a tomada destas decisões, em vésperas de eleições, não tendo sido aplicada qualquer metodologia participativa ou consultiva às populações, organizações ou autarquias locais, resultando numa ausência de coordenação e comunicação entre entidades e atores.

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Local voluntary carbon markets – what they are, how they went at COP26 and what to expect next

By: Jieling Liu & Lurdes Ferreira

1. Why focus on local voluntary carbon markets?

The Paris Agreement of 2015 set forth a global target of limiting the warming in this century to 2o C or even more ambitiously to just 1.5o C, in order to contain the catastrophic impacts of anthropogenic climate change planet Earth is facing. National governments voluntarily made respective emissions reduction targets called Nationally Determined Contributions (NDCs) to implement the Paris Agreement, of which the COP26 this year has welcomed the first update cycle. Voluntary carbon markets (VCM) emerged as a potentially effective tool to support the NDCs under Article 6 of the Paris Agreement as it encourages voluntary contribution.  

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