O Perigo da História Única das Alterações Climáticas

Por: Fronika de Witt

Quando rejeitamos a história única, quando percebemos que nunca há uma história única sobre qualquer lugar, recuperamos uma espécie de paraíso.

Chimamanda Adichie: O perigo de uma história única. TED Talk 2009.

A escritora e contadora de histórias nigeriana Chimamanda Adichieto tem vindo a alertar para o perigo das histórias únicas. As histórias únicas, segundo ela, são as perceções excessivamente simplistas e, por vezes, falsas que formamos sobre pessoas e lugares. Estas dependem da perspetiva do narrador e criam estereótipos e imagens incompletas. Outro problema das histórias únicas é onde começam; começar antes ou depois do processo de colonização, por exemplo, muda completamente uma história e a sua dinâmica de poder.

Na minha investigação doutoral sobre a governança climática (GC) na Amazónia, recentemente submetida, tentei desafiar várias destas histórias únicas: a história da Amazónia como um espaço verde homogéneo e um “tipping element” ecológico; a história dos seus povos indígenas definidos pelos colonizadores como “selvagens” que precisam de modernidade; a história das alterações climáticas como um fenómeno físico, e/ou até como  objeto considerado governável através da contabilidade global do carbono; e, finalmente, a história do conhecimento científico e ocidental enquanto a única maneira de explicar e analisar as alterações climáticas.

A minha tese visa “ver a floresta para além das árvores”: fazer um balanço das várias histórias e respeitar a pluriversalidade do mundo. Aplicando o pensamento e praxis descolonial, a investigação pretende ir além de uma leitura unívoca das alterações climáticas e do conhecimento climático, colocando em destaque as diferentes “culturas climáticas” e valorizando os seus sistemas de conhecimento. Expõe e explica os diferentes significados das alterações climáticas e a sua importância para a forma como as pessoas pensam e agem. Baseia-se na vasta literatura da “Geografia do Conhecimento” e no campo emergente da “Geografia da Transição para a  Sustentabilidade“, que presta atenção particular aos processos e conhecimentos históricos, culturais e políticos situados.

A investigação doutoral tem três objetivos principais: contribuir conceptualmente (1), empiricamente (2) e normativamente (3) para a GC.  Conceptualmente, examina as implicações da GC na promoção da justiça ambiental, especialmente a incorporação de epistemologias e ontologias não ocidentais no que diz respeito às alterações climáticas e à sustentabilidade. Destaca a necessidade de desvincular o conhecimento de uma perspetiva ocidentalizada, bem como a importância da teorização e conceptualização de realidades não-ocidentais. Desta forma, envolve-se com o conceito emergente do Pluriverso e “o mundo de muitos mundos”. Passa de uma postura de estudo sobre a GC amazónica para pensar com o povo amazónico e incorporar as suas visões.

Imagem 1: O povo indígena Shipibo-Conibo da Amazónia Peruana expressa em padrões geométricos (kené) a sua visão do mundo, sublinhando a sua forte relação com a natureza e com as suas terras ancestrais.
Fonte: arquivo pessoal da autora

Em segundo lugar, empiricamente, a investigação oferece exemplos da dinâmica local da GC na Amazónia, como por exemplo, governança urbana, iniciativas transnacionais sobre clima e florestas tropicais, e grupos de trabalho indígenas. Contribui para o crescente corpo de investigação sobre a GC, ultrapassando a sua perspetiva e estudos de caso predominantemente eurocêntricos e elaborando sobre as condições específicas da Amazónia. Destaca o que as alterações climáticas significam para os amazónicos, bem como o potencial e os desafios de governá-las colaborativamente. Não podemos simplesmente fazer um downscaling de conhecimento climático global; a GC participativa na Amazónia exige um olhar mais atento sobre a complexidade das relações de poder.

Imagem 2: Mural em Pucallpa-Peru expressa a importância da espiritualidade para os povos indígenas na Amazónia.
Fonte: arquivo pessoal da autora.

Finalmente, normativamente, a investigação fornece recomendações para uma GC que tenha em consideração as exigências de uma governança justa e inclusiva. Apela a uma repolitização das alterações climáticas e a um debate democrático e intercultural sobre a sua conceptualização e contextualização. Para que a GC resulte em processos mais justos, certas injustiças epistémicas terão de ser ultrapassadas. Para que tal aconteça, é preciso mais reflexão sobre “a política de governança do conhecimento” em relação às alterações climáticas, incluindo as relações socio-históricas, culturais e políticas, bem como os desequilíbrios de poder na co-produção do conhecimento. Tal implica uma descolonização da GCP com vista à sua reconstrução epistémica e a criação de uma variedade de novas narrativas climáticas, desvinculadas da narrativa hegemónica da modernidade e do modelo neoliberal. Também implica remover barreiras à autodeterminação indígena, ao acesso à terra e à articulação de perspetivas de grupos indígenas agora excluídos.

Há pouco mais de um mês, o IPCC publicou a contribuição do Grupo de Trabalho II para o Sexto Relatório de Avaliação (AR6): Alterações Climáticas 2022: Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade. Pela primeira vez, o relatório destaca o valor de diversas formas de conhecimento sobre as alterações climáticas, como conhecimento científico, local e indígena. Embora seja um primeiro passo importante para a co-produção de conhecimento climático, a minha investigação vai mais além, ao desafiar a perspetiva eurocêntrica e tecnocientífica das alterações climáticas.  Pretende contar uma história diferente, plural, e mostrar que a floresta amazónica é muito mais do que um mero instrumento de captura e armazenamento de carbono.

Na sua obra Feminismo e o Domínio da Natureza, a académica-feminista Val Plumwood aponta para a necessidade de desafiar “a história-mestre da cultura ocidental” e criar e explorar diferentes histórias, com novas personagens principais, melhores enredos, e pelo menos a possibilidade de alguns finais felizes. Todos nós podemos contribuir para esta história pluriversa. Como? Abrindo a nossa mente ontologicamente para imaginar a realidade de forma diferente: Iniciar um processo de desaprendimento e reflexão e repensar as suas conceptualizações do clima, da floresta, e acima de tudo do conhecimento, realidade e objetividade.


Fronika de Wit é geógrafa e mestre em estudos de desenvolvimento (Universidade de Utrecht). No ICS-ULisboa, é doutoranda em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável investigando a questão da Governança Climática Policêntrica na Amazônia. Além disso, da aulas no Mestrado em Design para a Sustentabilidade e trabalha como coach em inovação sistémica para a EIT Climate-KIC . Recentemente, começou o seu trabalho como consultora em gestão de conhecimento no PlanAPP – Centro de Competências de Planeamento, de Políticas e de Prospetiva da Administração Pública Portuguesa.
Email: fronikadewit@gmail.com  

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